Quarup ontem e hoje 06/07/2018 - 15:20

Lançado há cinco décadas, o livro de Antonio Callado traduz problemas ainda atuais — um mérito que não o impediu de, aos poucos, ser esquecido

Regina Zilberman

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   Ilustrações: Moara Brasil

Na aba que acompanhou as primeiras edições de Quarup, ainda sob a guarda da então incansável e imbatível Civilização Brasileira, Franklin de Oliveira profetizava: “Quarup representará para a literatura brasileira, no decênio de 60, o mesmo impacto em que, na década de 50, importou Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa”. A seguir, o crítico equipara o romance ao Doutor Fausto, de Thomas Mann, mais adiante cotejando a amada de Nando, Francisca, à Natacha, de Guerra e paz, de Tolstói. Nada mau para uma obra brasileira de um autor que, se já se notabilizava na ficção e na dramaturgia, ainda não tinha realizado nada tão relevante.

Noves fora o desejável entusiasmo que uma aba deve expressar, no empenho de valorizar o livro que difunde, a profecia de Franklin de Oliveira parecia se concretizar no sucesso que Quarup obtinha naquele final dos anos 1960. E no prestígio doravante usufruído por Callado, suscitando ensaios e estudos, a exemplo do que elaborou Ligia Chiappini em 1982, premiado com o cubano Casa das Américas. Sucesso e prestígio que, com o tempo, parecem ter-se esfumado, ainda que o romance figure atualmente no catálogo da editora Record, em impressão, todavia, de 2014.

Por que Quarup pôde provocar tanto entusiasmo? Por que perdeu impulso com o tempo?

Para responder a primeira questão, rebobine-se a fita até 1967, ano de publicação do livro. O golpe militar comemorava seu terceiro aniversário, e um novo general, Artur da Costa e Silva, ocupava a presidência, em substituição a Castelo Branco. Na passagem, uma nova constituição tinha sido promulgada, arrochando ainda mais os direitos civis. Esboçava-se o “milagre brasileiro”, que chegaria a seu ponto culminante ao final da década, sob a batuta do economista Antônio Delfim Netto.

Se, na esteira do golpe de março de 1964, as elites políticas de distintos, e até contrários, matizes ideológicos acreditavam que os militares não tinham vindo para ficar, bastando resistir por meio da cultura, fértil em canções de protesto e teatro engajado, na abertura de 1967 desfazia-se o véu da ilusão. Mas a opção pela luta armada ainda não se materializara, restando à esquerda a mobilização oficializada pelo MDB, partido de oposição permitido por lei. Fora desse quadrado, apenas estudantes de nível médio e superior, bem como sacerdotes simpáticos à Teologia da Libertação, promovida por João XXIII, expressavam insatisfação por intermédio das alternativas que se ofereciam, as mais evidentes sendo as marchas de rua. Que esses movimentos eram inócuos provam-no as personagens nascidas do escárnio de Nelson Rodrigues, criador do padre de passeata, precursor, pelo avesso, do protagonista de Quarup.

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Fernando, contudo, não é o primeiro sacerdote que ocupa a posição de protagonista na literatura em língua portuguesa, papel inaugurado pela personagem central de O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós. A ficção brasileira mostrava-se fértil em seminaristas que eventualmente chegavam a se ordenar, como narra Bernardo Guimarães, mas que via de regra abriam mão da vida religiosa, como se verifica em Dom Casmurro, de Machado de Assis, e em Informação ao crucificado, de Carlos Heitor Cony.

É a condição de sacerdote ordenado liderando a trama de um livro brasileiro que confere originalidade à personagem. Porém, nos anos 1960, não eram incomuns clérigos de bom caráter atuarem em obras de ficção, filão explorado com grande sucesso pelo australiano Morris West, autor de O advogado do diabo e, especialmente, de As sandálias do pescador, cujo enredo centra-se na trajetória do prelado que, ao final da narrativa, é consagrado papa pelo colégio de cardeais, em Roma. Por sua vez, Antonio Callado não precisaria buscar fora da própria trajetória literária personagens e temas associados à religião: em Assunção de Salviano, seu romance de estreia, a figura que dá título ao livro, originalmente um comunista ateu, transforma-se, com o andar da intriga, em católico sincero e participante. Em A madona de cedro, que sucedeu àquela obra, é o furto de uma escultura sacra que mobiliza a fábula, com efeitos sobre a personalidade de Delfino Montiel, que almeja redimir-se do crime e redescobre a fé, após reeditar a paixão de Cristo durante a Semana Santa.

Fernando, portanto, possibilita à literatura brasileira dar vazão a um tema que mobilizava leitores de todo tipo, desde os apreciadores de obras com preocupações teológicas, como as de Morris West, até os admiradores de Antonio Callado, celebrizado também graças à autoria de peças como Pedro Mico, marco da dramaturgia nacional. Porém, o que faz dele protagonista de um romance de sucesso é que Callado entronca na personagem não apenas questões relativas à vocação religiosa, mas as que dizem respeito à sociedade brasileira durante dez anos da então história recente do país. Com efeito, a trajetória de Fernando coincide com o percurso político do país entre 1954, ano do suicídio de Getúlio Vargas, e 1964, ano do golpe civil-militar, com a consequente perseguição aos grupos militantes de esquerda.

