POEMA | Sergio Mello 31/10/2023 - 15:12
Astor
1.
Uma revolução que se levanta da incapacidade
de se falar a língua de onde se nasce.
E no cruzamento entre as ruas Luz Arenosa e
Batente Mareado – a pobreza, essa escadaria interminável:
um degrau sim, arcada, um degrau não, outra arcada etc.
–, anos em revoada, busto nuclear.
Pertencer um dia à Nova York dos italianos
azeitados (nunca a mim mesmo),
embora incapaz de odiar
o tango que fez meu pai chorar uma única lágrima
que pesava um ídolo morto numa queda de avião em Medelín.
Assim como combustíveis fósseis
deixam o céu de outono tão doce
quanto um furúnculo
(ou como se toda a América do Sul tivesse nascido do mesmo zíper),
o mar, a se punir com suas próprias glândulas (demão do amanhã),
nunca foi tão prata; tampouco branco, Bach, e carmim, Mozart.
2.
Uma revolução erguida pelo direito de se falar
a língua da terra escolhida para se pescar.
E na Flores Negras, altura da Praça Mandíbula Stravinsky,
onde fadas são índias loiras,
Miles Davis fuma, ensanguentado feito uma bromélia.
Deixar que te sele a carne (em vão) uma orquestra.
Para que, entre o trato alfandegário de taxistas
a praguejarem que me chova a lona da morte
e as trocas de socos agendadas com tangueros perucas de maçã,
reste sempre esse azedume de amendoim japonês,
verniz de todas as virilhas em asa,
a me crepuscular desde a ponta a língua.
Meus filhos querem me ver
pelas costas, a vanguarda nunca atingirá a maioridade
do tilintar de pinças, sopinha de giz e fardão
dos que venceram, orgulhosos, um sabe-se lá o quê,
com seus vultos de saúde derramada.
Toco nas menores salas de concertos de Mar del Plata,
metade das cadeiras vazias.
E sob a lua, o mais portenho dos corpos,
atrás de nuvens de minissaias,
nuvens negras brancas –
e através do linho isabel dessa tenda
de antiguidades chamada Buenos Aires
–, em vez de alma arrefecida, garfo de varrer.
À Paris de Nadia Boulanger!
Proa febril, passos de mesa, meias de algas,
insone feito um panda, a cavar meus amuletos
para um dia finalmente poder enxaguá-los nos chás
do Candomblé.
3.
Um levante que atravesse o tempo que ainda tenho
de vida: o equivalente a uma semana,
quando se está no cume de uma acne elétrica.
E entre a Aníbal Troilo e a Osvaldo Pugliese,
mais precisamente diante da Torre Milton Nascimento,
mesmo depois de ter aterrissados os discos aéreos do corpo,
crer que o mundo, se dividido,
e somente assim,
quase chega a ser a minha gangue.
“Como você gostaria de morrer?”
Pergunta-me a repórter.
Estou velho, pararam de me cuspir.
A Morte nada mais é do que ser salvo
de alguém que o havia salvado;
a Felicidade, um mar apinhado de tubarões.
E no horizonte uma nau arruivada pelo amanhecer
regressa do futuro, como de um beijo ou do sono,
empunhando arma inédita só não mais letal que sêmen.
Estou velho, pararam de me cuspir e ainda manco
como um garotinho.
Bertolucci quer que eu componha o seu Último Tango,
Mick Jagger tenta tirar Adiós Nonino ao piano
em seu castelo localizado no tutano de um nevoeiro.
A música de Piazzolla se parece com nada
mais do que a si mesma, diz o New York Times,
e isso é o suficiente.
“Astor?”
Insiste a repórter, voz rarefeita.
“Como você gostaria de morrer, Astor? Dormindo?”
Estou velho, fechado num Armani preto,
num quarto de paredes nuas como um rosto sem olhos.
Pararam de me cuspir – Dormindo não.
Pararam de me cuspir – Dormindo nunca!
Quero morrer violentamente...
Sergio Mello nasceu em São Paulo, em 1977. É autor de No Banheiro um Espelho Trincado (Ciência do Acidente, 2004), Inimigo em Testamento (Soul Kitchen Books, 2013) e Puma (Corsário-Satã, 2018). Além de poeta, é roteirista e dramaturgo.