O último fog em Londres 20/11/2018 - 15:50

As memórias de um jornalista brasileiro no rigoroso inverno britânico de 1962 /63 — período que antecipou uma era de revoluções na cultura local e mundial

Roberto Muggiati

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Arquivo pessoal

“Big place London. I must show you London sometime. You’d be astonished...” Superintendente da Scotland Yard no filme noir Obsession (ou The hidden room), de Edward Dmytrik, 1949.

Cheguei a Londres da maneira mais insólita. Viajar barato pela Skyways envolvia vários tipos de transporte. Peguei um ônibus aposentado da frota parisiense na Place de la République ao meio-dia de uma segunda-feira chuvosa, 4 de dezembro de 1961. O veículo arrastou-se na tarde cinzenta até um pequeno aeródromo nas imediações de Beauvais. Não chegávamos a 20 passageiros, em uma hora descemos do outro lado do Canal da Mancha num avião pré-Guerra, com direito a muita turbulência. No campo de pouso da Skyways em Lympne, embarcamos num double-decker, aqueles ônibus de dois andares que os ingleses adoram — e os estrangeiros também. Seu destino era a Victoria Coach Station, em Londres, um terminal de ônibus regionais decrépito, apesar de ficar a 300 metros da casa da Rainha, Buckingham Palace.

Passei rapidamente pelo banheiro, cotado como um dos piores da Europa pelo Good Loo Guide. Numa reportagem do Daily Telegraph, décadas depois, fiquei sabendo mais: “Em nenhum lugar da Grã-Bretanha estranhos se abrem mais uns com os outros do que na Victoria Coach Station, forçados a esse comportamento incomum pela adversidade e solidariedade”. Felizmente, não perdi muito tempo ali. Com minha maleta de mão, sem guarda-chuva, mergulhei na noite molhada e no misté- rio da metrópole. Cito Joseph Conrad: “A visão de uma cidade enorme se apresentava, uma cidade gigantesca mais populosa do que alguns continentes e, em seu poder feito pelo homem, como que indiferente às carrancas e sorrisos do céu: uma cruel devoradora da luz do mundo. Havia bastante espaço aqui para situar qualquer história, profundidade bastante para qualquer paixão, variedade bastante para qualquer cenário, escuridão bastante para soterrar 5 milhões de vidas”.

A minha Londres de 1961 soterrava 8 milhões de vidas.

A viagem tinha um objetivo: conseguir um emprego no Serviço Brasileiro da BBC. Meu contato era a amiga de um amigo, Mildred Julia Hazell, secretária de Alberto Palaus, chefe do Serviço. Combinamos que eu faria os testes de tradução, redação e locução no escritório da BBC em Paris.

Consegui o emprego e, em agosto de 1962, voltei a Londres para três anos de BBC. Uma palavra sobre Mildred, meu anjo da guarda. Era bonitinha à sua maneira, mignon, inteligente e viva. Na infância, nas ruas de Buenos Aires, envergara o uniforme do Exército da Salvação, passando o pires enquanto o pai e a mãe batiam bumbo pedindo contribuições. Mildred não estava mais na BBC. Era secretária do cônsul brasileiro em Londres, Luís Carlos Thedim. Esse emprego também não durou muito. De repente, Mildred se casou com um psicanalista judeu de Beverly Hills, Dr Murray Korngold, o dobro da sua idade. Lembro um detalhe da festa, no apartamento de Thedim: o cônsul galante brindou Mildred, tomando champanhe num dos sapatinhos da noiva.

