Sofia e a cidade 23/01/2018 - 11:00

Mais conhecida como contista, Sonia Coutinho estreou no romance somente em 1989, com Atire em Sofia — livro que retrata a nova condição da mulher antes de o feminismo voltar à tona no debate público

Beatriz Resende

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   Ilustrações: Tereza Yamashita


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Quase 30 anos depois da primeira leitura, volto ao romance Atire em Sofia, de Sonia Coutinho, e ainda me surpreendo.

A autora (Itabuna, 1939 — Rio de Janeiro, 2013) pertence, seguramente, à seleta lista de melhores contistas brasileiros. Seu conto “Toda Lana Turner tem seu Johnny Stompanato”, publicado em 1985 no volume O último verão de Copacabana, foi incluído na seleção de Os cem melhores contos brasileiros do século, antologia que teve a curadoria de Italo Moriconi. O festejado conto traz chaves que abrem aos leitores o caminho de toda a sua obra: “O material desta história: basicamente duas mulheres”. As mulheres são a sexy atriz de Hollywood Lana Turner e “uma outra, que se apresenta sem nome, sem rosto, sem biografia”. Mais adiante, entrecruzando ficção e realidade contemporânea, numa escrita de si que é ainda ficção, como está tão na moda na criação literária desse nosso outro século, o XXI: “Não se enganem, porém: o único personagem verdadeiro, o ponto de referência para poder entrançar os fios díspares desta trama, formando um tapete, a tela em branco que serve para o desdobramento ilimitado do sonho, portanto da realidade, este personagem sou eu. Em outras palavras, Lana Turner”.

Nesse conto, como em outras obras, estão: uma voz de mulher, a leitura feminista, a situação de vulnerabilidade das mulheres diante dos homens e a solidão, muitas vezes escolhida, que experimentam. “Sim, conheço o agridoce sabor de solidão de Lana Turner, sua crespa mordida num sábado à tarde, como este.”

O primeiro livro de Sonia Coutinho, Nascimento de uma mulher, de 1970, irônico e crítico da subserviência a que as mulheres continuavam a ser submetidas, teve sua publicação desaconselhada pelo crítico Walmir Ayala, então censor no regime militar. Anos depois, em entrevista ao Jornal do Brasil, em 1995, Sonia fala da situação constrangedora a que esses intelectuais eram submetidos, mas não deixa de apontar o favorecimento que Ayala recebeu em troca com a publicação de seu custoso Dicionário brasileiro de artistas plásticos com apoio do governo, através do Instituto Nacional do Livro.

A trajetória como contista lhe traz em 1979 o prêmio Jabuti por Os venenos de Lucrécia. Em 1999 ganha outro Jabuti, dessa vez com o romance de tintas policiais Os seios de Pandora. O interesse pelo gênero e as possibilidades das escritoras mulheres que dele se ocuparam levaram a escritora e jornalista a concluir um mestrado em Comunicação na ECO/UFRJ com a dissertação, depois transformada em livro, Rainhas do crime — Ótica feminina no romance policial.

Em 2006 vem o principal reconhecimento com o Prêmio Clarice Lispector, da Fundação Biblioteca Nacional, por Ovelha negra e amiga loura. No conto “O fim de ano da mulher sozinha”, a mulher que se enrijece para suportar os dias difíceis de Natal e Réveillon faz um balanço de vida que retoma o fundamental do resumo de vida da personagem de Atirem em Sofia:

"Como foi que ficou tão sozinha? Descasada, pai e mãe mortos, brigas intermináveis com seu único irmão, supostamente por seu mau comportamento no passado e, acima de tudo, um filho que não a aceita, nunca aceitou, e mora em outra cidade.
Ah, tem de encarar, ficou mesmo inteiramente isolada".

No final de sua vida, a literatura feminista já encontrara seu espaço, ainda que numericamente bastante minoritário, na nossa literatura. Jovens mulheres ocupavam a cena, mas o debate em torno do tema era ainda polêmico. Muitas autoras recusavam ser incluídas no que pudesse ser chamado de “literatura feminista”, ou mesmo literatura de mulheres. Proclamavam que deviam ser reconhecidas como escritor e ponto. Ser uma escritora mulher soava pejorativo, o importante era ser escritor, sem apostos.

