À porta de Dalton Trevisan 23/01/2018 - 11:50
Ana Miranda
A Helena me pediu uma crônica, mas aqui não vai uma crônica, vai uma memória, ou melhor, a memória de uma memória, são minhas lembranças de um relato que ouvi há anos, lira singela, e o tempo tem o dom de transformar o barro da lembrança.
Começo um pouco na periferia da história, com uma indiscrição, mas sei que eu vou ser perdoada porque Otto era generoso e humano acima de qualquer segredo, mesmo para um mineiro. A questão era que Otto Lara Resende lia para mim as cartas que recebia de Dalton Trevisan.
Dalton, também, não há de se aborrecer, estávamos entre escritores, Otto confiava em mim (estarei traindo-o?) e ele nunca me entregou em mãos nenhuma carta para eu mesma ler, isso deve significar que ele escolhia os trechos a serem lidos em voz alta para uma encantada e seduzida flor do Lácio. (Otto me chamava de “a menina da flor do Lácio”, parafraseando o poema de Bilac:
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”,
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
A “flor do Lácio”, sabemos, é a língua portuguesa, a última derivada do latim vulgar falado no Lácio, região da Itália. Inculta, porque nasceu do latim vulgar, falado por camponeses, por beatas e prostitutas, por padeiros e sapateiros, pelo povo, enfim.)
Esqueci o teor das cartas de Dalton Trevisan ao Otto, como se deve fazer com as confidências, lembro apenas que eram afetuosas e bem-humoradas. Ou melhor, mal-humoradas, aquele mau humor que torna alguns escritores ainda mais fascinantes, como o niilista Raduan Nassar, o ensaísta romeno Cioran, o irritadiço romancista Thomas Bernhard e mesmo o nosso Machado de Assis, mais irônico do que ranzinza. E Pedro Salgueiro.
Pedro Salgueiro é um contista daqui de Fortaleza, figura adorável. Apelidado às vezes de Padre Salgado. Poderia ser um Buda sertanejo: calvo, rosto redondo de um tibetano, olhos apertados, corpo forte, atarracado. Discreto, gosta de esconder suas sensibilidades, e de demonstrar sua rebeldia. Um ar confiável, olhos rápidos e atentos, dele emana um viço agreste. Doce, suave, gentil, provocador, irônico. De uma integridade extraordinária. E apaixonado pela obra de Dalton Trevisan.
Eis a história: pois o Pedro Salgueiro esteve morando em Curitiba, faz algum tempo, creio que por volta do ano 2000. Todas as noites depois do trabalho ele se postava diante da casa de Dalton, com um livro nos braços. Ali ficava, imóvel. Queria uma dedicatória do maravilhoso escritor. Num exílio amargo, Dalton nunca abria a porta, mas via aquele vulto parado ali em frente, desconhecido e obscuro, mesmo em noites de chuva, e Pedro supunha os movimentos de Dalton dentro da casa, às vezes chegando à janela para averiguar se o fantasma ainda estava lá. Um diálogo de sombras, leituras mútuas e, ao lado de pensamentos cautelosos, uma talvez investigação intuitiva de sentimentos. Um arrolo da saudade e da ternura.
Numa noite fazia muito frio, e Pedro Salgueiro estava sem agasalho, tinha apenas o livro e a esperança para o aquecerem, mas tremia de frio, um tremor tão forte que Dalton deve ter percebido, de dentro da casa, e seu coração decerto se abalou, deve ser um homem bom, um homem que escreve tão deslumbrantemente neste nosso rude e doloroso idioma só pode ser um homem bom, e ele abriu a porta, chamou Pedro para dentro de sua casa, aqueceu-o, ouviu-o. E apaixonou-se, como todos nós, por Pedro. Pela doçura meio ranzinza de Pedro. Pela literatura áspera e simétrica de Pedro. Até hoje são amigos, trocam cartas, livros, telefonemas, opiniões, sentimentos, lembranças.
Pedro nunca leu para mim as cartas que recebe de Dalton Trevisan, nem mesmo as mostrou. Mas jamais passou por minha cabeça alguma incerteza de que a história seria verdadeira, talvez não tenha ocorrido da maneira como acabo de contar, mas a imprecisão terá sido unicamente minha. É uma história sincera demais, bonita demais. E Pedro é perfeitamente realista e tem uma íntima segurança em seu procedimento.
Há uns quatro anos fui convidada a participar de um evento em Curitiba, podia levar acompanhante, convidei Pedro, e lá fomos. Íamos ter um encontro a três numa livraria ou café, não lembro, mas no último instante Dalton preferiu que eu não fosse, com a lisonjeira justificativa: “Estou muito velho e feio para aparecer na frente de uma mulher tão bela” (eu sentia a mesma coisa, velha e feia para encontrar um homem tão belo). Mas mandou-me uns livretos fabulosos, que ele mesmo edita, com dedicatórias. São as paixões que percorrem os subterrâneos literários, resultadas dos mistérios que envolvem a nossa última flor do Lácio.
Ana Miranda é escritora. Tem mais de 20 livros publicados, dos mais variados gêneros, entre eles os romances Boca do inferno, Desmundo e Dias & Dias.