ENTREVISTA | Miriam Alves 29/04/2022 - 12:39

Corte e sutura

Miriam Alves completa 70 anos de vida e 40 de carreira literária com lançamento duplo que expressa sua versatilidade

Hiago Rizzi

 

Uma pesquisa no Google pelo nome de Miriam Alves leva a uma página da Wikipedia em inglês. Em parte isso se deve ao seu envolvimento com o Quilombhoje, coletivo que publica a série Cadernos Negros desde 1978. De lá surgiu a ideia de enviar textos de autores negros brasileiros para universidades e bibliotecas norte-americanas. A partir dos anos 90, depois de integrar e organizar antologias de poemas e publicações acadêmicas internacionais, participou de eventos nos Estados Unidos. A segunda justificativa, também coerente, é o sistêmico apagamento de autores negros no Brasil.

Miriam Alves é uma escritora desviante. Desviante na forma, por não se comprometer com nenhuma escola, e nos temas, por não atender preconceitos sobre o que é a literatura produzida por pessoas negras. Sua ficção está interessada em alternativas para a realidade. Desde 1982, quando estreou na quinta edição dos Cadernos Negros, escreveu poemas, contos, romances e ensaios — “Eu não domino todas as técnicas, mas gosto de perseguir”, afirma.

Os 40 anos dedicados à escrita são comemorados agora com um lançamento duplo: Miram Alves Plural (Fósforo, 2022) apresenta textos teóricos, ensaios críticos e depoimentos sobre a obra da autora paulistana, enquanto uma coletânea reúne todos os poemas produzidos por Miriam durante essas quatro décadas, a maior parte deles esparsos até agora, pela Círculo de Poemas (parceria da Fósforo com a Luna Parque).

De Maricá (RJ), onde vive há alguns anos, a escritora falou ao Cândido sobre sua relação com o mercado, práticas de produção e a circulação da sua obra ao completar 70 anos.

 

Como chegamos à publicação dessa reunião de poemas?

Eu estava fazendo uma seleção dos meus poemas para outra editora, aí veio o convite da Fósforo. Fiquei muito dividida e em dúvida sobre aceitar. Em várias reuniões com a equipe eles foram me explicando a proposta de trabalho. Tive só uma exigência: “Não me façam selecionar esses poemas, porque vocês nunca vão ter um livro, vai mudar tudo”. A minha vida mudou, a minha forma de ver o mundo amadureceu, todas essas coisas. Fiz alguns poemas quando tinha 20 e poucos anos, agora vou fazer 70. Lapidei minha escrita — para melhor ou para pior, não sei —, sou muito mais exigente e crítica comigo mesma. Eles toparam, queriam os poemas reunidos. Aí a conversa foi com o Leonardo Gandolfi, curador do livro. Me surpreendeu que ele conhecia muita coisa minha, disse que é difícil encontrar meus poemas. Como eu estava em processo de mudança, de São Paulo para Maricá, não tinha meus livros aqui, só os que trouxe para pesquisa dos Cadernos Negros, que eu escaneei e mandei para ele. Ele entrou em contato com outras pessoas e fomos achando coisas que eu havia esquecido, como os poemas no Profundanças, projeto de escritoras mulheres na Bahia, com poemas e imagens.

 

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De alguma forma você perdeu o controle sobre a circulação dos seus trabalhos?

Faz muito tempo. Eu tenho poemas na Holanda, Irlanda, Alemanha, França… Não sei mais onde estão as minhas coisas. Antes ainda tinha um controle, atualmente estou tentando, mas fica difícil. Só escrevi dois livros autorais de poesia. Então esse livro, de 385 páginas, tem muitas coisas espalhadas. E faço questão de espalhar. Eu tenho uma pasta de arquivos, mas vou para frente, por isso não gosto de editar. Se chega um convite e acho que a proposta é boa, eu aceito, ou não, e o mundo continua. São publicações que às vezes demoram anos para sair. Acho que quando era jovem eu ficava preocupada, mas agora não, vou fazendo. Uma hora sai, ou não sai. Vou me espalhando. Quando o Leonardo e as editoras começaram a juntar esse material foi muito emocionante, saber que eu tinha produzido tanta coisa. Produzi 385 páginas de poemas em 40 anos. E tenho muitos inéditos, perdi muita coisa no computador, livros inteiros. Agora tem a tal da nuvem, mas antes o computador “dava pau”, você mandava consertar, ele era “resetado” e você perdia tudo se não tivesse backup.