Em novembro de 1964, Mildred me convidou para uma movimentada party, que marcou para mim a ruptura final entre a Londres vitoriana e a Swinging London. Depois de uma temporada em L.A., o casal Korngold, de volta a Londres, alugou uma casa em 22 Maresfield Gardens, vizinha à residência de Freud (Anna, a filha do Dr. Sigmund, ainda morava lá). Os psicanalistas predominavam na festa. O Dr. Murray comentava jocosamente com os colegas sobre um paciente pouco chegado a banho que deixava odores desagradáveis no seu divã, forrado com tapetes persas, como o do mestre. Nessa farra psi, os “estranhos no ninho” éramos eu, uma manequim casada com um produtor de gravadora que me daria carona no seu reluzente Jaguar, um romancista africano e sua namorada, uma jovem inglesa que, visivelmente etilizada, bradava: “I wanna go to the loo! I wanna go to the loo!”. Loo — abreviação de Waterloo — é como os ingleses se referem ao banheiro.

O que mais marcou minha passagem de três anos por Londres foi a Grande Neve do inverno de 1963, batizado como “O ano da ânsia de morrer” por Christopher Booker no seu livro inteligente e perspicaz de 1969: The neophiliacs / A study of the revolution in english life in the fifties and sixties. Ele descreve:

“A extraordinária natureza do ano foi anunciada e agravada na Grã-Bretanha por três meses do pior inverno registrado em mais de 200 anos, trazendo caos e paralisia a quase todo campo de atividade humana. Sobre Londres, o fog pairava como uma mortalha, combinando com a neve para dar à cidade um ar de irrealidade fantasmagórica”.

Na última noite de 1962, eu estava na casa de um colega da BBC, em meio a uma horrenda briga de casal. O marido se irritou porque a mulher não conseguia atender a demanda de pasteis de camarão que eu e ele devorávamos, refestelados na sala com um copo de uísque na mão.

Ficar naquele lar, amargo lar, a menos de uma hora da virada do ano não era o meu ideal de réveillon. Dei uma desculpa qualquer e me mandei para Trafalgar Square, o ponto tradicional das comemorações da passagem do ano em Londres. Encharcada de cerveja, a turba (gosto da palavra inglesa mob, abreviação do latim mobile vulgus) aos berros se atirava nas águas geladas das fontes, sob o olhar crítico do almirante Nelson do alto da sua coluna. Poucos minutos depois da meia-noite, como nos melhores contos de Dickens, alguns flocos de neve começaram a cair silenciosamente. Eu não tinha a menor ideia de que era o começo de uma verdadeira catástrofe nacional.

Eu fora transplantado de Curitiba para Londres com um contrato de três anos para trabalhar no Serviço Brasileiro da BBC. A Bush House, que abrigava os Serviços Externos da BBC, era um imponente bloco de edifícios plantado entre a região dos teatros e a região dos jornais — logo depois começava a lendária Fleet Street. Uma verdadeira Torre de Babel, com transmissões nas mais inusitadas línguas do mundo, e um labirinto de salas e corredores abrangendo os serviços estrangeiros, os estúdios de gravação, edição e transmissão, a redação que gerava boletins de notícias 24 horas e o setor administrativo.

No Serviço Brasileiro, os redatores contratados iam da casa dos 20 à dos 40. Selecionados por concurso, vinham das mais diversas regiões do país. Havia veteranos, alguns remanescentes da “Legião Estrangeira do Éter” — tinham passado pela Voz da América (EUA), Rádio Canadá, pelas estatais da França, Holanda, Suécia, Itália e Alemanha. (Tive dois amigos que trabalharam na Rádio do Cairo, experiência que descreviam como literalmente tórrida.)

Havia também os freelancers, como Carlos Cotrim, galã de bigodinho dos filmes da Atlântida, que se parecia mais com Clark Gable do que o próprio Gable; o ator de teatro Luís Tito, figura bizarra e engraçada; e Lucy Ward, uma velha senhora do Amazonas que se casou com um inglês do Bank of London and South America e foi morar em Londres para o resto da vida. A viúva idosa — toda retorcida pela artrose, sem reclamar nunca das dores terríveis, gabando-se das obscene phone-calls que recebia — era uma criatura adorável, daquelas comadres de Jane Austen. Sabia tudo o que acontecia — e contava tudo — na diminuta colônia brasileira. (Pasmem: em 1962, excetuando o pessoal diplomático, havia apenas 60 brasileiros residentes em Londres.) Para os mais jovens, Lucy Ward era uma verdadeira mãe, com todo tipo de conselhos ou dicas de remédios e emprestava até dinheiro para os mais necessitados.