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Quase outra pessoa

Quando a ação de Quarup começa, Fernando trabalha junto ao ossário do mosteiro onde vive, restaurando os esqueletos dos padres ali enterrados. Apaixona-se por Francisca (nome com que provavelmente Callado homenageia Francisco Julião, líder nas Ligas Camponesas até 1964 e, em 1967, exilado no México), a que não tem acesso por um duplo veto: ela é noiva de Levindo, militante da causa dos sem-terra, e ele, na qualidade de clérigo católico, fizera o voto de castidade. Quando a ação termina, Fernando é quase outra pessoa: abandonou o sacerdócio, amou Francisca em pleno Xingu, militou em nome da pedagogia emancipadora de Paulo Freire, esteve preso, fugiu da cadeia, matou um homem e optou por aderir ao movimento de resistência ao regime militar, configurado na guerrilha rural a ser implementada no sertão à luz da prática de luta armada vitoriosa em Cuba, sob a égide de Fidel Castro. A metamorfose final leva-o a mudar até a própria identidade, afirmando responder agora pelo nome de Levindo, que fora assassinado pelas forças da repressão.

Enquanto isso, o Brasil também passa por profundas modificações políticas. Ao suicídio de Vargas, sucedem-se crises políticas atenuadas à época da presidência de Juscelino Kubitschek, mas intensificadas nos primeiros anos da década de 1960, com a renúncia de Jânio Quadros e a destituição de João Goulart, o qual, em 1964, prometia reformas de base e era hostilizado pela direita civil, militar e religiosa.

A narrativa de Quarup intensifica os episódios inicial e terminal do processo que tomou um decênio, compondo um arco temporal que se estende da morte de Vargas à deposição de Goulart, sem se deter particularmente nos períodos intermediários. Mas destaca pontos fortes do panorama político nordestino, em especial a atuação das Ligas Camponesas, a administração de Miguel Arraes no governo de Pernambuco, as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Ant0nio Callado lida de modo adequado com o pano de fundo político, sem transformar seu livro em um romance histórico, nem deixar de contextualizá-lo, o que garante sua eficiência quando se trata de evidenciar a mensagem em nome da ação revolucionária. Não por coincidência Fernando transita do ossário fechado, habitado por mortos, para o espaço aberto do sertão, onde terá meios de efetivar seus propósitos ideológicos sem amarras conservadoras ou anacrônicas, como segmentos da Igreja até então praticavam.

Nos idos de 1967-1968, a mensagem não passou em branco, garantindo o sucesso do livro, a que se somou outra propriedade: Callado conferiu protagonismo ao Xingu, com sua natureza exuberante e populações nativas quase intocadas pela civilização ocidental. Ao fazê-lo, o escritor ressuscitou a veia indianista da literatura nacional, exangue desde o final do Romantismo (ainda que reativada à época do Modernismo, com as experiências de Mario de Andrade, em Macunaíma, e de Raul Bopp, em Cobra Norato) e ofereceu-lhe alternativas até então impensadas. É só depois de Quarup — e bem depois — que Darcy Ribeiro, em 1976, publicou Maíra, outro marco de nossa ficção da segunda metade do século XX, devedor em alguns aspectos do antecessor (a personagem central é, no início da trama, um seminarista), mas que avança em termos de uma poética indianista, ao outorgar o papel de herói a um indígena.

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Esses méritos não impediram Quarup de, aos poucos, ser esquecido. A geração que o acolheu não foi sucedida por adeptos da temática política proposta, provavelmente porque a luta armada fracassou, não tendo alcançado os resultados pretendidos: o regime civil-militar vigorou por mais de 20 anos, a revolução socialista não se consumou, o país tomou o rumo da modernização dependente do capitalismo internacional que o caracteriza até nossos dias. Nos anos 1970, a literatura brasileira mostrou-se, nos textos de Dalton Trevisan, Rubem Fonseca e Ignácio de Loyola Brandão, mais amarga e transgressora, e os anos 1980 depararam-se com os depoimentos dos exilados políticos, que, retornados, mostraram as diferentes facetas da guerrilha e da repressão, à maneira de Fernando Gabeira, Frei Beto e Alfredo Sirkis.

Nem por isso se deve deixar de ler Quarup, e não porque seja documento sobre uma época da literatura e sobre as relações de escritores e personagens com as circunstâncias políticas que então agitavam o país. Mas porque os fatos não mudaram muito, e o universo retratado por Callado, revelando as desigualdades na distribuição da propriedade rural, a dizimação das populações indígenas e de suas culturas, as incertezas e oscilações da esquerda, não foi superado e é de uma assustadora atualidade.

Quarup pode não nos dar as soluções; mas traduz os problemas de então e de agora, competindo a cada um encontrar um caminho para sua superação.

 

Regina Zilberman é escritora, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tem mais de 20 livros publicados, entre eles A literatura infantil na escola, A leitura e o ensino da literatura e Fim do livro, fim dos leitores?.

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