Portugal anexado 06/07/2018 - 14:40

O relato de uma temporada em Lisboa, onde a vida dos brasileiros recém-chegados nem sempre é tão fácil quanto pode parecer  

Renan Borges Simão

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Ilustrações: FP Rodrigues

“Parece que Portugal é mais um estado brasileiro”. Essa frase ficou na minha cabeça por quase seis meses, o tempo que morei em Lisboa no ano passado. E matutei em muitos papos de pastelaria sobre o fluxo de brasileiros rumando para terras lusas, assunto presente nos noticiários de ambos os lados do Atlântico e em minha experiência na capital.

A frase foi dita em uma das aulas do meu curso de mestrado, em uma classe quase dividida entre brasileiros e portugueses. Em ambos os “lados”, as mulheres eram maioria. Uma delas disse isso ao responder a uma das primeiras interações da professora de Antropologia e Imagem com a turma, depois de mostrar curiosidade sobre o que achamos de Portugal, dos portugueses e do clima. A resposta mais taxativa foi essa. Parafraseio os motivos da simbólica anexação lusa ao Estado brasileiro: a língua é a mesma; a comida, ótima e semelhante à nossa; e Lisboa parece com o Rio — ela é carioca. O frio, que nos lembrava de nossa estada na Europa, não entrou na resposta; relevemos.

Em partes, dá para concordar. O Bairro Alto pode lembrar Santa Teresa, e não é preciso ser urbanista para identificar semelhanças entre a baixa lisboeta e o centro da cidade de São Sebastião. As calçadas de pedra portuguesa não enganam, tampouco as toponímias para largos, travessas, arcos e ruas com nomes de santos católicos. Sobre a comida: esquecendo-se do câmbio desfavorável, da exígua variedade de frutas comparada à nossa e da mandioca, pode-se tranquilamente se esbaldar de azeite, batata, peixe, pão com chouriço e doces à base de ovos. E a língua, salvo variações geográficas e sociais, é realmente a mesma, claro.

É a mesma, mas os portugueses, de modo geral e sem imprimir juízo de valor explícito, teimam em chamar a “nossa” de “brasileiro” — o que eu sempre corrigia. Era uma forma sutil de dizer: “Vocês nos colonizaram, sim, toma que o filho explorado é teu”. O fato é que o contraste de sotaques e do uso distinto das palavras dessa mesma Língua Portuguesa geram um choque reduzido. No dia a dia, promove de chistes inofensivos (alguns deles xenófobos) a encontros com o humor ranzinza português — este, um monumento nacional às coisas ditas ao pé da letra. (Certa feita, fui comprar um queijo e perguntei se era bom. “Eu venderia se fosse ruim?”, respondeu o vendedor).

Com uns meses, a gente pega o que eles falam. E eles, bem, eles entendem tudo o que falamos. Para além dos clichês, que você encontra em dúzias de blogs ao alcance de uma busca no Google, minha maior surpresa foi quando, no cardápio do restaurante, li “grelos”, ri, e perguntei o que era ao garçom. Sem me deixar terminar a pergunta, veio “couve” na resposta, como se fosse parte de sua rotina diária — na verdade, grelo é a flor que dá em couves, nabos e nabiças.

Na ponta da língua

Existem várias razões para os portugueses conhecerem o “nosso” idioma, muito mais do que nós o deles. As telenovelas, exibidas por lá desde o fim dos anos 1970, estão na ponta da língua dos lusos. E o fato de que, até 1994, a maioria das dublagens (dobragens, para eles) de desenhos infantis eram brasileiras quase me fez cair da cadeira. Imagine uma multidão de crianças lusitanas assistindo a Aladim e A Pequena Sereia com a mesma dublagem carioca que eu via? É um choque geracional.

Tudo isso faz com que Lisboa pareça algo próximo de casa (do Porto para cima, Madeira e Açores já são outra história). Posso falar do jeito que quiser com meu sotaque caipira do interior de São Paulo e, na maioria das vezes, a pessoa sabe razoavelmente da minha cultura, talvez mais do que em qualquer outro país do mundo. É como sentir-se confortável em um lugar desconhecido. 