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Ilustrações: André Caliman

Eu morava num quarto no formato de uma caixa de sapato, 5 metros por 3 (e uns 3 de altura) no terceiro andar de um prédio vitoriano, em Collingham Gardens, SW5 (metrô Gloucester Road). O local, na verdade, não passava de uma grande casa de pensão, mas fora organizado como uma espécie de clube, com o título pomposo de Collingham Court Club. Havia um restaurante no basement, onde, antes de partir para o trabalho, os hóspedes tomavam o breakfast: suco de laranja ou grapefruit, chá com torradas, geleia e manteiga, um ovo duro, quase sempre com a gema mole, bacon frito e, na sexta-feira, um peixe, geralmente haddock defumado — uma dieta de alta octanagem para enfrentar o frio lá fora.

Curiosamente, este mesmo local em que as pessoas sentavam sozinhas e caladas lendo os jornais da manhã sofria uma transfiguração radical com a chegada da noite. A partir das 18 horas, o porão do Collingham Court Club assumia ares de grande saloon numa penumbra de luzes néon, oferecendo tidbits (petiscos) tradicionais, as melhores marcas de cerveja e os melhores spirits da praça. Spirits é álcool e não há melhor palavra para descrever o cenário: a maioria dos pensionistas do Collingham pareciam espíritos, pequenos funcionários, homens e mulheres, pessoas da terceira idade (ainda não se usava a expressão) que, depois da segunda dose, extravasavam de primeira toda a sua solidão. Fui uma só vez ao bar do Collingham — para nunca mais voltar. No frescor dos 25 anos, fui logo assediado por um bando de fantasmas que pareciam saídos de A noite dos mortos-vivos. (O filme só seria lançado em 1968, mas quem garante que seu diretor, George Romero, não teria se hospedado um dia no Collingham?) Na manhã seguinte, durante o breakfast, os sá- tiros e as messalinas da noite anterior voltavam a vestir a máscara de pacatos arquivistas e balconistas, sugando soturnos a gema mole do seu ovo duro.

A solidão cobrava seu tributo entre meus colegas da BBC. Um garoto jovem e brilhante, homossexual, resolveu importar do Brasil sua amiga poetisa. O casamento, de papel e tudo, no cartório das estrelas, em Victoria (Liz e Burton casaram lá), terminou duas semanas depois com o arremesso de um cinzeiro de cristal Lalique na testa de um dos cônjuges, não lembro qual. A noiva procurou abrigo no apartamento de um colega da BBC e logo depois voltou ao Brasil. O noivo, jovem e brilhante, prosseguiu suas investigações sexuais e intelectuais. No ano seguinte, de férias na Espanha, morreu afogado em Málaga. Quem cuidou das disposições funerárias foi nosso cônsul em Sevilha, o poeta João Cabral de Melo Neto.

O homossexual quarentão que deu abrigo à poetisa do cinzeiro Lalique também vivia seu drama. Tinha um caso de muitos anos com um inglês da aristocracia rural e morava no apartamento londrino do namorado. A famí- lia deste pressionava o filho para casar — com uma mulher, de preferência. Nosso colega passava as noites em casa com um litro de uísque e colocava no toca–discos A coroação de Pompeia: esvaziava a garrafa e viajava na ópera de Monteverdi, projetando-se na figura da amante de Nero, que rompia com a mulher e coroava Pompeia imperatriz.

