À procura da batida milionária 10/01/2019 - 11:00

Beatmakers fundamentam a economia criativa do hip-hop em Curitiba e transformam a cidade em centro de empreendimentos relacionados ao movimento

André Pugliesi

David Vinicius de Souza, 20 anos, já correu como repositor de produtos em mercadinho, esquentou a bunda na recepção da Sanepar e meteu calça cinza, calçou Conga e lambuzou a camisa de massa de sorvete como menor aprendiz no McDonald’s do Água Verde. Até decidir abandonar os trampos convencionais para abraçar um novo ramo. Profissão: beatmaker.

Sob o codinome de Bêrabeats, o jovem de 20 anos integra a base de uma economia criativa estabelecida em Curitiba. Permeável às culturas urbanas, celeiro de skatistas nos primórdios dos anos 1990, e referência do rap no Brasil, a capital do Paraná hospeda uma série de empreendimentos associados aos beatmakers, eixo principal do mercado. Virou polo de marcas de roupa, produtoras musicais e festas.

 

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Bêrabeats, 20 anos, morador do bairro Pinheirinho: "Meu foco é ser um empreendedor".

 

“Fazedor de batidas”, na tradução do Google do inglês para o português, o beatmaker concebe o “ritmo” do rap (sigla para rhythm and poetry). E, ainda segundo os fundamentos do estilo, nascido nos Estados Unidos, é o MC, ou mestre de cerimônias, o responsável por desenrolar a “poesia”. Em 2017, pela primeira vez, o gênero desbancou o rock como o mais ouvido entre os americanos, segundo a medição do instituto Nielsen.

A atividade confunde-se com a de DJ e produtor e estourou junto com o movimento hip-hop, ao longo da década de 1970, nas ruas e galpões do Bronx, em Nova York. Requer manjar de música e dominar a tecnologia para processar batidas, loops e samples — tocar instrumentos é um trunfo considerável.

“Boto fé na minha arte, no valor dela. Com toda certeza, na minha cabeça, conseguirei fazer disso o meu trabalho. Passou a época de encarar como um hobby. Meu foco é viver como um beatmaker, ser um empreendedor, ganhar dinheiro para me manter. É uma oportunidade nova”, comenta David (fala-se Dêivid), um entre tantos candidatos ao ofício na capital.

Ele assumiu o emprego em caráter autônomo empurrado por três fatores. A vivência no Coritiba e as batucadas nas rodas de samba dos aspirantes a boleiro. Os shows do conjunto local de hardcore Thirsty of Hate. E a perícia com mouse e teclado forjada no Counter Strike, game de tiro em primeira pessoa, cujos entusiastas vibram ao abater inimigos com balaços certeiros na testa.

Hoje o filho de Andressa, porteira, e Devanildo, vendedor de roupas, é o DJ e beatmaker titular do Poesia 163, grupo de rap formado com o irmão Diogo, 18 anos. Da casa em um terreno compartilhado no Pinheirinho, Bêrabeats elabora as batidas num PC rudimentar e sobe as faixas no SoundCloud e no Beatstars, plataformas de streaming, divulgação e, especialmente, monetização na internet.

 

MÚSICA E STREET WEAR

 

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Beatmakers como Ganesh, 31 anos, estão construindo uma cena profissional e sustentável


A popularização de softwares de áudio como o Fruity Loops, em suas versões piratas e, finalmente, gratuitas, permitiu a qualquer um, pregado em frente de um computador, ou até com um celular na mão, tirar onda de beatmaker. David gera o seu sustento com a função. E a próxima fornada vem com dez pedradas, cada uma à venda por R$ 150 — rola pechinchar e, se transar sete, é grana para aguentar o mês.

Igualmente em sociedade com o irmão, Bêrabeats tramou a marca de camisetas Trash Company. Panos encomendados pelo Facebook, com inspiração em grifes como Supreme, mania entre os adeptos da street wear. Um outfit com a inscrição I Like Rap $ujo, por exemplo, custa R$ 39,90 e pode ser adquirido na loja Kurwa Sports, na Rua da Cidadania da Praça Rui Barbosa.

No topo da cadeia está Nave. Nascido em Santa Catarina, Vinícius Leonard Moreira mudou-se para o Paraná pirralho. Aos 35 anos, é um beatmaker celebrado pelo Brasil. Revelado por Marcelo D2, costurou rimas de Emicida, Criolo, Kamal, Rodrigo Ogi e representou a força musical em Batuk freak, disco de estreia de Karol Conka — a rapper do Boqueirão que explodiu as fronteiras e conseguiu fama nacional.

“Vendi os meus primeiros beats em 2005, já para uma gravadora, para o disco do D2, Meu samba é assim. A partir daí, comecei a encarar de uma maneira mais profissional. Com a primeira grana com beat, comprei uma cama para mim, pois dormia num sofá-cama”, recorda Nave. Cria do Bacacheri, Vinícius chegou a perambular pelo shopping Mounif Tacla, clássico point de rap na Praça Generoso Marques, fechado em 2003.

O apelidado Zica da Base não precisa oferecer beats no varejo. Atende encomendas e teve de se adequar ao patamar e fluxo de caixa rapidamente. Constituiu editora, virou empresa, contratou contador, está cercado para travar negociações em busca de direitos autorais com executivos de gravadoras — como na campanha feita para a Olimpíada do Rio de Janeiro, em 2016, a convite da Caixa Econômica Federal.

