Capa | A volta do “textão”

Em alta na internet e no mercado editorial, o ensaio dialoga com a reportagem, a ficção, o diário e até mesmo a poesia

Ronaldo Bressane

Alerta de “textão”: senta que lá vem ensaio. Mas calma. Só porque dizemos “ensaio” não precisamos pensar em sábios cofiando o queixo e mirando o infinito. O ensaio nunca foi tão popular quanto em nossa época de redes sociais: basta entrar no Facebook, no Medium ou até no Twitter e, com sorte e talento para a bateia, garimpar ensaios sobre a morosidade da justiça brasileira e as astúcias estranhas do ex-juiz Moro; o racismo nosso de cada dia expresso numa viagem de ônibus ou numa ida ao cinema; o machismo estrutural que permeia a sociedade numa discussão sobre as estrepolias de Neymar; o exasperante zeitgeist que infiltra o tom de indignação a cada polêmica sobre a) futebol feminino, b) a invasão do telemarketing em nossas horas íntimas, c) as fotos de nossas crianças no Instagram, d) o pior presente que já recebemos no dia dos namorados, etc., etc... Se antigamente se dizia que o Brasil era uma nação de 200 milhões de comentaristas esportivos, hoje se pode afimar que o Brasil tem 200 milhões de ensaístas. Todo dia um textão nas redes nos lembra como vivemos em um tempo em que ter e difundir uma opinião autoral contribui para a reputação; como as opiniões pessoais podem sucumbir à polarização entre eixos críticos; e como muitas vezes uma simples discrepância entre opiniões contrastantes é repentinamente fechada com uma frase de efeito, cortante e peremptória, cercada de joinhas e coraçõezinhos e aplaudida sob a claque de “Lacrou!”.

Mas calma: em que ponto um textão se transforma em um verdadeiro ensaio?

Mario de Andrade costumava dizer que “Conto é tudo o que chamamos conto”. Do mesmo modo, ensaio pode ser tudo o que chamamos ensaio. Talvez o ensaio seja tão abrangente que até o que não chamamos de ensaio também possa ser chamado de ensaio. Podemos ensaiar hipóteses para entender este gênero, o mais fluido de todos. De todos, talvez seja o gênero que mais assume a cara de quem escreve. O gênero mais maleável. Maleabilidade, em química, é a capacidade de um elemento transformar-se sem perder a sua essência. Esta capacidade se relaciona com a ductibilidade, que é a propriedade de um elemento moldar-se sem se fraturar. Alumínio e cobre são dúcteis e maleáveis, pois se esgarçam ao máximo, até se tornarem um fio finíssimo. O material mais maleável e dúctil de todos é o ouro. Este ensaio se dedica a investigar como o ensaio pode conversar com outros gêneros, como a reportagem jornalística, a ficção, a autoficção, o diário, a crítica literária e até mesmo a poesia. A ambição aqui é a de descobrir não só um textão, mas um texto padrão ouro, maleável sem romper o seu fio.

Existem algumas hipóteses para entender o ensaio. Uma delas registra o seu surgimento em Os Ensaios, do francês Montaigne, que os escreveu há 500 anos. Montaigne era um nobre rico, prefeito de Bordeaux, que tinha tido uma formação intelectual sólida e era meio antissocial. Em dado momento, ele resolveu se trancar em seu escritório e escrever sobre tudo o que lhe apetecesse. Comida, religião, a educação dos filhos, vinhos, os tupinambás… A graça dos ensaios de Montaigne está justamente na etimologia dupla da palavra essaier, em francês, que pode significar tanto um ensaio, no sentido de que se pratica algo antes de uma apresentação final, quanto um teste, no sentido de que se coloca uma ideia, uma tese, uma formulação à prova. Existe ainda um outro par de etimologias, aproximando essai de balança, ou de pesar, “examinar”, e também de “enxame”, como de abelhas ou pássaros.

   Ilustrações: Carolina Vigna
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Ou seja, o ensaio não parte de uma tese e então procura elementos para comprová-la: antes, ele procura esta tese. Ele procura esta tese sempre sendo ponderado, usando sua balança, e passeando entre ideias dispersas, como em um enxame.