E assim sobrevivíamos, em meio ao Grande Inverno. Volto a citar The neophiliacs:

“Em fevereiro, o grande frio, o fog e a neve continuaram. Ao longo do Tyne, do Tees e do Clyde, os estaleiros silenciaram. Por todo o Norte ‘vital’ as filas de desempregados aumentavam, 900 mil, o mais alto nível desde a crise do inverno de 1947. A Inglaterra, comentava-se, voltava a ser ‘duas nações’ como havia sido no auge da Depressão, 30 anos antes”.

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Debaixo daquele céu cinzento e opressor, pessoas importantes viviam seus dramas particulares. A segunda-feira 11 de fevereiro seria crucial para o trompetista Chet Baker, a poeta Sylvia Plath e os Beatles. Baker — que casara com uma inglesa e tivera um filho no Natal — vivia no “paraíso dos junkies”. Pela tolerante lei britânica, os viciados podiam se drogar com receitas do seu psiquiatra enquanto estivessem sob tratamento. Baker arrancava dinheiro fácil vendendo a história de sua vida para os tabloides britânicos (matérias sensacionalistas como “TRINTA MIL BURACOS DO INFERNO EM MEU BRAÇO”, escritas por um ghost writer e assinadas pelo músico). Tornou-se figurinha fácil na famosa “meia-noite de Piccadilly”: lá ficavam as farmácias 24 horas e, como a validade da receita começava à meia-noite, não havia um segundo a perder. Era uma corrida insana para se picar nas toaletes do metrô. Dividindo agulhas de injeção com outros, Chet contraiu septicemia e ficou hospitalizado por uns tempos; depois, se meteu em tanta encrenca que até a complacente Grã-Bretanha o acabou deportando para a França.

A sorte de Sylvia Plath foi mais radical. Naquele gélido 11 de fevereiro, depois de preparar o leite das crianças, enfiou a cabeça no forno da cozinha e abriu o gás, tendo vedado cuidadosamente as portas e janelas, evitando qualquer risco para seus dois filhos pequenos. Não foi sua primeira tentativa de suicídio. A culpa toda recaiu sobre o marido inglês, o também poeta Ted Hughes, que havia largado Sylvia por outra mulher, a também poeta Assia Wilson. Seis anos depois, Assia também se suicidou, matando antes a filha que tivera com Hughes. Hughes — crucificado pelas feministas — conseguiu transformar em poesia seu carma terrível nas Cartas de aniversário, em 1998, pouco antes de morrer de câncer. E, 47 anos depois, o filho de um ano de idade que Sylvia preservara do gás em 1963 se enforcava no Alasca, onde trabalhava como biólogo marinho.

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Mas nem tudo era desgraça. Naquela mesma segunda-feira, 11 de fevereiro, apesar da atmosfera cinzenta, Londres sorria para os Beatles. Eles passaram o dia inteiro no Estúdio Dois de Abbey Road, da EMI, gravando dez canções que, somadas a quatro faixas de singles anteriores, formariam seu primeiro LP, Please please me. Lançado em 22 de março, o álbum ficaria 30 semanas no topo das paradas, até ser desbancado por outro LP do grupo, With the Beatles. A gravação do álbum também levou a marca daquele inverno implacável. John Lennon estava com um resfriado terrível, que afetou a voz do crooner dos Fab4, e o longo dia foi enfrentado na base de “chá, leite, cigarros e Zubes” — nenhuma droga exótica, os Beatles ainda eram caretas: apenas inocentes pastilhas para a garganta... Poucos meses depois, Lennon trocava Liverpool por Londres, com Cynthia e o bebê Julian, instalando-se num apartamento em Emperors Gate... a 300 metros de Collingham Gardens.

E de repente, no meio daquele inverno sinistro, o amor aconteceu. A canção dos irmãos Gershwin, que eu ouvia na época na voz de Billie Holiday, passou a ter então tudo a ver comigo.

