Um, o outro & o outro um: três biografias para um ano eleitoral 06/07/2018 - 16:20

Fernando Bonassi

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   Ilustrações: Tita Blister

Um deles foi o que toda a família trabalhou desde a primeira eleição para deputado estadual, em seguida deputado federal, depois senador — que foi então nomeado governador de Estado, mas que antes já se tornara ministro em diversos governos militares e ainda serviria a poderes civis, posteriormente. As duas esposas (a atual e a ex, que se entendiam entre elas como nunca se entenderam com o marido) tinham por função implementar e manter os contatos que ele tinha com certos movimentos sociais e religiosos, promovendo bingos, rifas e sessões de pôquer em diversas igrejas e sindicatos de mão de obra em processo de extinção. O primogênito era responsável pela administração desses recursos materiais e alguns outros arrecadados pelo irmão do meio junto ao mercado financeiro, onde ele atuava excitando os executivos com mulheres menores de idade e velhos planos de expansão do crédito, para em seguida ameaçá-los com fotografias e a presença da polícia, a fiscalização do imposto de renda e leis restritivas à circulação do capital. O filho mais moço, conhecido traficante de substâncias proibidas, tido como doente e internado diversas vezes para recuperação em sanatórios na região bancária — ele que não queria deixar de colaborar com os projetos de ascensão política do pai — aparecia toda segunda-feira no escritório da campanha e deixava um pequeno envelope na mesa de cada redator, para mantermos a energia a semana inteira. O envelope continha um grama de cocaína da mais pura e vinha com a logomarca do candidato, caprichosamente recortada e colada ali pelo próprio caçulinha. Era gente de família. Uma família unida demais. Gente de tradição que está por aí até hoje. Meu patrão naquela época, um primo deles em segundo grau (que sempre fez questão de pagar a todos em moeda estrangeira, sem nota e que também não guarda recibo destas transações), pode perfeitamente confirmar essa história para os senhores!

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O outro, ex-assessor nomeado, desacostumado com as exigências da democracia, evitou o quanto pôde a contratação de assessoria de marketing para sua primeira eleição majoritária. Preferia o conselho seguro dos velhos amigos e tutores, conhecedores de nossa política, mas todos eles lhe reprovaram a avareza e aconselharam seguramente a contratação de renomados e modernos especialistas. Os especialistas mais modernos e renomados custavam caro, mas o cargo almejado prometia projeção. Para se projetar nestes tempos, segundo os analistas consultados, ele precisava aparecer multifacetado nos vários contextos de nosso mapa cultural. Logo os entendidos encontraram defeitos no conceito proposto pelo candidato e o maior deles se referia à escassa presença do povo em suas cenas, da qual sua trajetória era carente mesmo, mas que agora se transformava num problema, ou numa necessidade urgente para a pretensão do cargo em disputa. Para dificultar a comunicação, o candidato era feio, alto e magro como um quadro branco; ele requeria cenários, produção e maquiagens que destacassem sua figura pálida, o que aumentava a fatura dos gastos e, potencialmente, os índices de audiência. Preocupados com suas possíveis perdas, os empreendedores e figuras de destaque nos programas políticos fizeram para o candidato uma blindagem de elogios, se comprometendo vagamente com o fim dos interesses escusos que os guiavam até ali. O candidato, que era vazio de quaisquer interesses a ponto de ser considerado honesto, zelava sem paixão pela manutenção de seu status administrativo, em nome do prestígio adquirido nas colunas sociais. Além disso, ele não tinha muito para afirmar, imprimindo seu enfado a cada pronunciamento. Após algumas tentativas frustradas de aproximá-lo da população em festividades e inaugurações especialmente programadas para a coleta de imagens, constatou-se a indiferença total dos eleitores. Os diretores da campanha pressionavam os seus assistentes porque precisavam cada vez mais de cenas do povo e do candidato em meio ao seu seio, sob pena de naufragarem todos nas pesquisas de opinião. Muitos opinaram em reuniões intermináveis (a maioria ganhava por hora/reunião), com propostas de agenda inexequíveis, quer porque havia regiões perigosas para o candidato, quer porque ele temia as demais regiões sem qualquer razão conhecida por seus guarda-costas. Foi quando um assistente de direção (disposto a resolver o problema do videoclipe de abertura e ir embora para casa amar a sua jovem esposa), mandou buscar três maços de dinheiro no banco mais próximo: um com notas de cinquenta, outro com notas de vinte e o terceiro com cédulas de cinco, que ele ordenou ao candidato pôr nos bolsos do casaco e distribuir em praça pública, utilizando-se de um maço ou de outro, conforme o aspecto de quem lhe aparecesse pela frente. O candidato foi à rua e, demonstrando grande sensibilidade para as quantias devolvidas diretamente ao bolso dos contribuintes (era dinheiro público), cercou-se de uma multidão de executivos, operários, funcionários e mendigos, que a sua equipe de televisão gravava em êxtase, mas cortando tudo a certa altura, uma altura que escondia a oferta sub-reptícia dos valores financeiros, mas registrava, um pouco acima, com boa iluminação (era final de tarde, a chamada “hora mágica” dos fotógrafos de cinema), os close-ups das faces fulgurantes dos cidadãos ali presentes, como se fossem a mais pura expressão de seu apelo popular. Em poucos dias dessa iniciativa pioneira, o candidato fadado ao fracasso tornou-se uma celebridade nacional, emoldurado (em seu videoclipe) pelo sorriso cúmplice de seu eleitorado e, conquistando no mês seguinte — com a força e o crédito das urnas — o posto de governador de seu Estado natal. Deus abençoe!

