Capa | Sérgio Sant’Anna

Uma tarde com Sérgio Sant’Anna

O escritor mineiro-carioca se diz enfastiado com tanta literatura publicada no Brasil e reafirma o desejo de transformar sua escrita a cada novo trabalho 

Alvaro Costa e Silva

          Fotos: Daniel Ramalho
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Sérgio Sant’Anna está partindo do zero. Depois de três livros de relatos publicados entre 2014 e 2017 — O homem-mulher, O conto zero e outras histórias e Anjo noturno: narrativas —, ele se diz cansado da palavra escrita. Voltou ao ritmo que marcou sua trajetória iniciada na década de 1960: nenhuma pressa. Nos últimos meses deu por concluídos dois textos: “Bordel”, encomenda da revista Granta de Portugal, e “Anticonto”, experiência de metalinguagem que traduz o momento atual.

“De uns tempos para cá, peguei implicância com a palavra ‘conto’. ‘Anticonto’ é exatamente o que o título indica, um manifesto da minha saturação com o gênero ou com as definições que dão ao gênero. Tanto que no meu último livro fiz questão de usar a palavra ‘narrativa’, que me permite mais liberdade de temas, abordagens, tamanhos. Textos de 50 páginas ou de página e meia”, explica. 

O cansaço passa não só pela escrita, mas sobretudo pela palavra publicada. “É um absurdo a quantidade de livros que é desovada no Brasil, imagine no planeta inteiro”, diz o escritor, que recebe em casa, espontaneamente, uma média de cinco volumes por semana. “Minha impressão é que todo mundo escreve romance, basta ser alfabetizado. E vão ao Facebook falar do próprio livro. Se mais pessoas estivessem lendo, e escrevendo menos, a literatura brasileira estaria melhor. É a banalização total do fazer artístico, todos querem ser escritores, ninguém quer ser leitor. E ler, muitas vezes, exige mais talento do que escrever”.

Palavra de viciado. SS lê compulsivamente, à noite, podendo varar a madrugada. Acaba de terminar um clássico, Guerra e paz, na tradução de Rubens Figueiredo, a qual faz questão de elogiar: “Ela em si mesma já é uma grande obra”. Foi a primeira vez que leu a catedral de Tolstoi, “um mergulho na grande ficção e na História”. Outros escritores que leu recentemente com prazer de leitor puro, não contaminado pelo ofício: Alice Munro, Margaret Atwood, Leonardo Padura, as memórias de Nelson Rodrigues em A menina sem estrela (“literalmente genial”). Faz questão de indicar um estreante que lhe surpreendeu pela maturidade — Gustavo Pacheco, autor de Alguns humanos —, com quem dividiu uma mesa na Flip-2018.

Foi uma rara oportunidade de encontrar SS em eventos literários. Com problemas de circulação sanguínea nas pernas, ele vive a maior parte do tempo em seu apartamento de solteirão, no bairro das Laranjeiras, com vista para o Cristo Redentor. À tarde, escreve. Primeiro, à mão, em folhas de papel A-4, nas quais usa uma das incontáveis canetas de sua coleção. Para só depois passar ao computador, num processo de mais correções: “Escrevo todos os dias, mas só um pouquinho. Rascunho uma história, deixo de lado, pego outra, desenvolvo, largo, deixo o material respirar”. Cada frase, isoladamente, merece tratamento especial: “Ela pode sair mais ou menos pronta. Mas eu trabalho nela como se fosse uma sinfonia. Sinto que tenho um ouvido interior para frases. Não é fazer floreio. É a frase exata, capaz de transmitir aquilo que você está sentindo”. 

Até dar por terminado um trabalho, podem correr anos, dezenas de versões. A novela “Talk show”, um dos pontos altos de Anjo noturno, seguiu o esquema de lenta elaboração: “Um dia resolvi pegar aquele esboço e vi que, se o atualizasse, podia funcionar”. O resultado é hilariante, ao reunir um escritor autodepreciativo e uma apresentadora de entrevistas com um quê meio brega de Hebe Camargo. Outro exemplo é “Vibrações”, do livro O conto zero, que narra experiências vividas num programa de incentivo à literatura em Iowa, nos Estados Unidos, cujo primeiro tratamento literário data de 1972: “Foi um período espetacular da minha vida. Fiquei feliz de poder reviver na escrita aquela sensação de plenitude. Uma vivência que eu não queria que morresse nunca, e que de alguma forma consegui preservar ao escrever o conto”.

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A produção mais recente aponta para o biografismo ficcional, espécie de “museu da memória” (assim se intitula a narrativa que fecha o volume O conto zero). Ao domar o tempo da criação, o escritor revela questões íntimas que estavam sepultadas. É o caso de “A mãe”, retrato de mulher religiosa e pudica que escondia um segredo do passado. “Não há uma linha de invenção. Minha mãe era uma pessoa complicada, cuja vida me valeu para um texto bem pessoal e corajoso. É a minha visão da minha mãe, em cima de fatos verdadeiros. Se ela estivesse viva, eu não publicaria. Porque ela me mataria.”

Inquieto
Para SS, não há sentido em escrever sem estabelecer como meta um compromisso de mudança. “A cada nova obra, procuro fazer alguma coisa diferente. Do contrário, perderia a graça”, revela. Para driblar a mesmice, há o constante diálogo entre literatura e artes plásticas, marca da sua ficção. “Sempre me interessei por novos processos, e transformar o visual artístico em palavras me parece o melhor dos mundos. Se eu construir um livro que tenha como inspiração a própria literatura, vejo um grande risco de contaminação, até de certo plágio. Você pode se deixar levar demais pelo outro autor. Inspirando-me nas artes plásticas e no teatro, eu não corro esse perigo. Porque o que eu farei nunca será o que eles fazem”, conta o autor de “Amor a Buda”, texto de tom ensaístico em torno de uma escultura do artista contemporâneo chinês Li Zhanyang.

Na hora de escolher uma entre suas mais de 20 obras, a preferência vem engatilhada: A tragédia brasileira, de 1987, misto de romance e teatro, com diálogos apresentados com rubricas, e um universo de virgens atropeladas próximo, pelo menos na primeira parte da história, ao de Nelson Rodrigues: “Prefiro fazer teatro no livro, se é que isso é possível. Dessa maneira você faz o que quiser, tem a última palavra, como se fosse o diretor da peça. Sempre que mexi com teatro, escrevendo diretamente ou adaptando, fiquei furioso ao notar que meu texto desaparece no palco, às vezes substituído por cacos de ator”.

O escritor lamenta os três maços de cigarro que fumou durante um longo período da vida, vício que está na origem dos males de saúde que enfrenta hoje: “Envelhecer é complicado. Mentalmente, eu me sinto igual. Fisicamente, você já não está tão bem, tive de fazer operação no coração, nas pernas... A morte fica mais presente, não há como escapar. Embora a morte, em si, eu ache até uma coisa interessante. A vida é cheia de problemas, e o cara ao morrer se livra deles todos. O insuportável é o sofrimento, a decrepitude. Até a palavra decrepitude é horrível”.

Ao retornar da entrevista com SS, este repórter conferiu a caixa de e-mail. Lá estava: “Caro Marechal, achei ótimo o nosso papo, mas deixei de falar uma coisa importante. Aos 76 anos, procuro viver cada dia. E esse viver pode simplesmente ser não fazer nada, só curtindo o fato de estar vivo. Andei lendo bom livro de astronomia, Cosmos, de Carl Sagan. O que me faz pensar constantemente na grandeza do universo, levando-me a uma agradável consciência de ser parte ínfima de um todo infinito”.