“A foggy day in London Town / Had me low and had me down / I viewed the morning with alarm. / The British Museum had lost its charm. / How long I wondered, could this thing last? / But the age of miracles hadn’t passed, / For, suddenly, I saw you there / And through foggy London Town/ The sun was shining everywhere.”

Claro, não foi bem assim. Havia o fog — e de certo modo me orgulho de ter vivido o último grande fog na história de Londres. Eu caminhava pelas calçadas de lajes quadradas de concreto, tateando como um cego o ar cinzento e opaco e me orientando, como os demais pedestres, pelo toc-toc dos sapatos ingleses com solado de couro. O romance começou aos poucos, no dia a dia da BBC. Os programas gravados e as transmissões ao vivo eram supervisionados por funcionários ingleses que ficavam no estúdio, do outro lado do vidro — numa espécie de aquário — cuidando da parte técnica. Gillian era uma destas studio managers e, depois de algumas trocas de olhares e palavras, iniciamos o que os ingleses chamam de um affair — um affair difícil, porque a jovem era casada e possuía um currículo familiar complicado.

Não tinha mãe e o pai vivia internado, com problemas de alcoolismo. O marido era tudo para ela — pai, mãe, irmão, primo, tudo talvez, menos marido. Por uma incrível coincidência, encontrei o casal, na noite de 10 de fevereiro (só agora me dou conta, na véspera do lendário 11 de fevereiro), numa sessão de domingo do National Film Theatre, a cinemateca londrina, uma moderna sala de 400 lugares debaixo da ponte de Waterloo. O filme tinha tudo a ver: era Brief encounter / Desencanto, de David Lean, um preto e branco de 1945 sobre uma dona de casa com um casamento insípido que vive uma paixão avassaladora, sem nenhum futuro, com um médico que conhece por acaso numa estação de trem.

Gillian era uma criatura suave, cabelos louros pálidos presos num rabo de cavalo, leves orelhas de abano que não fazia questão de esconder, algumas sardas, narizinho arrebitado, magra com a bacia larga, pernas longas e finas, tailleurs discretos geralmente em bege — é o que consigo lembrar, passados mais de 50 anos. Coisas que escapam à memória ficam às vezes para sempre em papéis avulsos. Muito tempo depois, perdido entre as pá- ginas de um livro que eu lia na época — Winter’s tales, de Isak Dinesen, em que a autora dizia que “O homem e a mulher são duas urnas fechadas, cada uma contendo a chave que abre a outra” — encontrei um bilhete escrito nas costas de um formulário de horas extras da BBC:

“Dear Roberto, I shall be in C24 from 1930 to 2215 so perhaps you could give me a ring there or drop in to see me. I’m sorry I had to terminate our telephone conversation so abruptly,

Gillian”.

Gillian fazia horas extras sozinha editando fitas no estúdio C24 e, a certa altura do horário que mencionara, fui visitá-la. Um lugar um tanto inusitado para um primeiro encontro a sós, beijos e amassos sob o teto da sacrossanta BBC — enfim, era a revolução sexual dos sixties em andamento.

Não há país do mundo onde o tempo exerça um controle tão rigoroso sobre a vida das pessoas. Afinal, o meridiano de Greenwich, ponto de referência dos fusos horários, ficava a poucos quilômetros de Bush House. As transmissões do Serviço Brasileiro iniciavam à meia-noite local, com as doze badaladas do Big Ben: não uma mera gravação e sim as batidas ao vivo, em link permanente com a rede radiofônica. Mas Gillian e eu éramos dos poucos habitantes de Londres livres da escravidão do relógio e gozávamos de uma admirável elasticidade de tempo. Eu cumpria o horário normal, o chamado ten to five, nas quartas, quintas e sextas; aos sábados e domingos, trabalhava com um colega à noite nas transmissões ao vivo.

