O teatro que abre caminhos 06/07/2018 - 14:40

Dafne Sampaio

Um perfil do múltiplo Ivam Cabral, cofundador da companhia Os Satyros, que neste ano ultrapassou a marca de 100 espetáculos produzidos

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   Fotos: Rafael Roncato

O Domingo de Páscoa parecia um domingo como outro qualquer para Ivam Cabral. O ator, diretor, dramaturgo, compositor, produtor e um dos fundadores do grupo teatral Os Satyros chega uma hora e meia antes de entrar em cena no Espaço dos Satyros Um, em São Paulo. O paranaense da pequenina Ribeirão Claro maquia-se, coloca as calças e sapatos de seu figurino de andarilho e, de peito nu, bate rapidamente o texto. Depois vem a camisa, a peruca e está pronto. É apenas mais uma apresentação na temporada da mais nova peça de sua lavra, e 101ª da companhia, O incrível mundo dos baldios

Não demora muito para um celular apitar aqui, outro vibrar acolá e uma preocupação palpável tomar conta do camarim a meia hora de começar a peça. “A Márcia está na altura de Jundiaí, e aqui está marcando uma hora para chegar”, diz uma das atrizes. Aos 55 de idade, Ivam sabe que para tudo tem um jeito, mas não esconde a surpresa. “Isso nunca me aconteceu em 29 anos de Satyros. Já cancelamos peças por motivo de doença, afinal, coisas acontecem. Mas nunca porque um ator ou atriz não apareceu”, confidencia, sem saber se o ônibus da atriz Márcia Dailyn quebrou vindo de Jales, se ela conseguiu ir até São José do Rio Preto e pegou carona de lá ou ainda se está vindo de táxi.

Por sorte, a atriz — que foi a primeira trans a se formar bailarina na Escola de Dança do Teatro Municipal de São Paulo — atua na última das cinco pequenas histórias de Baldios, portanto é possível começar a peça e torcer para que chegue a tempo. Ivam aproveita para dar uma espiada na entrada do teatro e volta visivelmente frustrado: “Gente, uma catástrofe. Tem seis pessoas”. O final de um feriado prolongado e o tempo chuvoso explica facilmente a baixa presença, mas desde que o espetáculo estreou, em março, todas as sessões andavam lotadas (com média de 70 pessoas por apresentação). “Hoje é, realmente, um dia de exceções”, suspira.

Hora de uma reunião de emergência e ao redor de Ivam reúnem-se o pessoal da técnica, os outros 12 atores e atrizes presentes e Rodolfo García Vázquez, diretor, dramaturgo e cofundador d’Os Satyros. “Sem a Márcia não tem essa cena final, e sem essa cena a peça não faz sentido”, diz Ivam, já pensando em cancelar tudo, enquanto Rodolfo sugere atrasar a peça em meia hora e explicar a situação para o público que já comprou ingresso. Se não quiserem esperar, o dinheiro será devolvido. A saída proposta por Rodolfo é aceita pelo grupo e ele mesmo vai até a entrada do teatro para fazer a proposta. Tudo certo. A plateia não só topa como diz que assim ganha mais tempo para beber outras cervejas, e que talvez uns amigos consigam chegar. Mais meia hora, então.

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“O que a gente buscava e busca até hoje é fazer do Satyros um espaço libertário. Por exemplo, questões de gênero, imigrantes e refugiados, representatividade, periferia, transexuais, tudo isso a gente trabalha no Satyros desde sempre”, afirma Ivam. E isso acontece desde que ele chegou a São Paulo, no início de 1989, e poucas semanas depois conheceu Rodolfo nos corredores da Escola de Comunicações e Artes, na USP. No 1º de abril daquele ano fundaram Os Satyros e no semestre seguinte estrearam a primeira peça do grupo.

