POEMA | Ana Luiza Rigueto 30/03/2022 - 14:27
lembro quando jorge foi embora
sei que jorge não conhecia
o amor
não digo isso porque
ele tenha declinado
a meus convites para
um chopp, um almoço, uma peça de teatro
ou porque suas pernas fossem muito finas
para os ombros largos
jorge cozinhava com calma e comia sempre
sozinho
eu sabia disso pelo jeito como
ele subia no ônibus depois do trabalho
quando nos despedíamos
jorge nunca me falava
dos seus
pais se tinha
irmãos me contava
do relógio novo
de tiras de couro
sintético
que em três dias
chegaria pelo correio
falava muito
sobre variedades
de relógios de pulso
*
jorge ligava sempre à mesma hora
toda sexta quando quase amanhecia
confesso
eu só dormia depois de nos falarmos
nessa época ele fazia exercícios
de voz, queria ser ator, algo assim
eu ouvia suas últimas abocanhadas na maçã
ele mastigando
até engolir, respirar fundo, dizer
então,
hoje faz 23ºc,
é uma manhã de outono
e recitava listas como
coca-cola não
leite não
morango sim
água sim
que se dividiam entre coisas más e boas
para as cordas vocais
se eu perguntasse
como você está
ele dizia
progredindo
se eu perguntasse
por que tão cedo
ele dizia
é a única hora possível
uma vez perguntei
jorge, se sua vida fosse virar autobiografia, qual título teria?
meu título seria uma pessoa que prefere não, e o seu?
uma pessoa com cara de paisagem, respondi
é um bom título
o seu também
*
o celular vibrava apressado
se era jorge
eu atendia logo
jorge não era bom de conversas
um dia me perguntou assim
você já tinha imaginado ter os seus próprios
desejos?
jorge, respondi, a sua voz
está muito limpa
Ana Luiza Rigueto nasceu em 1991 em Mimoso do Sul (ES) e vive no Rio de Janeiro (RJ). Formada em Comunicação Social na UFRJ, atualmente cursa o mestrado em Ciência da Literatura na mesma instituição. Ministra oficinas de poesia, escreve críticas para o jornal Rascunho e trabalha como social media. Publicou entrega em domicílio (Urutau, 2019), o livro coletivo Antígona Morreu Então Preciso Falar com Você (Urutau, 2021) e o videopoema não me fale do fim (2017). Recentemente, colocou em circulação pelos correios a plaquete teatrinho (edição da autora, 2021 / 2022).