Roteiros roteiros roteiros 06/07/2018 - 14:50

Editado pelo selo Biblioteca Paraná, da Secretaria de Estado da Cultura, O tempo visto daqui reúne crônicas publicadas desde o início da imprensa paranaense até os dias de hoje. Organizado pelo professor da Universidade do Paraná Luís Bueno, o livro traz textos de nomes como Roberto Gomes, Domingos Pellegrini, Sylvio Back, Cristovão Tezza, Célia Musilli, Dalton Trevisan, Denise Stoklos, Helena Kolody, Jamil Snege, José Paulo Paes, Miguel Sanches Neto, Paulo Leminski, Valêncio Xavier, Wilson Bueno, Ademir Assunção. Este último é o autor da crônica que selecionamos para esta edição da Helena, publicada no jornal Nicolau de janeiro de 1988.

Sobre o texto, Luís Bueno escreve: “Às vezes, a crônica assume forma de manifesto na mão de jovens escritores. É o que acontece com a que abre o livro, de Ademir Assunção, que em 1988 traça para si mesmo um roteiro de liberdade formal e de vanguarda, cheio de referências, algumas explícitas outras nem tanto, aos artistas que o interessam nesse ponto fundamental que é o começo de uma carreira literária: John Cage, Caetano Veloso, Lewis Carroll, os concretos, James Joyce, Jimmy Hendrix, Tom Waits, Gilberto Gil. Com isso, repete gesto feito por Emiliano Perneta exatos 100 anos antes, mas pelo avesso, pela via da negação. Sendo outros os tempos, outras são as provocações do poeta, as atitudes que reivindicam liberdade de pensamento e de criação com o afastamento da ideia de evolução, da religião, da literatura canonizada na academia, dos sistemas filosóficos então na moda”.

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                  Ilustrações: Cesar Marchesini


★ Algumas coisas me assustam: latido de cachorro, principalmente à noite. A caretice dos anos 80. Quando sinto a barra pesando, meu pé direito dispara feito um sismógrafo pressentindo — quem sabe — um terremoto. Nesses casos ouço os mugidos de Rimbaud, lançados no Brasil em compact disk M para Matar. Mas se estou enfezado, revido. Penso cá com meus botões tão Waits: “É, quando você é jovem, você não tem nada, mas tem tempo”.

★ Quando fumo, entendo melhor a gaze tribal do rock.

★ Quando atravesso demais o compasso, escuto Caetano. Araçá Azul fica sendo o beijo mais belo do medo. Fica sendo segredo. Fica sendo brinquedo.

★ Quando me alegro em excesso, me alegro mais ainda. Rio à toa. Mas prefiro os oceanos. O infinito é que interessa.

★ Quando sinto uma nuvem radioativa de tristeza se aproximando, levo um lero com Humpty Dumpty, o homem-ovo, meu fiel amigo. Juntos, montados na ave Felfel, saímos à caça do Jaguadarte.

★ Quando emburro, despacho logo, acuso em meu radar seu sorriso lindo como um holograma do Moysés Baunstein, meu amor, minha estrela de Floripa, minha antena parabólica. Falando sério: io love você.

★ Falando sério: me perco em suas curvas de Dia Dorim Noite Neon.

★ I’m sorry galera, mas diante da cabeça prateada de um John Cage, por exemplo, não posso chamar de artista qualquer egoinflado que faça aquilo que o mercado bem pensante e lucrativo julga ser arte. Quer dizer, poder posso. Mas que importância teria isso?

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★ Não sei se sonhei. Não sei se sempre sonho. Mas uma cena anda ondulando na cuca. Quase como cena de cinema, como um parangolé do Hélio, como hey joe do Hendrix. Que significado tem não sei: é assim: uma garota punk esverdeada pergunta a uma sereia: ei, como fazer pra se bem viver? O elfo, encantado, responde: sei não. A sereia sorri. A sereia é Daryl Hannah. O elfo toca flauta. A garota punk dança. A vida passa como um karmaval.

★ Oswald de Andrade, o doutor canibal, disse certa vez: o homem vive entre dois brinquedos: o amor onde ganha, a morte onde perde. Não sei se quando disse homem ele estava se referindo também às mulheres. Mas adoro colecionar frases, assim, soltas. A gente sempre pode precisar. Essa, por exemplo: vai bicho, desafinar o coro dos contentes.

★ Riocorrente, riocorrente, erronte vendo e vindo, Rino & Zeno, Cerronte d’Alquimim, que Ana mais Bela mas que trela Rita Ree? Corre rio, recorrente, sonho errante: quem dera um ria, outro à caça do Vidente: “O poeta se faz vidente com um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos”. Excresceram a tenra e terna polpa eterna da nossa rebeldia? Riocorrente, riocohendrix não cria musgo: mas o que andam fazendo com o rock’n’roll?

 ★ Estrelas pra tigo e migo estralam no meu coraçãozinho de galinha num xinxim. Estrelas pra você, estrelas pra mim: ESTAR UM CORPO EM OUTRO QUALQUER NEM SEMPRE NADA É NÃO) MEU BEM (STAR TALVEZ EM CONSTELAÇÕES DE LEÕES TÃO DENTRO E ★★★★

 

Ademir Assunção é jornalista, poeta e letrista. Publicou, entre outros livros, LSD nô, A máquina peluda, A voz do ventríloquo e Pig brother.

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