O sonho acordado das civilizações 23/01/2018 - 11:20

Uma discussão sobre a função, o poder e o “fator de risco” da literatura, a partir da obra do crítico Antonio Candido

João Almino

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        Ilustrações: Eloar Guazzelli


Os ensaios de Antonio Candido “A timidez do romance”, “A personagem do romance”, “Estímulos da criação literária” e “O direito à literatura”, entre outros, esclarecem a visão do autor sobre a função da literatura e, em particular, do romance, a relação da literatura com a política e seu papel na formação do ser humano.

Em Antonio Candido não encontramos uma teoria da literatura que se aplique a seus estudos críticos. Ele prefere desenvolver seu raciocínio a partir da análise interna das próprias obras dos autores estudados.

Seria possível dizer que foi um precursor dos estudos culturais. No entanto, estes às vezes se apropriam seletivamente de temas ou aspectos de romances para privilegiar narrativas frequentemente de ordem antropológica. Em alguns casos, tornam quase irrelevante sua leitura e misturam indistintamente bons trabalhos literários e textos de qualidade literária discutível. Candido, ao contrário, não valoriza textos de qualidade duvidosa para demonstrar hipóteses.

Creio que este método explica por que nunca simplificou suas análises literárias nem as subordinou a concepções pré-estabelecidas, embora como cidadão e como ativista político não tenha disfarçado suas inclinações ideológicas socialistas

 

Para nada em particular serve a literatura
Eis uma pergunta frequente: para que serve a literatura e, em particular, o romance? Assim começa Antonio Candido seu ensaio “Timidez do romance”, inserido como capítulo 6 de A educação pela noite e outros ensaios [1]: “A literatura é uma atividade sem sossego. Não só os homens práticos, mas os pensadores e moralistas questionam sem parar a sua validade, concluindo com frequência e pelos motivos mais variados que não se justifica: porque afasta de tarefas ‘sérias’, porque perturba a paz da alma, porque corrompe os costumes, porque cria maus hábitos de devaneio.”

Para nada serve a literatura em particular. No entanto sua leitura é necessária e não é sem consequência. Autores têm se debruçado ao longo de séculos sobre a questão de sua função. Têm proposto respostas que caberia analisar criticamente. Em “A timidez do romance”, Candido cita Arthur Jerrold Tieje, que em textos publicados entre 1912 e 1916, analisando a ficção entre 1579 e 1740, concluía que nos pronunciamentos dos romancistas havia cinco intuitos expressos, que podem também ser interpretados como justificativas para escrever: 1) divertir; 2) edificar (que significaria elevar a alma segundo as normas da religião e da moral dominantes); 3) instruir o leitor ou transmitir a verdade, sendo necessário, como ela é frequentemente desagradável, enfeitá-la ou disfarçá-la; 4) representar a vida quotidiana; e 5) despertar emoções de simpatia, sendo que os três primeiros propósitos seriam os mais frequentes. [2]

A análise de Antoine Compagnon, especialmente sua aula inaugural no Collège de France de 2006, depois publicada em livro, coincide em parte com a de Candido, quando destaca, entre as funções tradicionalmente apontadas para a literatura, as seguintes: a) a de divertir e instruir, que seria a definição clássica, já presente em Aristóteles; a literatura representaria o mundo, teria um poder moral e nos tornaria melhores, através de seus exemplos ficcionais; 2) a de servir de remédio ou veneno (pharmakon), uma função que teria aparecido no iluminismo; a literatura, como instrumento de justiça e de tolerância, e a leitura, como experiência de autonomia, contribuiriam para a liberdade e a responsabilidade do indivíduo; ao mesmo tempo que o liberta da religião, pode ela mesma substituir-se à religião, tornando-se um ópio; e 3) a de encontrar uma linguagem que lhe seja própria, buscando um sentido para as palavras que ultrapasse seus empregos comuns.

Certamente até hoje encontramos romances que não pretendem ser mais do que entretenimento, mas nenhum crítico sério os consideraria propriamente literatura. Já a capacidade de edificar e instruir o leitor (itens 2 e 3 da lista proposta por Candido) continua frequentemente servindo de critério para a avaliação de obras literárias.

 

Literatura como forma de conhecimento
Vejamos como Antonio Candido encara este último aspecto da literatura. No seu ensaio sobre “O direito à literatura”, ele afirma que, numa de suas faces, a literatura é uma forma de conhecimento. Assinala que ela tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação e acrescenta: “digamos que o conteúdo atuante graças à forma [veremos mais adiante quão fundamental é a forma] constitui com ela um par indissolúvel que redunda em certa modalidade de conhecimento. Este pode ser uma aquisição consciente de noções, emoções, sugestões, inculcamentos; mas na maior parte se processa nas camadas do subconsciente e do inconsciente, incorporando-se em profundidade como enriquecimento difícil de avaliar.” Existiria um tipo de conhecimento latente, proveniente da organização das emoções e da visão do mundo e também “níveis de conhecimento intencional, isto é, planejados pelo autor e conscientemente assimilados pelo receptor...” Neles o autor tem convicções, deseja exprimi-las e “injeta as suas intenções de propaganda, ideologia, crença, revolta, adesão, etc”. [4] Há um tipo de literatura que ajuda na tomada de partido, como na literatura social ou empenhada.

