Poemas | Marina Colasanti 23/04/2020 - 16:50

Agradeço

Agradeço cada poema

cada prato posto à mesa

cada ponto de costura ou

vírgula de escrita,

agradeço

cada gesto que me traz sorriso

e que se expande

por tudo dou graças,

sem saber a quem.

 

Em fundos goles

Quero retroceder

jantar com Henry James

falando de luz e esplendor em Veneza

passar a tarde com meu avô

na biblioteca da nossa villa em Roma,

falar de Tintoretto com um

e de Ravenna com o outro

de Palazzo Ducale

e de Theodora

tomar chá e grappa

entre fundos goles de beleza

para continuar enfrentando o árido

século XXI

em que me toca viver.

 

Se apenas

Atravessei descalça

o ferro e o fogo

deixando atrás de mim

rastro de pranto

como se só o sofrer me fosse amigo.

Agora

quando o fim já se faz perto

e caminho na estrada sem espanto

sei que o antigo penar

foi-se no tempo

e me adoça a garganta

quando canto.

 

Ilustração de Ricardo Humberto
Ilustração: Ricardo Humberto

 

Útero em sangue

Ditas impuras como os leprosos

mulheres menstruadas

 ou paridas

tinham vetada a entrada

no Templo de Jerusalém.

 

Esqueciam os sacerdotes

— ou muito se lembravam —

que sem o útero em sangue

das mulheres

não haveria Templo

nem sacerdotes

nem homem algum dos tantos de Israel

com sua usurpada pureza.

 

Atrás do vidro

Vivemos vulneráveis e expostos

como lagosta em tanque de restaurante

à espera de que alguém se aproxime

— esse difuso alguém que não sabemos —

e apontando com o dedo diga:

“É esta.”

 

Amigos meus

Onde estão vocês

com quem sentei à mesa

e verti vinho?

Não pediram asilo

não fizeram as malas

selo nenhum foi posto em passaporte e

no entanto

não respondem se chamo.

 

O passado tampouco é confiável.

Tudo é percurso

de uma casa a outra casa

de um tempo que passou a outro que chega

do princípio até o fim

— esses parâmetros que nos foram

vendidos com a passagem

e talvez nem existam —

tudo é viagem.

E como as dos aviões, as rotas

não se encontram.

 

MARINA COLASANTI é escritora, jornalista e tradutora. Já publicou mais de 60 livros, entre contos, poesia, prosa e infantojuvenil. Os poemas publicados pelo Cândido fazem parte do livro Mais Longa Vida, recém-lançado pela Record.