CONTO | Marcos Pamplona 29/04/2022 - 11:36

O homem ao lado

 

Pouco a pouco as luzes da cidade vão rareando. O ônibus avança agora por uma estrada quase deserta. Ele segura o livro nas mãos, mas não se anima a ler. É bom ficar olhando pela janela para a paisagem noturna. Às vezes surgem ao longe grupos de árvores que parecem conspirar; aqui e ali, o lume solitário de uma casa oscila na escuridão. De vez em quando lembra-se de coisas que, cada vez mais distantes, perdem nitidez e ganham doçura. O amigo falando de Lady Macbeth no supermercado, enquanto escolhia batatas. Sua mãe afundada na velha cadeira de vime, a enxugar o suor do rosto com o vestido (“Estou cansada desse lugar”). Um pouco antes da separação (ou depois?), Silvia correndo atrás do chapéu, que fugia dela em ziguezagues pela rua. As imagens surgem e se esvaem sobre o fundo escuro dos campos; ele fecha o casaco, frui o prazer de estar só de passagem.

Ultimamente gosta mais de viajar, principalmente se não é ele quem dirige. Em movimento, mas inerte, esquece as inquietações habituais. Algo já está sendo feito, não é preciso culpar-se de não estar fazendo nada. Então a cabeça se ocupa daquilo que realmente importa. E o que realmente importa, pensa, é o que não tem importância nenhuma. O que se leva toda uma vida a desprezar, a sensação serena de estar vivo e bem, sem nada urgente para fazer ou declarar.

Reclina a poltrona. Está quase dormindo quando o homem ao seu lado mexe na mochila. Mal tinha reparado nele, mas o barulho que faz torna isso inevitável. É um sujeito grande, mais pançudo do que gordo. Na penumbra, dá a impressão de estar só de sapatos, sem meias. Tem um nariz grande, arroxeado. Tira da mochila uma garrafa metálica, desenrosca a tampa e dá um gole. Uísque, ele pensa. Nunca tinha cogitado beber uísque numa viagem de ônibus, mas 47 não é má ideia. O homem percebe que está sendo observado, ajeita-se no banco com a garrafinha no colo.

— A janela está ficando embaçada, diz. Estamos subindo o planalto, lá em cima é muito úmido.

Concorda com a cabeça. O homem se anima:

— A porta da minha casa chora.

Ele fica olhando para o sujeito, não sabe o que dizer. Seria um poeta?

— É uma dessas portas de alumínio que imitam madeira. Fica muito úmida durante a noite. O senhor quer um gole?

Ele recusa, mais por ter que pôr a boca na mesma garrafa do que pelo uísque. Aliás, se quiser dormir, não deve esboçar reações. O homem está bebendo, vai ficar animado. Ele finge adormecer; acaba dormindo mesmo.

Bate a cabeça no vidro, acorda. Quase nada mudou. O homem segura a garrafinha, insone, no escuro. A única diferença é que a janela está completamente molhada. Ele usa a manga do casaco para ver lá fora. A escuridão é densa, não se vê muita coisa. Pelo ronco do motor percebe que estão subindo uma ladeira, talvez seja a serra. O frio incomoda, seus pés estão gelados.

— O ar-condicionado devia estar ligado.

— Está ligado. Mas nunca esquenta o suficiente, diz o companheiro de viagem. Só então repara que sua voz é rouca, funda, uma dessas vozes que parecem desfiadas pelo vício.

Estende-lhe novamente a garrafinha. Ele agora aceita. Não é uísque, é vodka, uma boa vodka.

— Você vai se sentir melhor. Não existe nada pior do que a lucidez.

Pego de surpresa, ele ri. O homem, porém, fala sério.

— Fiquei dois anos sem beber. Foram os piores da minha vida.

Lá vamos nós, pensa ele. Mais um estranho que, do nada, surge à sua frente para contar intimidades. Ele sempre fica constrangido, mas devia se acostumar. Há pessoas (e não poucas) que adoram “ficar nuas em praça 48 pública”, como dizia seu pai.