Talvez por isso, não propriamente o esquecimento, mas a importância menor do que a merecida dada à autora, tenha ficado evidente, quando morreu, sobretudo na repercussão na imprensa, mais atenta à colega jornalista do que à escritora e importante tradutora.

A verdade é que em 2013 o feminismo parecia estar em baixa. Outras questões dominavam o debate de intelectuais, sobretudo de esquerda, no país que vivia seus grandes anos de democracia. Engano. O feminismo apenas tomava força para voltar com enorme ímpeto, combativo e militante; um feminismo de mulheres empoderadas, cruzando questões de gênero, para além de binarismos, com questões de raça. São essas jovens e corajosas mulheres, sobretudo, que devem voltar ao pioneirismo de uma escritora feminista. Quem sabe talvez surja, no nosso campo, uma crítica literária também feminista (a que aspiro, mas ainda não realizei), importante no momento de obscurantismo que vivemos. Como mostra Margareth Rago, discutindo, no momento do refluxo que antecedeu a prevalência atual do tema, o futuro do feminismo:

"(...)a despeito do pessimismo suscitado pelo conservadorismo de nossos tempos, é inegável o quanto o feminismo, seja enquanto modo de pensamento, seja enquanto conjunto de práticas políticas e sociais, contribuiu e tem contribuído vigorosamente para a crítica cultural contemporânea. Para além da desconstrução das configurações ideológicas, conceituais, políticas, sociais e sexuais que norteiam e organizam nosso mundo, o feminismo deu visibilidade não apenas às mulheres e as questões femininas, mas às formas insidiosas e perversas de exclusão que operam na esfera política".

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II
Atire me Sofia é, de fato, o primeiro romance de Sonia Coutinho — antecedido por uma novela, O jogo de Ifá — e, além da transformação no fôlego da narrativa e nas estratégias de desenvolvimento das histórias impactantes que seus contos já traziam, leva ao leitor uma importante alteração do espaço de onde fala.

O principal espaço por onde as narrativas da autora se desenrolam é o bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. Não mais o bairro de elite dos anos 1950, ou mesmo a Copacabana do início da Bossa Nova, no Beco da Garrafas. Não mais as célebres calçadas que representam as ondas do balneário surgido nos anos 1920, mas uma outra Copacabana, a que foi modificada pela febre dos quarto-e-sala, dos conjugados. A Copacabana que Rubem Braga lastimara na célebre crônica “Ai de ti, Copacabana”. Enganara-se, porém, o cronista. Copacabana não cantava sua última canção nos anos 1960, o espaço apenas se modificava. A princesinha do mar envelhecera, mas continuava sedutora e passava a abrigar não apenas os idosos que buscam a vida facilitada pelo bairro que tem de tudo, mas tribos as mais diversas.

Copacabana será, depois de Rubem Braga, durante e depois do João Antônio de Ô Copacabana!, no imaginário literário nela cultivado, um espaço possível ao discurso das chamadas minorias letradas, mas nem por isso à margem do universo do cânone. Será, como nenhum outro espaço na cidade do Rio de Janeiro, espaço privilegiado de desenvolvimento da literatura de mulheres e, em seguida, da literatura gay.

Inúmeros são os contos de Sonia que se passam em Copacabana, e dentre eles cabe destaque para “Doce e cinzenta Copacabana”, de Venenos de Lucrécia, onde a personagem, jovem mulher disposta a lutar por sua liberdade, tem certeza de que só poderia escapar do machismo e do autoritarismo de seu lugar de origem fugindo para Copacabana.

Naquele “verão esquisito, muito esquisito”, Sofia decide deixar o Rio de Janeiro e ir para Salvador, onde estão os amigos de juventude, um grupo de homens e mulheres que nunca tinham perdido o contato e que, dos sete ex-colegas, só um tinha morrido.

