Sharing the night together
20/11/2018 - 14:50

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Ilustração: André Kitagawa​

Mário Bortolotto

Eu tenho essa mulher que diz que gosta de mim. E ela me tem. E eu também gosto dela. Mas ter uma mulher já me parece uma grande falácia. Quem é que verdadeiramente pode dizer que tem uma mulher? Me parece uma tábua de salvação. Você jogado no meio do oceano, os tubarões rondando sua carcaça mais encarquilhada que o casco do navio que naufragou. E aí você murmura. Eu tenho essa mulher. Baixinho, né? Você murmura muito baixinho. Porque nem você acredita. O que vem a ser isso? Algum tipo de oração? Um pedido de desculpas? Então eu tenho essa mulher. Ou pelo menos quero mentir pra mim que tenho. E eu quero passar a noite com ela. Mas ela quer me levar em shows do Eddie Vedder e em noites no Astronete. Eu digo a ela que só quero ficar em casa com ela com as luzes apagadas e não ouvir música alguma. Ela acha a minha ideia péssima e ela não entende os meus conceitos de diversão. E ela diz que o Eddie Vedder vai tocar ukulele. Eu fico imaginando que tipo de maluca ia tentar me convencer a ver um show do Eddie Vedder com o argumento filho da puta de que é um show onde ele toca ukulele? E ela diz que estou ficando velho. E eu digo: não há vantagem nenhuma nisso. Mas me parece um bom motivo pra não dar as caras, pra evitar o confronto. Me parece justo que os velhos assim como os elefantes se retirem pra morrer enquanto ainda há alguma dignidade e que eles possam ter critérios e que não precisem mostrar suas fuças velhas, feias e tristes num show do Eddie Vedder ou no Astronete. Então eu digo pra ela quase como uma súplica: “Olha, eu comprei um vinho e castanhas. E um queijo que tava em promoção. Por que você não fica essa noite comigo e a gente só fica aqui em silencio bebendo o vinho e tentando comer o queijo?”. Ela esbraveja, esfrega sua juventude que ela acredita ter na minha cara. Bom, ela é realmente jovem, mas isso não quer dizer nada. Qualquer um é jovem perto de mim. E isso já há muito tempo. Como última tentativa de me inserir na sociedade, ela me convida pra beber uma no Mandíbula. Me sinto duplamente ofendido. Por ela me chamar pra beber no Mandíbula que é um bar notoriamente hipster. E por ela me chamar pra beber uma. Eu não saio pra beber uma. Eu saio pra ficar bêbado. E então a mulher que eu acho que tenho e que ela também me tem e com quem eu queria passar a noite sai sozinha pra beber uma no Mandíbula que é notoriamente um bar hipster de merda. E eu fico com as luzes apagadas bebendo o vinho, quebrando umas castanhas e ignorando o queijo. Não é saudável comer queijo sozinho. E eu me preocupo com a minha saúde. E eu tenho essa mulher que diz que gosta de mim. E ela está no Mandíbula bebendo com alguns caras que devem gostar de Eddie Vedder e do ukulele do Eddie. E devem se vestir como ele, com aquelas camisas xadrez e devem ter barbas tão bem adornadas e cuidadas como a dele. Eu sou imberbe, eu sou bisneto de índio. Então eu jamais vou poder ser um hipster. Eu seria a vergonha da turma. Eu seria execrado e expulso do convívio cult. Então por isso talvez eu tenha mesmo inveja do Eddie Vedder e dos caras que se parecem com ele e que tocam ukulele. Mas eu tenho essa mulher que diz que gosta de mim e com quem eu queria passar a noite e estou sozinho deitado na banheira com um litro de vinho pela metade. Pensando bem, acho que eu só tenho mesmo essa garrafa de vinho pela metade e que não vai durar muito, afinal já tá na metade. Então eu vou ter que sair e comprar mais uma. Não me parece certo que eu coma aquele queijo sem uma garrafa de vinho. E eu só queria passar a noite com essa mulher que eu dizia que tinha e que parecia gostar de mim. Mas ela tá bebendo no Mandíbula que é um bar notoriamente hipster com aquela legião de clones do Eddie Vedder e eu vou sair por aquela porta e comprar mais uma garrafa de vinho. Talvez eu não volte essa noite. Não há nada pra mim aqui. E não vai ter quando eu voltar. Talvez eu fique na rua bebendo o vinho. E eu juro. Eu só queria passar a noite com ela.

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