Isso não significa, claro, que o papo furado surgido ao pedir uma imperial na tasca seja mais natural e autoconsciente do que quando pedimos um breja no boteco. Mas o que me impede de cravar que Portugal, ou mesmo Lisboa, é uma região quase-Brasil é justamente essa confiança de que há uma cultura plenamente partilhada.

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Êxodo?

Tem muito brasileiro que levou a sério a piada e tomou o caminho do aeroporto. É o que dizem alguns dos principais jornais e revistas. Os sotaques brazucas realmente apareciam para mim pelo menos uma vez por semana no metrô ou na fila do pão. Afinal, desde 2008 somos a maior comunidade estrangeira residente em Portugal, somando um quinto do total, segundo relatório de 2016 do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) — de 1999 a 2007, Cabo Verde encabeçava a lista. Entre 2010 e 2016, 87 mil brasileiros obtiveram cidadania portuguesa.

Contudo, desde que li o levantamento da Mono/Volt Data Lab de abril de 2017 informando, respectivamente, pico e queda do número de brasileiros morando no país de 2010 a 2015 (de 119 mil a pouco mais de 80 mil), fiquei ressabiado. Mais: segundo o jornalista Sérgio Spagnuolo, a partir de dados do SEF, “o número de vistos de longa duração [para trabalho ou estudos] cresceu em três quartos desde 2009, para mais de 5 mil em 2015, mas isso é uma pequena parte dos quase 12 mil vistos concedidos em 2004”.

Ah, mas tudo mudou depois de 2016, com a nossa crise política e a considerável saída da recessão econômica deles, o leitor diria. Sim, os dados de 2017 devem mostrar 9, 5 mil vistos emitidos para a entrada em Portugal, informa a Deutsche Welle no último mês de março, com dados não consolidados da embaixada portuguesa no Brasil. Repare, esse número é maior que o de 2015, mas ainda assim menor que o de 2004.

Com esse panorama, podemos falar da migração Brasil-Portugal sem começar com a expressão “Nunca antes na História...”, mas afirmando com alguma segurança que tem mais brasileiro pulando a poça 98 do Atlântico nos últimos cinco anos. Aos que têm dinheiro para passear pela lusitânia — em 2017, foram 20,6 milhões de cidadãos do mundo zanzando por lá, 9% a mais do que no ano anterior —, a tendência é forte, e os brasileiros estão nessa. Foram 869 mil dos nossos turistas no país no mesmo período, um número 39% maior do que em 2016 — os dados são do INE (Instituto Nacional de Estatística) de Portugal.

Em relação aos estudantes, os nossos são cerca de 9 mil dos 30 mil estrangeiros ocupando cadeiras em universidades portuguesas, dados de 2013. Em 2006, eram 2 mil. À nossa elite econômica imigrante, cabe desde 2012 um regime de autorizações de residência para investimentos, o chamado visto gold, que ofereceu ao todo quase 500 permissões a investidores brasileiros endinheirados, segundo o SEF.

Se você não tem milhares de euros para investir, resta ouvir as declarações do ministro português de Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, que defende estender o visto gold a qualquer brasileiro. “Nossa proposta é que a CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa] seja um espaço de circulação livre e interna, como funciona a União Europeia. (...) Um brasileiro teria autorização de residência em Portugal por ser brasileiro, seja pobre, rico, empresário ou trabalhador”, disse a O Globo no fim do ano passado.

Antes de sonhar com o acordo diplomático, os dados que temos em mãos, como nota o portal português Visão em fevereiro deste ano, indicam que lideramos a lista de permanência ilegal (3,4 mil em 11 mil casos) e de recusas de entrada (mais da metade do total de 968 processos) em Portugal, segundo o SEF.

Não precisa vir hoje

Algumas histórias podem contextualizar ou desafiar esses números. A jornalista Gabriela Ferri saiu da Irlanda em busca de estudos e custos de vida mais baratos. Em Lisboa, encontrou facilidade em fazer a matrícula do curso de pós-graduação, apresentou os documentos necessários para conseguir o visto de estudante e estabeleceu-se por três meses. Nessa espera, como turista, não pôde trabalhar. Pagou 90 euros no processo todo e, já de volta à Irlanda com curso pago e incompleto, há nove meses não recebe uma resposta do SEF. “Tive uma espera de dois meses para conseguir meu primeiro atendimento. Já havia lido muito a respeito do departamento de imigração deles estar abarrotado de pedidos e, consequentemente, o processo estava sendo mais lento”, conta.