Encerrado o trabalho, não havia mais metrô. No domingo eu voltava para casa no banco da frente do segundo andar de um ônibus vermelho, curtindo Londres sob as luzes da noite. No sábado, só faltava tapete vermelho ao sair: um motorista de boné e libré abria para mim a porta de um Bentley ou um Hillman de luxo estacionado diante do portão principal de Bush House, e me deixava na porta de casa. Era o grande gesto de generosidade da Mãe BBC: como não havia transporte público depois da meia--noite, as frotas dos seus altos executivos eram postas à disposição dos funcionários do Terceiro Mundo.

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Trabalhando à noite nos fins de semana, eu tinha a segunda e a terça-feira livres. Gillian e eu aproveitávamos para vagar pelas ruas da cidade, transformando London Town no nosso playground, fazendo o que nos viesse à cabeça, curtindo nosso ócio em meio aos milhares de londrinos que trabalhavam.

Lembro de algumas passagens, visitas a galerias de arte, o five o’clock tea (sempre às quatro na Inglaterra) nas melhores casas, como Fortnum & Masons e Twinings, caminhadas pelos parques cobertos de neve. Gillian geralmente de collants de esqui, gola rulê de lã e casaco, eu também de gola rulê, uma calça de cavalry twill e um paletó de tweed — dali a pouco aprenderíamos a ser modernos, as roupas cada vez mais justas e coloridas, começava a grande revolução da vestimenta, a rejeição dos ternos com paletó jaquetão e colete e do chapéu coco, e um novo padrão de elegância comandado por 007, pelos Fab4 e por Carnaby Street.

Aqueles três primeiros meses de 1963 ficaram na minha memória como uma longa noite envolta numa atmosfera de sonho. Lembro de um sábado em que, nas horas mortas que antecediam a transmissão ao vivo, parti a pé da BBC para encontrar Gillian em sua casa, a alguns quarteirões de Bush House, na John Street— o marido, também John, havia saído com amigos. No meio do caminho, me deparei com a visão surreal de um ônibus capotado, um ônibus vermelho de dois andares tombado na neve como um estranho elefante, uma pintura de Dalí ou de Max Ernst — um acidente sem vítimas, sem motorista, sem passageiros. Não tinha bebido uma só gota, mas até hoje me pergunto se aquilo realmente aconteceu.

Daquele tempo todo com Gillian, não consigo lembrar sequer um diá- logo; falávamos o tempo todo, mas não sei o que — talvez o amor seja isso mesmo. Uma coisa é certa: não falávamos de política, embora fosse difícil se abstrair dos dilemas da época. A Guerra Fria chegara ao auge em outubro de 1962, na crise dos mísseis de Cuba, quando Kennedy e Kruschev quase apertaram o botão do apocalipse nuclear.

No ano seguinte, o sexo esquentou a Guerra Fria na Grã-Bretanha, com o Caso Profumo. Stephen Ward, médico famoso, com clientes na alta sociedade londrina, mantinha relações perigosas com os russos. Amigo do adido naval soviético Eugeni Ivanov, acreditava que, se ele e Ivanov não conseguissem promover a todo custo uma conferência de cúpula das grandes potências, “o fim do mundo poderia estar próximo”. Ward passou a agendar encontros entre personalidades políticas e call-girls de luxo e levou uma de suas pupilas, Christine Keeler, à cama do Ministro de Defesa britânico, John Profumo. Da cama de Profumo para a cama de Ivanov, Christine teria feito rolar altos segredos militares e políticos. Não imagino uma call-girl repassando projetos de mísseis balísticos secretos enquanto exerce o seu metiê, mas o envolvimento sexual do Ministro da Defesa chocou o país, ainda mais porque Profumo era um aristocrata casado com a famosa atriz Valerie Hobson. Christine Keeler virou um dos ícones do século com a famosa foto nua escanchada na cadeira de design dinamarquês.