Ivam trazia na bagagem uma infância repleta de literatura no seio familiar (cortesia da mãe, costureira e evangélica, que comprava romances e poesias de vendedoras ambulantes que passavam por Ribeirão Claro), uma adolescência com a descoberta da comunhão pública via música e teatro (cortesia da igreja que ficava a uma quadra da casa) e um início de vida adulta na corda bamba entre o pragmatismo (prestou Administração de Empresas e trabalhou no falecido Banestado) e o risco (trocou Administração por Artes Cênicas na PUCPR, em Curitiba).

“Não pensava em fazer teatro, especificamente. Sabia que talvez pudesse circular entre música, teatro e literatura, mas sem ser uma coisa ou outra. Mais tarde, quando cheguei a São Paulo, meu sonho — e tenho depoimentos da época para mostrar que não foi algo que falei depois — era ter um grupo de teatro que fosse importante, contribuísse, dialogasse com seu tempo e indicasse novos caminhos. Nunca pensei em TV, fama, Globo.”

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De 1989 até agora, uma centena de peças depois, Ivam Cabral e Os Satyros receberam mais de 40 prêmios, participaram de inúmeros festivais nacionais e internacionais, criaram um festival próprio (Satyrianas), produziram um filme (A filosofia na alcova) e encararam turnês por países como Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra, Portugal, França, Espanha, Cuba e Ucrânia (foram a primeira companhia ocidental a se apresentar no país após a queda do Muro de Berlim). Também levaram aos palcos textos de Alfred Jarry, Heiner Muller, Gil Vicente, Goethe, Shakespeare, August Strindberg, Oscar Wilde, Nelson Rodrigues, Vange Leonel e, acima de tudo, Marquês de Sade. Mas desde que fincaram bandeira, em 2000, na lendária e paulistaníssima Praça Roosevelt, o grupo vem montando cada vez mais textos próprios, como é o caso de O incrível mundo dos baldios.

“Somos uma espécie de Ogum, o cara que vai na frente, abrindo caminhos. Acho essa imagem do Ogum muito bonita. E acho que a função do artista é essa, né? Arte está aí para causar estranhamento, para fazer com que você não tenha certeza das coisas. Eu existo pra te confundir. Arte é isso.” Ivam olha o relógio e faltam 15 minutos para a peça começar, o que significa que é a hora da roda, aquele momento no qual toda trupe se energiza antes de entrar em cena.

Formam um círculo, dão-se as mãos e, antes de qualquer coisa, alguns recados são dados. Márcia ainda não chegou e pode ser que não consiga, prepararem-se portanto para algum improviso. Então uma música sai dos alto-falantes e parte do elenco começa a cantarolar baixinho, balançando o corpo de um lado para o outro. “Entra na minha casa / Entra na minha vida / Mexe com minha estrutura / Sara todas as feridas”, e cantam uma, duas vezes, cada vez mais alto, cada vez abrindo mais o sorriso. A música acaba e todos gritam “Merda!”.

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“Cada peça tem uma roda diferente. Por exemplo, essa música [‘Faz um milagre em mim’, pagode gospel de Regis Danese] aparece no final de ‘Baldios’, justamente na cena da Márcia. Ela é uma cantora que está prestes a fazer seu primeiro show com um cachê mais alto e erra o caminho, desce no ponto de ônibus numa quebrada e encontra um casal de irmãos adventistas. Tudo isso em um 31 de dezembro. Aí, de uma forma bem natural, começamos a cantar essa música na roda.”

Todas as histórias de ‘Baldios’, todos os encontros de personagens, acontecem em um 31 de dezembro. E não é por acaso. “No final do ano passado fui pra Ushuaia, no fim do mundo. Era um lugar que eu queria conhecer. Pensei: é um lugar que me vai dar paz. É um dos lugares mais bonitos do mundo e eu não suportei. Não aguentei ficar lá. Claro que tinha a ver com meu irmão, porque a gente viajava muito [um dos cinco irmãos de Ivam morreu em novembro do ano passado, de câncer]. Enfim, foi horrível. Passei o dia 31 tentando sair de lá — vou ficar pagando cartão de crédito o resto da vida —, mas consegui e às 11 da noite estava chegando a Buenos Aires. Passei a meia noite em um hotel qualquer. Aí bateu aquela coisa, o mundo não está nem aí pra mim. Quando você pensa que é o centro, que a sua dor é o centro, quem é você, cara?! O que significa essa dor perto de tudo isso, dessa imensidão? Você não é nada.”

