Pensata | Paulo Polzonoff Jr. 17/03/2020 - 15:36

Geração Melancia no Pescoço


Paulo Polzonoff Jr.

Pretendo falar sobre o melancólico renascimento da poesia popular brasileira, representado principalmente pela aparição cotidiana de Fabrício Carpinejar e Bráulio Bessa no programa matinal Encontro com Fátima Bernardes. Mas, antes, preciso fazer umas considerações sobre a popularidade, abrangência e relevância da poesia entre a elite brasileira até a década de 1980 — pedindo já perdão pela imprecisão cronológica. É que não sou nem pretendo ser acadêmico.

O leitor de hoje em dia pode não acreditar, mas não faz muito tempo (só velhos como eu acham que uma coisa que aconteceu há 40 anos não se enquadra na categoria “não faz muito tempo”) a poesia — sim, a poesia! — era não só relevante no debate público como também era popular. Falo “popular” não no sentido de hoje em dia, carregado de coisas como “lugar de fala” e luta de classes e identitarismo. Falo popular no sentido compreendido justamente pelas pessoas que consumiam Drummond e Vinicius de Moraes até os anos 1980, isto é, como algo que certa elite intelectualizada consumia ávida e orgulhosamente.

Naquela época, consumir poesia era sinal de status — mais ou menos como é hoje andar pela praia com aquelas caixinhas de som bluetooth tocando funk ou hip-hop. Todo intelectual que se prezasse (e aqui estou pensando em vários níveis de intelectualismo, desde o erudito versado em grego antigo até o reles jornalista) sabia ao menos alguns versos de cor de seu poeta preferido. E, quando não sabia de cor, sabia em que livro procurar o poema específico para a ocasião específica.

Poemas importavam. Não que presidentes ou vereadores citassem poetas em comícios. Até porque a política nunca foi afeita a essas coisas da alma, nem mesmo quando “essas coisas da alma” flertavam explicitamente com a política. Tampouco o metalúrgico apertava melhor o parafuso depois de recitar um poema de Bandeira. Não.

Mas, entre os formadores de opinião, palavrinha démodé substituída hoje pelas formas cafonas “influenciadores” ou influencers, um poema com a assinatura de Drummond ou de Ferreira Gullar ou até de, vá lá, um Mário Quintana tinha algum peso.

Poemas serviam, se não para esclarecer o leitor, para ilustrar conceitos abstratos. Sim, caro leitor, porque houve um tempo em que os próprios intelectuais nutriam certa vergonha virtuosa de sua incapacidade de transformar em beleza aquele palavrório todo cheio de vírgulas e conjunções e notas de rodapé e infindáveis citações, sem falar nas opressoras regras da ABNT. Daí, quando a coisa ficava técnica demais e ameaçava escapar da força gravitacional da Terra, usava-se um poema.

 

Ilustração de Aline Daka
Ilustração: Aline Daka

 

Mas então alguma coisa aconteceu. Alguma coisa estranha. Há autores que creditam o fenômeno à ascensão de certo espírito técnico em nossas sociedades. O que faz sentido. Os poemas passaram a ser substituídos por gráficos. “Essas coisas da alma” viraram motivo de chacota. E os intelectuais, do erudito versado em grego antigo ao reles jornalista, passaram a dar mais valor ao tal rigor acadêmico e ao Manual de Redação da Folha de S.Paulo.

É curioso notar que, paralelamente à ascensão dessa visão técnica do mundo, os poetas abdicaram de um papel de honra no debate público para se tornarem outra coisa — algo difícil de definir sem apelar para imagens muito pouco poéticas. Eles abandonaram os jornais e as conversas de banco de pracinha do interior para se encastelarem em delírios editoriais e principalmente na universidade. Onde, sabe-se, ninguém lê poesia. Lá, estuda-se poesia, o que é bem diferente.

Foi uma mudança lenta, mas profunda. Mudança essa que não refletia uma forma diferente de encarar só a poesia, e sim toda a cultura. A poesia virou assunto a ser discutido, ou melhor, dissertado com um objetivo muito claro à frente: o diploma com o carimbo do MEC e, com alguma sorte, um cargo de professor numa instituição federal, com estabilidade e um salário que, apesar das reclamações, é mais alto do que o da maioria dos brasileiros. Em resumo, o leitor de poesia se profissionalizou.

Aí é que entram os poetas que volta e meia aparecem no programa Encontro com Fátima Bernardes. Nada contra a popularidade deles. Muito menos contra o bom cachê que recebem e merecem. Nada contra, de jeito nenhum, seus best-sellers que com sorte esgotam duas edições. O problema está na forma como esses poetas encaram a poesia, o que na minha época se chamava “fazer poético”, e principalmente como os espectadores a consomem.

A poesia, que durante décadas lutou para se afastar da pompa ridícula dos saraus parnasianos, voltou a ostentar essa mesma pompa, só que agora em cadeia nacional. Não, o poeta não se orgulha mais da tísica melancólica aliada à mais rigorosa métrica. Ele prefere escrever algo no couro cabeludo e ostentar óculos espalhafatosos que são a cereja do bolo de um figurino todo performá - tico, na esperança, ou melhor, no desespero de recuperar a relevância de não-tão-antigamente-assim.

E qual a forma mais eficiente de fazer isso se não apelar ao sentimentalismo rápido e raso tão característico da televisão contemporânea? É dessa necessidade de se fazer notado e, com alguma sorte, lembrado cinco minutos depois de subirem os créditos do programa de variedades que nasce a poesia aforística de Fabrício Carpinejar, por exemplo. Aforismos que muitas vezes não resistem a um escrutínio maior. Mas quem é que tem cabeça para escrutinar poesia às 11h da manhã de uma quinta-feira nublada?

Ao mesmo tempo Bráulio Bessa, com seus cordéis que insistem em rimar amor e dor (mas com aquele olhar para a câmera de quem não só sabe usar palavras bonitas como também já passou muita necessidade na vida e, por isso, conquistou o tal “lugar de fala”), aprofunda o fosso entre a poesia-poesia, isto é, a poesia do tipo que Bruno Tolentino fez, e a poesia dessa geração cheia de boas intenções, mas de qualidade questionável, que há de ficar conhecida como a Geração Melancia no Pescoço.

E, nesse desespero por evocar cotidianamente Fernando Pessoa e ser qualquer coisa que não nada, os poetas televisivos fazem questão de ignorar o problema mais importante da poesia-poesia nos últimos 40 anos: o fato de a elite intelectual simples - mente ter deixado de se importar com “essas coisas da alma” para se importar com hashtags, relatórios de venda e o próximo prazerzinho fugaz de ouvir, pela bilionésima milionésima vez, dor rimar com amor.

 

PAULO POLZONOFF JR. é jornalista, escritor e tradutor. Publicou, entre outros livros, Desculpe & Outros Textos que Ninguém Vai Ler (2018) e Zero Vírgula Nada (2017).