Para Sofia, “Ter aprendido a viver sozinha talvez fosse o maior patrimônio que acumulara em 20 anos de Rio de Janeiro” e parece-lhe que as coisas tanto tempo depois poderiam ser mais fáceis: a relação difícil como a mãe que nunca aceitara que deixasse o marido para buscar uma nova vida, o ex-marido, autoritário e possessivo — ainda que nem tão pior dos que o sucederam —, a recusa das filhas, com quem nunca conseguiu nenhum diálogo, nem com a doce Maura nem com a rebelde Milena, parecida com ela mesma.

A cidade é outra, mas o espaço da cidade continua sendo personagem fundamental da narrativa. A cidade de Salvador e seus habitantes parecem estar simbioticamente ligados.

"Viscosa cidade, visco em tudo, na sensualidade pesada, em seu profundo tédio sensual. (...) Um clima que faz as frutas apodrecerem depressa demais e ensina, para além de qualquer coisa, a morrer. Sua cidade esta, seu passado de beleza e horror."

A cidade mudou pouco nos 20 anos em que se afastara, mas menos ainda as cabeças, a realidade ainda patriarcal sob o verniz de modernismo. As mulheres, no entanto, tinham mudado. A liberdade sexual era uma realidade ainda que o casamento continuasse parecendo a solução de vida mais cômoda. Os homens pouco mudaram. Tonaramse, talvez, mais cínicos.

Nessa cidade “que ensina a morte”, onde Sofia experimenta “amor e ódio pela Cidade-Aranha, Cidade-Serpente”, talvez o que mais tenha se modificado sejam os negros. Milena, a filha que ainda a despreza, bem morena de cabelos ondulados, faz-se quase negra no amor por Tetu, jovem negro que quer afirmar sua voz e encontra diálogo com o movimento negro: “as coisas estão mudando”.

Na negritude que se impõe talvez esteja uma das poucas positividades daqueles tempos e que o romance antecipa com grande sensibilidade.

Salvador, porém, é uma cidade de mitos, de religiões, de orixás, espaço à beira mar onde Iemanjá e Iansã podem entrar em combate. Lendas e religiosidades se entranham no cotidiano. Tudo isso faz parte da cidade onde o romance acontece e traz efeitos inéditos. Elementos do fantástico atravessam a construção da narrativa, os sonhos, ou antes, os pesadelos, se incorporam ao comportamento das personagens, ao fruir da narrativa.

Copacabana volta ao romance no trânsito que a autora constrói entre a ficção romanesca e a ficção que um dos antigos colegas, João Paulo, luta por escrever, a história do assassinato de Laura Luedi que o autor resume:

"A história de um bairro, seu apogeu e decadência: Copacabana. Sonho do pessoal da zona norte e dos nordestinos. Copacabana e sua atmosfera, Copacabana e seu imprevisto lirismo. ( ...) E, no centro de tudo, um hotel, núcleo e símbolo do bairro. (...) Numa das suítes é encontrada nua e morta uma ex-miss Brasil — Laura Luedi".

A vida da ex-miss, com as violências familiares que sofreu, o espaço de Copacabana, a vontade de liberdade e a solidão aproximam a vida da Laura Luedi da vida de Sofia.

Na terra dos orixás, da revolta dos malês, dos blocos e trios elétricos, a multidão pode libertar alguém ou enlouquecer junto. Nos mesmo tiros que soam como tambores, a cidade também parece enlouquecer.

É muito belo o final, quase ao acabar, desse romance que marcou uma época para as mulheres que escolheram seus espaços, afirmaram sua escolhas, suas companhias e suas solidões e estavam dispostas a pagar o preço.

A vidraças de alguns prédios estão em chamas, sob o fogo efêmero do sol poente, que transforma em conjunto monumental e uno até mesmo as edificações informes e incongruentes, cada andar com características diferentes, desfiguradas por alguma varanda envidraçada, um toldo qualquer.

Vale lembrar que o romance traz como epígrafe a frase do enlouquecido poeta e dramaturgo Antonin Artaud (em “O teatro de Serafim”): “Quero experimentar um feminismo terrível”

 

Beatriz Resende é ensaísta, professora titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e da Fundação de Amparo à Pequisa do Estado do Rio de Janeiro

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