Uma educação sentimental 20/11/2018 - 17:10

Um relato sobre como a escola, a biblioteca e, principalmente, as pessoas que atuam nestes ambientes podem despertar a vocação para a pesquisa e a literatura.

Juliana de Albuquerque

...
Ilustrações: Hallina Beltrão

Para Chaim Teller, Z’’L

Em viagem ao Brasil, estive em minha antiga escola para conversar com os professores sobre ensino, pesquisa e produção literária. Antes da minha intervenção, acompanhei uma palestra sobre o desenvolvimento de uma plataforma online de ensino e outra sobre um projeto pedagógico para desenvolver as capacidades socioemocionais dos alunos. Surpreendi-me positivamente com os avanços da escola nos últimos 30 anos e reparei que as ideias que informaram a fundação do colégio, na década de 1980, encontravam-se amadurecidas e começavam a gerar novos frutos.

A fusão entre novas tecnologias e uma proposta pedagógica clássica, pautada em valores humanistas, sempre foi uma das marcas registradas da minha escola, mas só agora percebo o quanto eu fui influenciada por esses valores e como eles nutriram a minha vocação para uma vida dedicada à pesquisa filosófica e à produção literária.

A reunião aconteceu na sala onde apresentei o meu primeiro trabalho de iniciação científica como estudante de ensino médio. Depois disso percorri cada cantinho do colégio, seguindo o rastro da minha formação intelectual. Lembrei-me de que nem sempre o impulso que precisamos para seguir a nossa vocação vem da sala de aula e de que foram os meus relacionamentos com funcionários e professores que aguçaram a minha curiosidade sobre o mundo das ideias e a grande comédia humana.

Estudei naquele campus entre 1989 e 2001. Segundo a minha mãe, após uma verdadeira peregrinação pelas boas escolas da região, eu escolhera o Equipe por conta das grades de cor vermelha e da sensação de que as salinhas da pré-escola estavam sempre cheias de luz.

Lembro-me das babás que tomavam conta das crianças no parquinho e passavam horas a conversar comigo sempre que eu chegava mais cedo ao colégio. Para que não me sentisse deslocada no pátio ainda vazio, elas me levavam para cozinha dos funcionários. Lá tomávamos café em copos americanos e comíamos bolacha com margarina ao som das piadas dos zeladores, seguranças e dos motoristas do ônibus escolar.

Eu gostava da diversidade da nossa mesa: Tia Sandra era cafuza, ela tinha uma voz suave de locutora de rádio e um cabelo crespo cor de cobre. Tia Teresa era negra e baixinha, usava óculos e sempre me chamava de meu amor. Pedro era negro, alto e forte, protetor e muito elegante. Sempre que eu pegava a condução da escola no final do dia, ele me ajudava à atravessar a rua carregando-me nos braços.

Na minha cabeça de menina muito pequena, eu sempre me surpreendia com o fato de que, ao cair da noite, passava dos braços de um Pedro para o outro toda vez que o meu amigo dizia: “Boa noite, Doutor Pedro. Olha aqui a pequenininha!”. E como em um sonho, eu trocava um Pedro por outro: um preto por um branco, ambos de bigode, cheirosos e muito bonitos.

Mas o meu negócio mesmo era com Seu Genival — mulato, boêmio e contador de causos — e Dona Sebastiana, uma sertaneja antiga e, ao mesmo tempo, sempre idosa que me explicava sobre as coisas deste e de outros mundos, como o seu senhor Jesus Cristo e os casebres de palafita distribuídos à beira do rio moribundo: aquele misterioso cão sem plumas da poesia de João Cabral, muitas vezes atravessado por mim e pela minha família, em barcaças, durante as nossas andanças de final de semana pelas terras de várzea ocupadas pelos Brennand.

Naquelas sessões vespertinas conversávamos todos sobre as novelas da época e sobre as personagens de Mestre Ravengar, interpretado por Antônio Abujamra — meu grande ídolo da televisão ao lado de Paulo Autran e Raul Cortez —, e da inesquecível Tieta protagonizada por Betty Faria: símbolo de resistência e liberdade feminina.

Por uma série de motivos, aquela turma de funcionários era muito mais minha amiga do que a maioria dos meus coleguinhas. Na mesinha da copa, ninguém questionava o meu sotaque, o meu cabelo curtinho, os meus dentinhos separados e as minhas olheiras sempre muito pronunciadas, herança dos meus antepassados judeus portugueses: característica física que passei a amar com o tempo, ao me reconhecer nos rostos e nos gostos de Marcel Proust.

...

Embora travessa fui uma criança meditabunda, preocupada com a passagem do tempo e a necessidade de reter a lembrança e a ordem de tudo que vivi. Aos 4 anos, refletia constantemente sobre o fato de metade da minha pequena vida ter se passado em São Paulo e a outra no Recife, esperando o momento em que a contagem dos dias me tornasse cada vez mais pernambucana.

A minha inadequação era tão séria e me dava tanta raiva que, quando aprendi a ler e ouvi a professora recitar o “Poema de sete faces”, entendi que Drummond havia escrito aquelas linhas para mim e pouco me importava Carlos naquela história toda — dane-se Carlos! —o anjo torto era meu e estava era falando comigo, tal como o diabo para Fausto convidando-o para a farra: Vai, Juliana! Ser gauche na vida.

Então fui.

Fui mesmo!

Danada.

Liguei para o consulado inglês escondida dos meus pais e pedi ajuda para conseguir asilo político. Prometi grandes feitos e pedi informações concretas. A voz do outro lado da linha conversou comigo e tentou me convencer de que, antes de me receber em terras britânicas, eu precisaria terminar o colégio e completar 18 anos.