Stephen Ward suicidou-se com uma overdose de Nembutal (outro dos caídos no “Ano da ânsia de morrer”). Na noite de 3 de agosto de 1963, um sábado, eu bebia num pub de Chelsea próximo ao hospital St. Stephen’s, onde Ward estava em coma. Lembro bem daquela noite por causa de uma quadrinha rabiscada na parede do banheiro do pub, que nunca mais esqueci: “L’ha detto Dante / lo confermó Petrarca /la fica di una donna/ ha la forma di una barca”. Só pelos jornais da segunda-feira, fiquei sabendo que Stephen Ward morrera enquanto eu bebia no pub de Chelsea. Quanto a Profumo, renunciou e o gabinete conservador acabaria caindo no ano seguinte. Depois da queda, o 5º Barão Profumo do Reino da Sardenha prestou serviços voluntários limpando latrinas numa instituição de caridade no East End, a zona mais pobre de Londres.

Outro assunto ganhou as manchetes naquele ano: o espetacular assalto ao trem postal, obra-prima de Ronald Biggs e sua gangue, um dos maiores roubos na história da Inglaterra. Poucos meses antes, eu vira num cinema do centro de Londres, com o curitibano Cesário Buffara, o filme brasileiro O assalto ao trem pagador. Posso quase jurar que vi na plateia alguém parecido com Ronnie Biggs. Pela eficiência do golpe, os ladrões ganharam status de celebridades, passando a competir com os próprios Beatles (Biggs, aliás, gravou com o grupo punk Sex Pistols).

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Floriano Parreira, Roberto Muggiati e Nemércio Nogueira no Serviço Brasileiro da BBC, em 1964. Arquivo pessoal

Para fechar o “Ano da ânsia de morrer” em escala global, John Kennedy foi assassinado em Dallas, em 22 de novembro de 1963. Recebi a notícia no fim da tarde daquela sexta-feira, por um telefonema do amigo curitibano Sanito Rocha, que estagiava num hospital de Londres. No mesmo dia, em Los Angeles, o escritor Aldous Huxley, com um câncer terminal, morria de uma overdose de LSD ministrada por sua mulher, num gesto de eutanásia.

O apocalipse foi adiado, sem data marcada. A Era Glacial de 1963 terminou em meados de março com ventanias e chuvas torrenciais, transformando a camada de neve que há três meses cobria Londres numa sopa lamacenta e escorregadia. Aos poucos, o sol voltava a brilhar, com raios pálidos. A última vez que vi Gillian foi numa tarde de abril no meu quarto de Collingham Gardens. Depois, fomos até a janela e vimos sobre a grama novamente verde dos jardins uma pequena mancha branca que lembrava a neve — um coelho, saído sei lá de onde. Gillian partiu para Hong Kong com o marido, que foi trabalhar numa firma de advocacia — não tenho a menor ideia do fim que levou, se é que levou algum fim. Mas sinto saudades intensas dela e da nossa Londres.

Até os primeiros flocos de neve daquele inverno, vivíamos ainda numa Inglaterra vitoriana. A partir daquela primavera, ingressávamos bruscamente no século XX, nos turbulentos anos 1960 que, em nenhum lugar do planeta, foram mais vibrantes do que na Swinging London. Viver naquele lugar e naquele momento era a felicidade suprema, que cristalizei numa espécie de epifania quando, ao editar uma fita num estúdio da BBC, meus olhos caíram sobre um roteiro de programação com o título em grego de uma canção dos Beatles, I Fl Fne / I Feel Fine. Como escreveu Ira Gershwin, a Era dos Milagres não havia passado e, de repente, na London Town coberta de fog, o sol voltou a brilhar por toda parte.

 

Roberto Mugiatii é jornalista e escritor. Trabalhou em veículos como a BBC de Londres, Gazeta do Povo e Senhor. Editou as revistas Manchete, Veja e Fatos e Fotos. É autor do livros Mao e a China, Improvisando soluções, Rock - O grito e o mito e A contorcionista mongol.

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