O desafio atual é enquadrar-se num regime de trabalho padrão, quase em horário comercial: “A rotina vai ganhando uma cara de atividade formal. Porque a demanda cresce, você precisa se organizar, estipular prazos, coisas recentes na minha vida. Estou tentando acordar mais cedo, ter um horário, como os grandes trabalham”, comenta Nave.

 

"VAI, MALANDRA"

 

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Outra cria da região sul, como Bêrabeats, também granjeou o topo das paradas. André Murilo da Silva, o Laudz, de apenas 26 anos, é o mais internacional dos beatmakers curitibanos. Cumpriu turnê recente como DJ por Shangai e Bali e costuma flanar por Los Angeles, onde esbarrou com Dr. Dre, o rei dos beats, primeiro rapper a sapecar a casa do bilhão de dólares em faturamento.

“O encontro com o Dr. Dre foi algo mágico, o momento mais importante da minha vida, pois é minha maior influência”, rememora Laudz. Com o Tropkillaz, duo que forma ao lado do DJ Zegon, o piá da Vila Acordes emplacou as pancadas do funk “Vai malandra”, de Anitta, música recordista de execuções em streaming — em menos de um ano no ar, são 310 milhões de plays só no YouTube.

O DJ Zegon, ou Zé Gonzales, 49 anos, empreendeu carreira com o Planet Hemp e Marcelo D2. Veterano, o paulista exalta o cenário curitibano. “Sempre foi um mercado muito forte. No final dos 90 já acompanhava vários DJs detonando. Primo, Ploc, Jeff Bass, Antu. E depois vieram os beatmakers, como o Nave e o meu parceiro e irmão Laudz.”

A decolagem do prodígio usou a pista da festa I Love CWBeats, há dez anos realizada ininterruptamente no prefixo 041. Agarrada ao hip-hop, consolidou-se como modelo entre eventos de um circuito capaz de entupir bares, porões e casas de shows pelo São Francisco, Batel e Centro. “Somos um suporte e ajudamos a estruturar a cena”, conta Priscila Gomes, produtora, 33 anos.

A I Love CWBeats fomentou espaço para outras festas similares, como a INVDRS, inaugurada no início de 2014. E dos embalos de sábado à noite surgiu, posteriormente, um selo musical. Já são cerca de 3 mil seguidores no SoundCloud e mais de meio milhão de execuções das tracks. Missão: projetar artistas iniciantes, tais como Young GG, Sunson e Tui, todos da ex-Seattle brasileira, capital ecológica, social, um dia Cidade Sorriso.

“Estamos a todo vapor e organizando a nossa terceira coletânea, chamada The Sounds Vol. III. Nós acreditamos em um mercado com muito potencial de crescimento com a aproximação maior do público”, relata Luis Ricardo Ramos, 31 anos. Além de produtor da INVDRS, o funcionário público também é beatmaker, sob a alcunha Swinga.

Outro engajado na tarefa de impulsionar talentos é Éden Leão Júnior, 29 anos, o Zone Beats. Dono de um estúdio caseiro no bairro Fazendinha, o ex-peixeiro e técnico de informática atua como produtor musical e beatmaker. Calcula ter fabricado faixas para mais de 100 artistas, só entre os paranaenses. E, em breve, projeta pôr na roda sua mixtape de estreia, com 23 composições e três dezenas de feats (participações).

 

“Tenho um catálogo extenso e o meu maior público está no Facebook. Pelos beats e as seções instrumentais, cobro R$ 200. Já a produção de uma música do começo ao fim custa cerca de R$ 450. Gravo em um dia e com mais dois está pronto”, explica Éden Zone Beats. Por mês, dá para faturar aproximadamente R$ 1.800, grana para manter a casa e o filho Enzo, 5 anos.

 

MOBILIZAÇÃO MUTANTE

 

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Assentada e autossustentável, com altos e baixos conforme a delicada economia brasileira, a cena local busca agora expandir-se. Em estatura, qualidade e, claro, receita. Com as exceções retratadas, os beats são consumidos, em grande parte, pelos MCs da capital e, de leve, em Santa Catarina e São Paulo. Eventos e demais produtos têm projeção semelhante.

“É uma mobilização progressiva e mutante. Cresce a cada ano e lança artistas, estúdios e selos que, pouco a pouco, estão ganhando espaço nacional e sendo mais profissionais. É forte e autossustentável, sim, mas nas devidas proporções”, avalia Ricardo Pires, o Cabes, 32 anos, um dos MCs e produtores musicais mais conceituados da capital, hoje baseado na capital paulista.

É similar a avaliação de Ganesh Toresin, 31 anos, da Mão Santa Produções, outra firma ligada aos beatmakers. “Vem muita gente procurar seus instrumentais aqui e quanto maior a demanda, mais os profissionais vão se aperfeiçoando. Existem ótimos queijos em todo o país, mas o de Minas Gerais é o mais conhecido. Assim funciona a relação cantor / beatmaker entre Curitiba e o resto do Brasil”, afirma.

 

André Pugliesi é jornalista e editor de esportes na Gazeta do Povo. Mantém o blog Jornalista de Merda.

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