Neste sentido, o ensaio flerta com o jornalismo no que ele tem de mais nobre: é a arte da dúvida. Ele é o exato oposto, por exemplo, de um texto religioso, ou de um texto técnico, ou mesmo de um texto científico. Um bom ensaio não respeita nem Deus nem a dinâmica dos materiais nem a lei da gravidade. Assim, ele estende a mão ao leitor, relativizando a autoridade de quem escreve. Talvez por isso o ensaio tenha demorado tanto a engrenar em países de cultura ibérica, onde funciona muito a lei do doutor, que identifica na fonte do saber uma espécie de autoridade moral e política. E talvez por isso muita gente no Brasil ainda confunda ensaio com monografia, tese ou dissertação.

Na pós-modernidade, o ensaio é a substância que recheia não só teses acadêmicas como também o melhor da ficção. Há desde os ensaístas que flutuam entre a reportagem e a autoficção, como Geoff Dyer e John Jeremiah Sullivan, quanto os ficcionistas que puxaram o movimento ensaístico para dentro de suas narrativas, de Jorge Luis Borges a WG Sebald. Recentemente, o historiador carioca Felipe Charbel aproximou o ensaio da autoficção e da metaficção, cruzando narrativas de sua própria vida a leituras de autores como Carlos Heitor Cony, Roberto Bolaño e Philip Roth no romance Janelas Irreais (Relicário), um dos lançamentos mais intrigantes de 2018.

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O argentino Jorge Luis Borges (1899- 1986): um dos ficcionistas que puxaram o movimento ensaístico para dentro de suas narrativas.

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O capixaba Rubem Braga (1913-1990) foi um dos expoentes da crônica, considerada a modalidade de ensaio mais praticada no país.

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A carioca Marília Garcia é um dos nomes de destaque no ressurgimento da forma ensaística dentro da poesia brasileira.

Ensaísta: entre o badaud e o flâneur
O ensaio é sinuoso, digressivo, foge do assunto, pega outro assunto pelo rabo, abre parênteses e não os fecha, tem iluminações súbitas quando ninguém estava esperando, entra em becos sem saída, contradiz-se, enxerga-se no espelho e dá risada do que vê. É nesse sentido um parente do stand-up comedy (claro que aqui estou pensando mais no Louis CK do que no Danilo Gentili). A melhor definição pra mim é da ensaísta Cinthia Ozick:

“O ensaio é o movimento de uma mente quando brinca”.

O ensaio se move, não está parado em ideias preconcebidas. O ensaísta vai imprimindo a sua subjetividade sobre a realidade, sem se deter em determinados pontos, tal como um andarilho que vai passeando pelas ruas, sem um objetivo definido de chegar a algum lugar — mas, por causa disso mesmo, acaba chegando. A realidade é uma paisagem mental para o ensaísta, que, como flâneur das ideias, se interessa mais pelo que está pensando do que pelo que está vendo em sua realidade objetiva — mas precisa da realidade objetiva para despertar suas reflexões. A realidade objetiva se converte em paisagem externa, assim como para o flâneur as ruas da cidade se convertem em uma espécie de cenário pro seu solilóquio interior. Baudelaire define essa diferença: há o badaud, o vadio que fica atrás de uma oportunidade, um malandro sempre atrás de uma chance, uma mulher, um roubo. E tem o flâneur, essa subjetividade que caminha. O badaud é o cinema-câmera do Dziga Vertov: ele quer saber como estão as pessoas, como elas vivem, em que se interessam. Já o flâneur, no conceito de um dos grandes ensaístas do século 20, Walter Benjamin, se interessa mais em despertar a sua própria subjetividade no contato com a realidade que mora do lado de fora de sua cabeça.

O escritor argentino César Aira diz que o ensaio é “o lugar inusitado onde se encontram saberes diferentes”. Já a professora Christy Wampole sustenta que o ensaio pode atuar como um DJ, sampleando, mixando e tirando o novo do já visto e ouvido. Essa ideia rima com a proposta de Benjamin, que queria criar um ensaio só usando epígrafes, citações e ditos alheios editados de uma maneira singular. Ele via o ensaísta como um pescador de pérolas, um sujeito que leu uma biblioteca inteira para colher meia dúzia de citações que, juntas, poderiam formular ideias inteiramente novas. Este conceito de “pescador de pérolas” está exposto à maravilha em um ensaio-perfil da filósofa Hannah Arendt no livro Homens em Tempos Sombrios (Penguin).