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Carlos Conte, formado em Letras na USP, trabalhava como garçom, só que ganhava por noite. Quando o movimento estava bom, o aluguel estava garantido. Quando não, ouvia o decepcionante “Não precisa vir hoje”. Hoje, Carlos afirma que há trabalho na áreas de restauração (restaurantes) e turismo, e que é fundamental ser fluente em inglês. “No geral, paga-se pouco. Na área de restauração, em torno de 3 euros a hora. Sei de muita gente que trabalha há meses na informalidade; eu mesmo trabalhei assim durante quatro meses, sem contrato, sem garantias”, diz. Em sua área, Conte não encontra nada há seis meses.

Já Cida Barbosa esteve atrás do balcão de um quiosque de shopping center e se sentiu “muito grata” pela oportunidade, mesmo sendo educadora de formação. “Ele [o patrão] me pagava em mãos, mas me pressionava para fazer o contrato. Não fiz porque não tinha na época o NIF [o CPF deles] e o número de segurança social. Geralmente, fazem contrato ou recibos verdes, como se fosse prestação de serviço [com contribuição à segurança social]”, conta a mestranda em Estudos Portugueses na Universidade Nova de Lisboa. Cida achou o trabalho por indicação de uma amiga.

Com visto de estudante e NIF, “possíveis empregadores não queriam me contratar porque eu não tinha segurança social e atestado de residência”, afirma a radialista Luiza D’Elia, que trabalha em uma hamburgueria, também para pagar a pós-graduação em Lisboa. Hoje, com contrato de trabalho e número de segurança social providos pelo patrão, ela espera do SEF a mudança do visto de estudante para o de trabalho.

O salário mínimo de 580 euros pode parecer pouco, mas se apertar o cinto da calça e encontrar os cada vez mais raros aluguéis abaixo de 300 euros para moradia, você paga as contas e ainda sobra uns trocados para gastar com uma aviação low-cost. Não é simples conseguir. No ano passado, apenas 3,5 mil imigrantes residentes tiveram autorização para trabalhar. Os otimistas se apegam a uma recente flexibilização da legislação para o trabalho de imigrantes que já se encontram em solo português. Antes de 2017, era preciso ter um contrato assinado de trabalho; hoje é necessário um documento de promessa de contrato.

Machismo e xenofobia

“O que mais dificulta é a longa fila de espera, tanto pra conseguir o agendamento na imigração quanto para receber o número da segurança social”, afirma a designer Mariana Todorov. Ela procurou trabalho em Lisboa por quatro meses. Alegando atraso nos procedimentos do SEF e sem a documentação, não encontrou ocupação. Voltou para o Brasil. “Cada lugar dava uma parte da informação e ninguém [do SEF] atendia o telefone. Tem gente esperando há mais de ano e sem previsão de retorno”, lamenta.

Para as mulheres, há um problema a mais na hora de buscar trabalho: uma espécie de machismo combinado com xenofobia. Quando compareceu a uma entrevista de emprego para a vaga de garçonete, a jornalista Juliana Santos passou por esse tipo de situação. “O gerente leu meu currículo e viu que eu não tinha experiência. Disse que não teria tempo para treinamento, mas teria outra vaga para mim. Eu ficaria na frente do restaurante chamando os turistas para ver o cardápio. ‘Ok, o que eu tenho que fazer?’, perguntei. ‘Não precisa se preocupar’, ele disse, ‘porque você, uma mulher brasileira, tem todos os requisitos para atrair qualquer cliente em qualquer lugar do mundo’”, conta.

Nelson Camanho, professor-assistente de Economia da Universidade Católica de Lisboa, afirmou ao site Observador que “fontes não oficiais sugerem que este número [os tais 80 mil brasileiros residentes em 2015] é cerca de metade do número real de brasileiros em Portugal”. Procurado pela Helena, Camanho evita prognósticos sobre o tema, mas aponta tendências.