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Outro um é um líder que está momentaneamente morto, mas que havia se projetado nas políticas do Estado por ter aplacado os ânimos numa situação potencialmente explosiva em nosso passado remoto, em seguida havia eliminado os recalcitrantes com chacinas insolúveis e acomodado os demais contrariados em torno de si. Ele o fez com a oferta de alguns cargos em comissão, distribuição de verbas publicitárias, acenando com mais violência discriminada e promessas impossíveis de cumprir à vista para, por fim, aplicar os devidos panos quentes de nossos hábitos de governança. Os que desejam a sua volta agora, mesmo momentaneamente morto, alegam que é culpa da realidade deste momento; que as novas necessidades exigem as velhas práticas, reações mais lentas e pesadas, pensadas por lideranças mais experientes na lida com a máquina da administração, mas com força enérgica e com autoridade máxima no estrito cumprimento daqueles compromissos que costumam chamar de causas nacionais. Coisas jamais definidas por ninguém e que, aliás, enquanto estava vivo, ele próprio nunca levou a sério a ponto de prejudicar-se com a excessiva coerência. De toda maneira, nada faz parecer que é com ele, com o nosso líder momentaneamente morto. São apenas esses seus antigos assessores e dependentes que, contrariados, se irritam em tumultos sucessivos, que se juntam para pedir e para rezar em seu túmulo, que seguem à risca as suas ideias. E por falar nisso: seguem tão à risca as suas ideias, mas tão à risca e nos mínimos detalhes essas ideias do defunto que, mesmo estando ele momentaneamente morto como está, o nosso líder fica envergonhado e amedrontado consigo. Envergonhado porque ele, o líder momentaneamente morto, sabe que não é de verdade e nem de longe aquilo que se espera dele num momento como este. Amedrontado justamente por ser querido assim, com este amor incondicional — um traço nosso que, mesmo estando momentaneamente morto, ele — por instinto — considera perigoso na sua próxima ressurreição.

 

Fernando Bonassi é roteirista, dramaturgo e escritor. É autor dos romances Subúrbio e Luxúria e dos livros de contos Passaporte e SP Brasil, entre outros. Seus trabalhos para cinema e televisão incluem os roteiros dos filmes Carandiru e Cazuza — O tempo não para e dos seriados Forçatarefa, O caçador, Supermax e Carcereiros (todos produzidos pela Rede Globo). No teatro, destacou-se com as peças Apocalipse 1, 11 e Arena conta Danton.

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