Arendt conta que o autor de Magia e Técnica, Arte e Política colecionava 600 citações. Notório bibliófilo, Benjamin ansiava por um ideal de ensaística todo estruturado em citações — “montada com tanta maestria que dispensaria textos de acompanhamento”. Este método de “perfurar” um texto para obter o essencial em forma de citação “é o equivalente moderno das invocações rituais, e os espíritos que agora surgem são aquelas essências espirituais de um passado que sofreram a ‘transformação marinha’ shakesperiana dos olhos vivos em pérolas, dos ossos vivos em coral”, diz Arendt, citando A Tempestade.

“Para Benjamin, citar é nomear (…), trazer a verdade à luz.” Citar, para Arendt, ou seja, falar através de vozes alheias, é a maneira como Benjamin escolhia para lidar com o passado. O pescador de pérolas desce ao passado para trazer à superfície “fragmentos de pensamento”, que então ganham novo contexto.

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Crônica: o ensaio como prosa rápida
Em um ensaio sobre a história do gênero no Brasil, Alexandre Eulalio afirma que uma das máscaras do ensaio, a crônica, é sua forma mais praticada e popular no país. A crônica nasce com craques como João do Rio, e depois Lima Barreto, ainda muito aparentada à reportagem e ao comentário de uma atualidade — daí o nome “crônica”, pois está muito atrelada ao espírito do tempo, além de estar conformada, a princípio, em um jornal.

Mas é só no período de ouro da crônica, os anos 1960, que surge um jeito totalmente brasileiro de cronicar, sob a sombra enorme de Rubem Braga. Na esteira vêm Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles e muitos outros, que aproximaram aquele texto tanto da poesia quanto da reflexão filosófica, e às vezes também da ficão pura. Um texto que cabe em um espaço pequeno, entre 3 e 10 mil toques, perfeito para jornais e revistas de grande tiragem, mas que passam a ser reunidos em livros e antologias, demonstrando a profundidade do gênero.

“A passagem da objetividade primitiva para um subjetivismo lírico mais ou menos radical corresponde a uma autêntica revolução nesse processo de focalizar a realidade, tornando o ensaio próximo da poesia pelas muitas possibilidades do flagrante lírico, mudando o ponto de vista exterior do cronista para o interior do sujeito, enriquecendo infinitamente as possibilidades do flagrante humano”, escreve Eulalio.

Temos aí então um primeiro passo excelente para começar a praticar o ensaio no que ele tem de mais espontâneo e leve. E a leveza, segundo Italo Calvino, é o ato de contrariar o peso do mundo, aliviar a espessura de tudo aquilo que obscurece o texto do mundo e nos obscurece. A leveza é uma espécie de pacto a estabelecer com a transparência. E, progressivamente, deverá tornar-se um estilo, uma dicção, um modo esperançoso de habitar a nossa história.

Com Calvino aprendemos duas coisas importantes sobre a leveza: a primeira de todas é que ela nos pede uma arte de resistência, pois só reconquistamos a leveza a custo de uma paciente luta; a segunda é a necessidade de ativarmos a nossa capacidade de deslocação (na verdade, só um olhar peregrino possui a agilidade espiritual para não se deixar sequestrar pelo desânimo). Daí Calvino lembrar o verso de Paul Éluard: “Ser como o pássaro, e não como a pluma”. A pluma não se move, é movida; o pássaro carrega em seu voo a intenção.

“Cada vez que o reino humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que (…) eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle”, diz Calvino em suas incontornáveis Seis Propostas Para o Próximo Milênio.

Ensaio-poema
Se ensaio, conforme Cinthia Ozick, “é a mente quando brinca”, e se poesia, na definição de Ezra Pound, “é o máximo de concentração de sentido em um mínimo de palavras”, seria possível escrever poesia em tom de ensaio? Temos uma longa tradição de poetas-ensaístas, do qual Drummond talvez seja o nome mais lembrado. Mas mesmo àqueles poetas mais afeitos à ressonância das palavras e ao rigor da métrica se encontra o típico movimento ondulante do ensaio — como João Cabral de Melo Neto, nosso poeta mais cerebral. O interessante é que, apesar de ser tão cerebral e tão afeito às ideias, reflexões e conceitos, toda a poesia de Cabral é fundamentada em coisas, em objetos físicos, em substantivos concretos. E mais: Cabral tem profunda aversão aos clichês. Ele não se satisfaz em comparar uma mulher a uma flor. Quer saber os porquês. É uma poesia explicativa. Suas comparações, por exemplo, não são líricas, e sim abstratas. Quando ele compara uma coisa a outra, destrincha a fundo quais são as camadas que ligam um objeto a outro. E o movimento deste destrinchar é o ensaio.