 

Alguns poemas seus falam em teclar, inclusive. São mais de 40 anos escrevendo, como a tecnologia afetou a sua produção?

No início escrevia à mão, depois reescrevia, ia à máquina de escrever e datilografava, riscava e datilografava de novo. Quando comprei o computador não escrevia direto, fazia a mesma coisa — escrevia à mão, passava para o computador e editava. Depois de um tempo passei a fazer poemas direto no computador. Eu tenho uma prática que vem dessa experiência: não jogo o original fora. A dificuldade do Leonardo foi que alguns poemas têm dois ou três formatos em outras publicações. Se a mudança fosse muito significativa, a gente colocaria os dois, em outros optamos pela primeira publicação, e assim foi feito.


A tecnologia não só mudou a forma de grafar mas também me deu muito fôlego para escrever romances. Um capítulo de um romance muda quatro ou cinco vezes, depois ainda tem a revisão da editora. Outra coisa que a tecnologia ajudou muito foi a questão da pesquisa, às vezes as pessoas não dão muita atenção às coisas que saem nas redes sociais. Além de fazer contatos, tem toda essa situação de ler o que as pessoas escrevem nessas redes, e isso para mim é matéria-prima muito rica. Quando existiam as salas de bate papo, eu estava fazendo uma pesquisa de como as pessoas se transformavam em personagens para entrar nessas salas. Não tinha como “printar”, então ficava com um papel do lado anotando as conversas.

 

Antes de se dedicar exclusivamente à escrita, você atuou como assistente social. Essa Miriam influenciou a escritora? De que forma?

Só influenciou. Aliás, influencia até hoje. O meu livro de contos Juntar Pedaços (Malê, 2021) são histórias que eu ouvi ao longo da vida. São 30 anos de serviço social trabalhando na saúde, praticamente só com mulheres. Trabalhei nas duas pontas, pediatria e geriatria — quem leva as crianças e cuida de idosos nos hospitais geralmente são as mulheres. Têm muitas histórias dessa época dentro de mim. Muitos gritos, muitas dores, algumas mortes, dilaceramentos. Uma vez eu disse para meu pai que optei por uma profissão que trabalha com o cu do mundo. Eu podia ser agente de turismo, né? Era muito jovem, 20 e poucos anos, e tinha uma ilusão com o mundo — por isso fiz serviço social. Tem muitas histórias que não consigo escrever porque são muito impactantes. Atualmente tenho um propósito comigo, com a minha escrita em particular: a minha escrita enquanto mulher, negra e escritora tem que ter um viés de saída, não é só relatar ou dizer, não só das mazelas ou das alegrias — tem que ter alguma coisa, é a ideologia da minha escrita. Tem que ter alguma saída porque as realidades que eu escrevo são muito duras, como dura é a vida da população negra nesse país que se diz cordial mesmo sendo formado dentro da coisa mais cruel, que é a escravidão. Algumas histórias eu ainda não coloco porque não vejo como ficcionalmente posso dar uma pilulazinha de esperança ou aliviar a dor. A palavra fere, mas também cura. Mesmo que você tenha que dar um corte para suturar depois, ela cura. Na escrita, eu quero dar esse corte sabendo que tenho linha, uma agulha de costura e também um analgésico.

 

Miriam Alves Plural traz algumas discussões sobre os trabalhos de Zula Gibi, pseudônimo que você criou em 1985 para publicar escritos homoafetivos. Houve algum tipo de resistência à publicação desses textos? Como você vê essa questão hoje?