Essas questões existenciais de Ivam, aliadas a uma permanente reflexão sobre espaços públicos, como a vizinha Praça Roosevelt, deram origem a Baldios. Afinal, como o próprio Ivam gosta de contar, a palavra “baldios” tem dois significados muito distintos: no Brasil é algo inútil, sem proveito, abandonado; já em Portugal são terrenos comunitários, espaços de convívio, encontro.

Quando Os Satyros chegaram à praça, em 2000, encontraram o abandono do poder público. E, antes mesmo de uma longa reforma mudar a cara do espaço, a trupe começou a acolher e dar trabalho a minorias que por ali vagavam, de ex-presidiários a adolescentes carentes da periferia, de travestis a traficantes. Esses encontros transformaram e enriqueceram a dramaturgia do grupo, enquanto os arredores da Roosevelt ganhavam novas cores, bares e companhias teatrais como os Parlapatões.

Todo esse renascimento da praça culminou na criação, em 2010, da SP Escola de Teatro. “É a maior escola de teatro da América Latina”, diz Ivam, sem esconder o orgulho de ser o responsável por reunir os colegas vizinhos em um projeto gratuito, bancado pelo Governo do Estado de São Paulo, que forma artistas em oito áreas (atuação, cenografia e figurino, direção, dramaturgia, humor, iluminação, sonoplastia e técnicas de palco). “A criação dessa escola é a prova de que nosso projeto de acolhimento deu certo, e que dá para sobreviver de teatro. Isso é possível aqui.”

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Dialética

Alguém avisa que Márcia já está na Marginal (Pinheiros ou Tietê, não sabem ao certo) e que, na verdade, está vindo de táxi do interior de São Paulo. Não tinha nada de ônibus quebrado. Ivam respira aliviado com a primeira notícia, ainda mais porque é chegada a hora de entrar em cena — o público pagante melhorou um pouquinho, de seis para 13.

“Todos somos responsáveis por abrir, fechar ou indicar caminhos. Na poesia eu digo que não temos saída, que fracassamos enquanto humanidade, porque é preciso ter incertezas para se construir juntos. Mas sou otimista para caramba, acredito muito no ser humano e nosso trabalho é um espelho disso também.” As cinco histórias/encontros de Baldios são, efetivamente, um espelho dessa dialética d’Os Satyros, às vezes melancólica e noutras bem-humorada.

Na costura humana de O incrível mundo dos baldios, Ivam e Rodolfo reúnem um palhaço idoso e uma voluntária com seus próprios fantasmas, dois amigos buscando enriquecer rapidamente na quebrada, uma refugiada síria e um adolescente perdido, uma advogada em busca de uma morte digna acompanhada por seu melhor amigo e uma médica e, por fim, uma cantora e um casal de irmãos adventistas. Nessa hora, Márcia, que interpreta a cantora, entra em cena gritando — “Tô chegando! Tô chegando!” — e toda a trupe ri, aliviada.

Ivam, que interpreta um andarilho que “busca atender as promessas de pessoas que esperam por milagres para suas vidas” e costura todas as histórias, não perde a deixa e, em cena, manda um recado para sua atriz/ personagem: “Ela vai ter que trabalhar muito para pagar os 1600 reais do taxista”. Gargalhada geral.

Tantos sustos depois, o Domingo de Páscoa de Ivam Cabral chega ao fim alimentado por aplausos de pé. “O que eu deixei de falar numa peça eu falo em outra. Esse processo de permanente construção que o teatro proporciona é o mais legal. Então vambora, porque no Satyros eu posso tudo.”

 

Dafne Sampaio é jornalista. Foi editor do site Som Livre Loja Virtual, da revista Monet, colunista do Yahoo e coordenador das redes sociais da Prefeitura de São Paulo (2014-2016). Também colaborou com as revistas Piauí, Trip, Brasileiros e Carta Capital, entre outras.

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