Como “Imitação da água”, um poema dos anos 1950, em que o poeta compara a mulher amada a uma onda na praia. Mas não exatamente isso: a onda está parada, pouco antes de se quebrar. Então o poeta faz várias aproximações a este conceito da onda parada, usando metáforas, aliterações, assonâncias e seu ritmo lento e venenoso. Ele quer dar conta de um paradoxo, uma onda parada, para comparar a uma mulher deitada. Assim, a onda se transforma em uma planta, em um olho, em uma montanha. O movimento do poema é ensaístico, ainda que ele use descrições. Vai até mudando o tempo verbal: a onda “parava”, depois “parara”, e depois “guardasse”, no subjuntivo. A conclusão é que a imobilidade da mulher deitada é precária, pois traz em si “o dom de se derramar”. Este dom é, para o poeta, da natureza íntima das águas. No entanto, apesar da sensualidade e da sugestão sexual, as águas podem ser traiçoeiras, “fundas”, trazendo uma “intimidade sombria” e “certo abraçar completo”, ou seja, o abraço do afogado, o abraço da morte. A cama então do início do poema se converte em um leito de morte. 

Dos anos 1950 aos nossos anos 10, temos um ressurgimento da forma ensaística dentro da nossa poesia, mas agora libertada da métrica, e aproximada às artes visuais. Em muitos poetas contemporâneos o ensaio tem sido incorporado justamente naquilo que mais o aproxima da forma da crônica: a epifania. Entre nós, uma das mais destacadas caçadoras de epifanias tem sido a poeta carioca Marília Garcia. Ela ganhou o Prêmio Oceanos em 2018 com Câmera Lenta (Cia das Letras) e acaba de lançar outra joia, Parque das Ruínas (Luna Parque). O poema todo reside em desdobrar um choque entre dois lugares que existem de verdade, em Santa Teresa: o Parque das Ruínas, que é vizinho da Chácara do Céu. Como o céu pode estar perto das ruínas? Como uma coisa vira outra coisa, sem deixar de ser uma? Marília cria uma cartografia poética, em que os temas surgem de vários lugares, e os lugares trazem memórias e reflexões. Mesmo que os lugares estejam longe uns dos outros, as reflexões os trazem para perto.

O tom de Marília é lento, bem humorado e prosaico. Mas aos poucos vêm aparecendo rimas, que podem ser visuais ou conceituais. Sim, rimas de conceitos: um conceito que aparece, depois some, e então volta de novo. E também há refrões conceituais — ideias que vão e voltam, como se sustentassem todo o poema, assim como um refrão sustenta uma canção. A forma do poema é a forma do ensaio, e o ensaio é justamente sobre como se forma um movimento, sobre como um lugar leva a outro lugar, desde que com significação, com sentimento. Marília não hesita em trazer o leitor para dentro do poema, convidando-o a pensar junto. Neste poema, além das múltiplas referências — algo também típico do ensaio —, Marília usa o recurso de imagens: fotos, cartões postais, imagens roubadas da internet (no que lembra Sebald). Quase como se estivesse brincando com uma espécie de ensaio universitário.

Ciência e poesia. Pesquisa e reflexão. Fora e dentro. Assim como se move, o ensaio também faz o leitor se mover. Muitas vezes é seu pensamento que faz com que o ensaísta se coloque em marcha, se mexa, tire a bunda da cadeira para investigar a realidade. E daí uma impressão sobre o mundo pode fazer com que o ensaísta se torne um repórter, um viajante, um pesquisador, um passeador. Mas ele pode mesmo duvidar da realidade, duvidar de como a realidade se estrutura, duvidar de seus sentidos. E traz da realidade uma reflexão. Neste sentido propus um formato a que dei o nome de pensata-playground. Uma união entre a apuração da reportagem, a sinuosidade do ensaio e certo tom intimista próprio à autoficção. Algo bem parecido com isso que estou escrevendo para você ler agora.

O ensaísta coloca a realidade em xeque. Ele não acredita em nada. O propósito do ensaio é continuar brincando, seguir ensaiando, e não chegar a uma conclusão. Deixemos as conclusões para os fanáticos religiosos e as inteligências artificiais. O ensaio induz o ser humano ao erro, e como somente o erro nos diferencia como humanos, só o erro pode nos levar a eventuais acertos. E esta afirmação aqui também pode ser — duvide sempre — um erro.