A sociedade não é um espaço aberto para você falar o que quiser, mesmo se você for um escritor. Não importa que seja um grupo de literatura negra, um jogo de bingo ou na praia. Todos esses valores e conceitos estão com a gente, mesmo se você for numa boate gay. Não é porque você é gay, negra, mulher ou homem que você não traz esses valores dentro de você, mesmo que os negue. É necessário um corte bem fundo para tirar isso, e não matar o paciente — se você matar, vai ser culpabilizado por essa morte. Não foi fácil, não tinha fala para isso — até hoje, dentro dos Cadernos Negros, não tem. Entram algumas coisas, mas depois as cobranças são terríveis. Zula conta isso. Para manter o equilíbrio mental, e inclusive físico, você vai ter que seguir o fluxo. E dentro desse fluxo falar o que quer, mas não o que deseja. Você pode falar de desejo, mas não do que você deseja. Os contos de Zula são românticos, tem um livro todo que eu escrevi como Zula que talvez nunca publique. Você percebe o que Zula conta: você nunca está em lugar nenhum a partir do momento em que é mulher e negra. Então como você nunca está, vai criando personagens e, para não ser esquizofrênico e psicótico, é escritor. Porque aí pode. Pode mentir, matar, desejar, fazer sexo trial (como no conto “O Abajur”), só que é cobrado depois. Como se a pessoa que te cobra não fizesse. Como você disse que o rei está nu? Porrada em você. É necessário manter um equilíbrio entre a ficção e a realidade, e para manter esse equilíbrio eu escrevo de novo. Por isso escrevo bastante.

 

Pouco tempo antes da pandemia, você disse, em entrevista, que o mercado aceita escritores negros que falam a partir de um lugar de “falta”, que não é o seu. Algo está mudando nesse quadro?

Volto à primeira pergunta. Como foi com a Fósforo. Entre várias conversas, perguntei: “Por que eu? Eu sou sua primeira opção ou sua melhor segunda opção? Porque o normal seria vocês convidarem a Conceição Evaristo, que está na mídia”. Depois conheci o Leonardo, que estava lendo minhas coisas, mas já entrei metendo o pé na porta. Aí falei: “E o que vocês querem? Querem Miriam Alves escritora negra ou seu discurso que não é para despertar o branco dos seus sonhos injustos?”. Acho que toda a escrita negra tem um objetivo, mesmo que não seja explicitado — vingança, revolução, etc. Eu quero causar pesadelos. Acho que quando a pessoa enfrenta seus pesadelos, ela desperta. “Vocês querem uma cara negra?”, porque ser negro e publicado está na moda — a Flip caiu num fracasso depois do “Arraiá da Branquitude”. Eles disseram: “A gente quer você do jeito que você é”. Aí eu topei. Não é para dourar a pílula ou com medo de não ser publicada. Faz 40 anos que não sou publicada, posso esperar mais 40. Depois que eu morrer todo mundo vai querer publicar. Eu posso querer não ser publicada, eu me publico, tem editoras pequenas que me publicam. Agora tem uma editora em que a chefe é uma mulher jovem e branca, nós conversamos e eu gostei. Não é sobre aceitarem o que falo — eu posso falar, questionar e ser questionada sem que a nossa relação comercial, da publicação do livro, seja abalada.

 

Você está trabalhando em algum projeto nesse momento?

Quando as publicações saem você fica meio refém delas, pela divulgação. Em relação aos projetos de escrita, a pandemia me destruiu emocionalmente. Havia começado a escrever um romance sobre a terra, continuação de Maréia (Malê, 2019) que é sobre a água, mas para me acalmar escrevi os contos de Juntar Pedaços, mais fácil no sentido de não ter que fazer um mergulho tão longo para chegar ao fim da história. Meu plano é terminar esse romance, só que nesse intervalo comecei a escrever outro livro de contos e entre tudo o Sesc entrou em contato para eu escrever um folhetim — estou com um monte de coisas.