Passam por um posto policial, a luz dos postes invade o interior do ônibus. As pessoas dormem, deixam-se levar, algumas embrulhadas em cobertores. Ele pensa que estão sonhando, que seus sonhos ignoram a jornada do corpo noite adentro. Quando acordarem, estarão em outro lugar. E tudo que lhes aconteceu no percurso (a fábula descosida do sonho) jamais será lembrado. A vida paralela dos sonhos. As muitas vidas paralelas que temos.

A vodka abriu seu peito, tornou-o receptivo; ele até gosta quando o homem diz:

— Naqueles dois anos, foi como se eu saísse de um porão, como se eu visse a casa onde eu morava. O mundo onde eu estava. Não foi bom, não foi nada bom. Mas era necessário.

Os dois bebem novamente.

— E o que foi que você viu? — Uma mulher, uma filha. As duas ficaram espantadas, bem espantadas. O pai acordou cedo? O pai parou de beber? Ele fez a barba, é? Vestiu roupa limpa? Ele quer falar, ele quer saber o que a gente está fazendo, onde a gente está indo. Hehe! Elas não sabiam o que fazer comigo. Estavam acostumadas daquele outro jeito.

— Você bebia há muito tempo.

— Desde os dezesseis anos. Me formei bêbado. Me casei, tive filho, trabalhei, sempre bêbado. Fiz o que todo mundo faz, essa correria insana, meio de longe, numa nuvem de álcool. De repente, aos cinquenta e cinco, me cansei, quis ver como era o mundo fora da nuvem. Sabe o que eu descobri? Descobri que eu não teria feito nada daquilo se não estivesse bêbado.

Agora os dois riem. O ônibus se arrasta serra acima. Paredões de pedras reluzentes, abismos negros passam ao seu lado. Os passageiros perambulam pelos sonhos. Não se vê o motorista, é como se o ônibus andasse sozinho, sonâmbulo.

— Não teria... A mulher era uma estranha, uma funcionária pública amargurada com a estabilidade da vida. 49 Vivia falando com a mãe no telefone, dormia sozinha com três gatos, chapada de ansiolítico. E a minha filha era uma garota espinhosa que não me dirigia a palavra. Dormia às vezes lá em casa, mas vivia mais na casa do namorado.

— Você quer dizer que começou a ver as coisas com mais nitidez. Porque antes você já sabia que...

— Antes eu não queria ver. Aquilo tinha um equilíbrio, apesar de eu andar caindo pelos cantos. Todo mundo era sozinho junto, funcionava. Eu com a minha garrafa, a filha com o namorado, a mulher com os gatos. Eu quebrei o pacto. Quis unir as pessoas. Mas era tarde, ninguém mais ali queria saber do outro... Desde que o outro estivesse por perto, tudo bem.

— A família.

O homem faz um gesto com a mão mostrando os passageiros à volta deles. Deixa cair a mão, olha para os sapatos.

— Aí você voltou a beber.

O homem coça seu enorme nariz arroxeado.

— Primeiro eu fui embora. Vim morar aí em cima, numa cidadezinha onde ninguém me conhece. Já que é pra ser sozinho... Agora eu encho a cara sem nenhuma preocupação. Ando descalço pela casa, ouvindo minhas músicas. Gosto de ouvir o beijo do pé no assoalho de madeira... Já disse ao senhor que a minha porta chora?

 

Quando ele acorda, já amanheceu. Os primeiros prédios surgem à beira da estrada, estão chegando ao destino. O homem não está mais ao seu lado. Ficou em algum dos lugarejos perdidos entre as montanhas.

 

 

Marcos Pamplona (Curitiba, 1964) é poeta, cronista e editor. Seus poemas foram selecionados em três edições do Prêmio Off Flip de Literatura, integrando as coletâneas de 2006, 2008 e 2010. Publicou o livro de poemas Transverso, pela Kotter Editorial, em 2016, e o livro de crônicas Ninguém nos Salvará de Nós, em 2021, também pela Kotter. Vários textos seus podem ser encontrados em publicações e projetos como Mallarmargens, Jornal Relevo, Pássaros Ruins, Radiocaos e Musa Rara (Brasil); Revista InComunidade e Leiria Poetry Festival (Portugal). Vive em Lisboa, onde é editor da Kotter Portugal. Desde abril de 2019 escreve crônicas para o Jornal Plural, surgidas de suas andanças pelas terras portuguesas.