Tudo bem, pensei. Eu até que poderia continuar a frequentar a escola, mas achava absurda a exigência dos 18 anos completos. Quem poderia prever o que aconteceria comigo até lá?

Lembro-me de na época ter aprendido a projetar a minha idade futura na aula de matemática, então fiz as contas de cabeça e comuniquei os resultados ao telefone: “O senhor me garante que eu posso ligar novamente em julho de 2002?”.

D-o-i-s-m-i-l-e-d-o-i-s. Poxa vida! A letras que definiriam a minha sorte sucediam-se vagarosamente em minha fala como se estivessem algemadas e ligadas umas às outras por correntes e tornozeleiras, em um pátio de execução.

Depois disso, contei para a psicóloga do serviço de orientação educacional que Casimiro de Abreu equivocara-se. A história dos oito anos me aborrecia: só um completo idiota poderia sentir saudades de estar sob vigilância permanente dos adultos e impotente diante da vida. Expliquei que não estava deprimida e nem com raiva dos meus pais, mas que tinha assistido a um documentário sobre Freud e a psicanálise na TV Cultura e achava que precisava conversar com alguém sobre as minhas angústias: “A senhora acha que criança é feito cachorro? Eu tenho um cachorro e percebo a diferença. A gente não vive nem acha bonito existir como se a vida fosse a repetição inútil do mesmo trem de coisas”.

O que me salvou do desespero e pôs ordem em minha vida foi a biblioteca da escola. Na hora do recreio, muitas vezes deixei de lanchar para estudar o Guia do escoteiro mirim e conversar com os bibliotecários.

Marcílio era alto e sempre tinha uma história engraçada para contar. Julieta era baixinha e sempre me chamava atenção para as leituras importantes do jornal. Carla era muito jovem, elegante e recém-formada: foram essas características suas que alimentaram o meu interesse de entrar para a universidade.

Nós quatro testemunhamos a salinha de leitura da escola se tornar cada vez maior e transformar-se na Biblioteca Monteiro Lobato. Foram poucos os momentos da minha vida em que me senti tão vaidosa e importante quanto no dia em que os meus amigos bibliotecários me chamaram para ver o quadro de Monteiro Lobato pendurado na parede de nossa nova biblioteca.

Até aquele momento as minhas leituras sérias resumiam-se ao Guia do escoteiro e Pedrinho Esqueleto. Mas, com o batismo da biblioteca, senti- -me envergonhada de não conhecer a fundo o trabalho daquele escritor homônimo de olhar muito vivo e sobrancelhas espessas.

Como eu gostava de cavar buracos no jardim da minha avó para examinar a terra em busca de tesouros naturais como as ossadas dos cachorros que passaram pela casa ou de relíquias pré-históricas, como o lixo que o jardineiro enterrava no fundo do quintal; o meu primeiro livro do Sítio do Pica-Pau Amarelo pareceu-me uma escolha óbvia.

Em poucos dias devorei O poço do Visconde e percebi que o livro tinha me ensinado coisas importantes sobre natureza, política e história de uma maneira jamais vista em sala de aula.

Era como se os livros de Monteiro Lobato lotassem a minha cabeça de perguntas e fizessem o conhecimento chegar aos poucos, quase que intuitivamente, através do meu envolvimento com as palavras e as personagens. Foi quando encontrei um nome para o meu anjo torto; uma criatura tão astuciosa e debochada quanto o próprio Mefistófeles, ou quem sabe ainda melhor do que ele, por não se tratar de um pobre diabo muito feio, mas de uma boneca de pano bonitinha, endiabrada e casada com um porquinho.

Emília, a senhora Marquesa de Rabicó, é uma das grandes invenções da nossa literatura. Assim como a personagem de Goethe, Emília consegue ser qualquer uma das coisas que achamos que ela deva representar. Falem bem ou mal dessa boneca, ela sempre será maior e mais forte do que todos nós juntos: Emília é a expressão literária que Monteiro Lobato encontrou para o nosso inconsciente.

Penso até hoje que a Emília descoberta entre as estantes da biblioteca da escola tenha sido responsável por me apresentar aos meus escritores prediletos. Das suas meditações sobre vida e morte em Memórias de Emília para os meus garranchos sobre a importância do trágico na formação do pensamento alemão, tudo aconteceu num piscar de olhos.

Sou grata aos funcionários e aos bibliotecários da escola que me encheram ainda mais de amor pelos livros. Para uma criança que tinha tanta pressa de abraçar o mundo, os livros me ensinaram que a vida precisa ser tratada com parcimônia para que não se gaste depressa demais e para que a confusão das nossas experiências finalmente ganhe a forma e o tamanho de nosso próprio destino.

Pisquei na biblioteca da escola e fui parar em Tel Aviv, na pequena livraria do meu amigo Chaim Teller. Mal sabia eu que, se piscasse novamente, o nosso último encontro em 2016 selaria a nossa despedida neste mundo e a redescoberta das minhas origens. Viajei para muito mais longe e retornei ao Brasil acompanhada pelo seu livro de cabeceira: Ungeduld des herzens ou Coração impaciente (tradução livre), do austríaco Stefan Zweig.

 

Juliana de Albuquerque é escritora e colunista do jornal Folha de S. Paulo. Mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv, Israel, atualmente cursa um doutorado em Filosofia e Literatura Alemã na University College Cork, Irlanda.

GALERIA DE IMAGENS