“Não há preparação necessária para a mão de obra imigrante se esta for bem educada, como a da recente vaga [onda] de brasileiros. E se houver uma vaga migratória de baixa educação (de brasileiros ou não brasileiros), isso só tem a ajudar a economia portuguesa, já que permite que alguns serviços sejam desempenhados a custos mais baixos”, analisa.

Até 2080, a população idosa continuará a aumentar e 600 mil jovens deixarão a estrutura etária portuguesa, segundo o INE português. Serão precisos, até 2060, 75 mil imigrantes por ano para preencher a mão de obra, de acordo com estudo da Fundação Manuel dos Santos.

Notável pequenez

Segurança é o tema que as pessoas mais repetem ao enfatizar o porquê de morar em Portugal. Não é para menos: o país está em terceiro lugar no ranking mundial de segurança pública, segundo o relatório Global Peace Index — o Brasil ocupa a posição de número 108. Mas há um atenuante. Portugal tem 10 milhões de habitantes, número que vem caindo nos últimos anos por conta de velhice e emigração. Lisboa, por exemplo, tem meio milhão de cidadãos. A minha Taubaté tem 300 mil, e nem o leitor da Helena conhece Taubaté, muito menos um português.

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A pequenez do país é notável no dia a dia. Estava almoçando com a minha namorada no Porto e a TV anunciava que 19 mulheres foram mortas vítimas de violência doméstica em 2017. “Mas 19 em quantas?”, ela perguntou. “Só 19 mesmo”, confirmei. (No Brasil em 2016, em média, 12 mulheres foram assassinadas por dia, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

O noticiário lembra mesmo, muitas vezes, o valeparaibano. Na mesma edição, policiais de Cascais, cidade da região de Lisboa, repudiavam o conteúdo da ceia de Natal dada aos plantonistas do dia 25. Ruim? Era uma cesta individual com carne de porco, batata e garrafa de vinho. Foram mais 2 minutos de reportagem cobrindo todos os lados da revolta da ceia, o que para TV é uma eternidade.

Coincidência ou não, há 17 anos o uso de todas as drogas é descriminalizado em Portugal. O que significa que, se você for pego fazendo o uso recreativo de drogas ilícitas, seu caminho não será a prisão, mas um suporte médico. O aborto é legalizado desde 2007 e o número de procedimentos caiu entre 2008 e 2015, colocando o país abaixo da média europeia.

Ambas as pautas são, em alguns casos, caras à esquerda. O espectro político é atualmente representado em Portugal por uma maioria composta no Parlamento pelo Partido Socialista (do primeiro-ministro António Costa), o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda que, desde 2016, fez a economia crescer sem recorrer a uma agenda neoliberal de austeridade, que ocorreu entre 2011 e 2014 com a direita no poder. Um informe desses deve causar calafrios em liberais e conservadores de cá e surpresa até para os acostumados a ouvir as pautas da esquerda. Na esquina de casa, um café quase boteco exibia em suas paredes palavras de ordem contra a “troika”. Na hora, entendi como alguma crítica aos socialistas. Depois descobri que a troika, no entanto, é como chamam a trinca Fundo Monetário Internacional, União Europeia e Banco Central Europeu.

A representação máxima do orgulho revolucionário que presenciei, involuntário ou não, foi quando às 4 da manhã em casa, ao fim de uma festa, apertou-se o play em “Grândola, Vila Morena”, clássica canção de Zeca Afonso, símbolo da não tão longínqua Revolução dos Cravos de 1974. Dois amigos portugueses, sentados um de frente para o outro, cantavam. Os olhos fechados, expressão de emoção. Perguntei ao ilustrador Diogo Silva, natural de Grândola, no Alentejo, se ele curte mesmo a música. “Não”, afirmou. “Mas você deve sentir algo forte quando escuta”, retruquei. Ele recostou a cabeça no sofá e disse: “Fuck yeah”.

 

Renan Borges Simão  é jornalista. Colabora com a revista e o site Nova Escola

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