Un giorno da ricordare 23/01/2018 - 11:00

Márcia Denser

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   Ilustrações: André Ducci

Foi na última das férias que passamos no Edifício Ipanema, na praia do Gonzaga, em Santos, pois, logo a seguir, papai vendeu o apartamento para saldar dívidas. Eu acabara de fazer 18 anos, Teréca, 16, era o mês de julho e, escondido de nossos pais, voltáramos a sair com as meninas, Lea, Ruth e Ester, que também passavam as férias na praia do Boqueirão: os pais delas (aliás, as mães, sobretudo Dona Hanna) também haviam vetado a amizade conosco.

A despeito do prazer e da emoção que nos dava essa transgressão, nossas relações de amizade agora eram tensas, de uma alegria um tanto histérica, artificial. A rivalidade entre nossas mães se estabelecera surdamente, sem tréguas mas sem palavras, subjacente às nossas motivações e isto estava minando os antigos laços de lealdade e confiança, até porque haviam rivalidades, implicâncias e ressentimentos pendentes entre nós e que começaram a crescer assustadoramente, perdida a antiga tolerância.

Durante o dia até dava praia — um sol ardido, de inverno —, à noite, o vento gelado cortava, mas nem te ligo: queimadíssimas, maquiadas, cílios postiços, calças de helanca azul-turquesa ou rosa choque ou verde-limão ou laranja ou amarela, presas nos calcanhares, sapatilhas combinando, camisetas pretas, marron-café ou marinho, perfume patchuli ou caron pour-un-homme ou lancôme ou acua di fresca ou pino silvestre, mascando chicletes e fumando furiosamente, nosso grupo era uma carrossel vertiginoso: não ficávamos uma só noite em casa — nós praticamente sumíamos!

Fazíamos vários programas por noite, quer dizer, saíamos com vários rapazes, sobretudo Ester e eu, as mais cotadas. Mas é bom deixar claro: os programas a que me refiro não passavam de alegres passeios de automóvel de preferência importado — camaro/mustang/porshe/miúra lamborghini —, som no último volume, para um chopinho e amassos ou nas discotecas dançando madrugada adentro e era tudo: constituíamos uma juventude dourada, burguesa e caretíssima.

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Drogas? Nessa época, bem poucas: um que outro baseado, pó raríssimo. Mas bebia-se muito e pesado: uísque, conhaque, vodka. Coquetéis estranhíssimos. Quem realmente se drogava dos rapazes que conhecíamos — Léo, Rodolfo, Laranja, Mário Picada & afins — usava heroína, ácidos diversos e derivados e quase todos morreram muito cedo, destes não sobraria ninguém para contar suas memórias.

Contudo, nos seduziam as transgressões, por exemplo, paquerar aquele coroa bronzeado, costeletas prateadas, parecido com o Rossano Brazzi, o que acha? Depois das dez da manhã, fica lendo romances policiais debaixo da barraca: eu e Teréca nos entreolhávamos, curiosas.

A esta altura do campeonato, nossos pais quase não vinham à praia, quer dizer, papai mergulhava desde cedo mas no bar Olímpia, mamãe dormindo ou descansando ou ruminando no sofá a noite insone, sabe Deus. E bingo!

Nos cruzávamos no Olímpia, voltando da praia, claro que ele conhecia meu pai, também tinha apartamento no Ipanema, mas seria mais velho, quanto mais velho? 46 anos, eu e Teréca calculávamos mentalmente: mas era muito mais velho! Papai tinha só 42, mais uma razão, para quê? Alberto era advogado criminalista, defensor de gente famosa como Plínio Marcos, transgressor ele também?

Teréca dava de ombros: imagine, está mais para beldade fanada. Intuitivamente acertava na mosca. Alberto Medrano com vários “v”: vaidoso, vazio, vivido. E muito vivo.

Então eu ia passear no calçadão com Alberto Medrano, que tinha um Karmann-Ghia amarelo (pesquisando no Google, lá estão: anos 68 e 71, custam hoje de R$ 55 mil a R$ 115 mil) e preferia desfilar comigo a pé para barbarizar o entorno e bingo! As pessoas nos olhavam chocadas — todas elas, homens, mulheres, jovens, velhos, crianças, cães, tudo — arrasávamos por quarteirões inteiros no calçadão!

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Do Gonzaga até o hotel Atlântico onde íamos bebericar um gin tônica olhando o por do sol. Uma garota de longos cabelos louros, queimada de sol, ele, um coroa de costeletas prateadas: lembrava um filme B, estrelando Brigitte Bardot & Rossano Brazzi — éramos um clichê encarnado, eis o que chocava o distinto público.

E este foi o início da minha amizade com Medrano que, a despeito da sua personalidade, provou ser um amigo leal e constante ao longo das três décadas em que nos cruzamos na cidade. Também foi meu primeiro amante — eu tinha 18 anos —, mas a quem eu, naquele momento, absolutamente neguei minha condição de virgem, imagine, querido.

Porque não havia amor, afinal eu estava apenas me livrando da maldita virgindade e da forma mais rápida, indolor e cheia de bajulação possível! E ele emocionado: mas meu bem, você está parecidíssima com a Marilyn Monroe!

Pois sim, não e não, eu continuaria negando até o inferno congelar quando, certa tarde, lá em casa apareceu um mensageiro com uma encomenda: era uma caixinha de veludo em cujo interior havia uma corrente com pendente de ouro e um diamante com os dizeres gravados: un giorno da ricordare.

Apesar da minha negação, ele demonstrava materialmente que tinha a última palavra. Muito jovem — ainda não nascera a escritora, autora do próprio discurso —, eu era apenas o objeto do discurso do homem. Ainda que poético.

 

Márcia Denser é escritora, jornalista e pesquisadora de literatura. Publicou Tango fantasma, Diana caçadora, Caim e O animal dos motéis, entre outros livros.