Em “A personagem do romance”, do livro A personagem de ficção, Candido vai também afirmar que uma das funções capitais da ficção “é a de nos dar um conhecimento mais completo, mais coerente do que o conhecimento decepcionante e fragmentário que temos dos seres. Mais ainda: de poder comunicar-nos este conhecimento, ... um tipo de conhecimento que... é muito mais coeso e completo (portanto mais satisfatório) do que o conhecimento fragmentário ou a falta de conhecimento real que nos atormenta nas relações com as pessoas.” [5]

Devemos, portanto, matizar o sentido do que seja o conhecimento transmitido pela literatura. Há romances que apresentam discussões morais e filosóficas ou que transmitem informações históricas ou de outra natureza, mas não devemos entender o conhecimento neste sentido estreito, de transmissão de saberes. Frequentemente a criação literária nasce das incertezas, da busca e da aventura. Muitas das grandes obras literárias não enfocam temas específicos. Ao contrário, tratam de algo tão amplo e complexo como a própria vida. Sobre o que será Em busca do tempo perdido de Marcel Proust? Claro, sobre a memória, alguém dirá. Mas dirá pouco diante da vastidão temática e de perspectivas daquele livro.

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A verdade ou realidade de um texto literário
A literatura pode esclarecer e trazer ao primeiro plano aquilo que estava recôndito e parecia obscuro. O termo grego Aletheia, numa de suas acepções significando “verdade”, é a negação de Lethe (esquecimento). Mas a verdade com a qual o escritor trabalha, a que ele traz à luz dos fundos da escuridão, a que estava relegada ao esquecimento e ele recupera pela memória, é a verdade da própria ficção. Diz Candido em a “Timidez do Romance”, que “o romance representa o desejo de efabulação, com sua própria verdade.”

Mais do que ser real ou verdadeira, no sentido de corresponder ao que de fato existe, a história narrada pelo escritor deve pertencer à realidade da própria ficção, na qual a verossimilhança é mais importante do que a realidade ou a verdade. E não cabe ao escritor apenas retratar ou representar a realidade. Concordo com um personagem de Borges no conto “O Milagre Secreto”, quando dizia que “a irrealidade é a condição da arte”, o que se aplica de maneira clara à ficção, mesmo quando ela procura ser realista e se preocupa com a verossimilhança. E. M. Forster fazia uma distinção entre o ficcionista e o historiador: enquanto o segundo registra, o primeiro deve criar e, embora nesse trabalho de criação possam e devam ser incluídas informações, opiniões, registros, documentos, isso não é o fundamental da obra de ficção. Ou seja, não é o que caracteriza esse trabalho como obra de ficção. Diz Antonio Candido em “Timidez do romance” que uma forma de escrever romances para negá-los, “como certos amantes só conseguem amar vilipendiando e maltratando a sua amada, de quem são todavia incapazes de se desprenderem”, é o de “contar casos verdadeiros, de um modo que parece ficcional, chegando, no limite, à reportagem”. [6]


A justificação da literatura por motivos externos
É ainda Candido quem nos diz no mesmo ensaio, que, para uma certa crítica e sobretudo até fins do século XVIII, “tomada em si mesma a fantasia não tem status...; é que o romance só pode ser justificado quando, por meio da ficção, puder funcionar como instrumento moral de educação do homem”. [7] Poderíamos acrescentar que esse ponto de vista continua presente em quem crê que os bons romances deveriam nos tornar melhores e, quando retratam nossos defeitos e mostram o lado mais sombrio do espírito humano, o fazem para curar-nos de nossos males. É certo que bons romances podem conter uma dimensão moral e de transmissão do conhecimento que aparece sobretudo através dos exemplos de vida que a ficção oferece.

Mas para reconhecer os direitos à fantasia não precisamos referi-la a uma finalidade outra. Como diz Candido em “Timidez do romance”, ela é “uma necessidade do espírito, que se legitima a si mesma” e devemos aceitar “a validade em si mesma da mimese e do livre jogo da fantasia criadora”. [8] Não é à verdade ou à realidade que a literatura deve almejar: ela deve ir além da verdade e da realidade, sob pena de perder sua dimensão de fantasia. Ela supera, pela fantasia, as formas mais diretas de aquisição e transmissão de conhecimento.

Se o objetivo do autor for o de demonstrar uma tese, exprimir uma mensagem ou uma opinião, transmitir determinado conhecimento, revelar uma verdade, denunciar uma injustiça, mais diretos, persuasivos e eficazes do que a ficção podem ser o ensaio, o manifesto, o artigo de jornal ou uma tese universitária. Quando a ficção é para seus autores um mero pretexto para objetivos dessa natureza, ela fica presa a seu momento presente — e a seu sistema ideológico. Perde seu interesse para a posteridade. Se for possível resumir o sentido de um romance em poucas palavras, as poucas palavras deveriam substituí-lo com proveito. Se o que importar na palavra escrita for estritamente seu conteúdo ou sua mensagem, o romance poderia ser substituído, com vantagem, por uma entrevista com o autor.

A propósito de certas alegorias, Candido afirma que “fazer sob a forma de romance um tratado moral..., político...ou educacional..., é mais ou menos o mesmo que usar um elefantinho de barro para cofre, um porquinho de louça para jarra d’água ou, para vaso de flores, as asas abertas dum cisne de porcelana”, ou seja, é desenvolver o kitsch na ficção. [9]

Podemos fazer a ressalva de que existem circunstâncias em que a linguagem mais direta do artigo de jornal encontra a barreira da censura, por exemplo nas ditaduras, nas quais inexiste liberdade de expressão e de opinião. A ficção nestes casos torna-se necessária como documento e veículo de informação, substituindo-se ao jornal. Foi o que aconteceu no Brasil nos anos da ditadura militar, quando parte da ficção serviu para denunciar as atrocidades do regime. É possível afirmar que, nestes casos, a censura acaba exercendo um papel de estímulo a determinado tipo de literatura.

Embora tais situações sejam compreensíveis, concordo com Candido que não devemos justificar a literatura por motivos externos. Ele afirma, em “Timidez do romance”, que “este ponto de vista do tipo Manequinho da Praia de Botafogo (‘sou útil mesmo brincando’) está, por exemplo, na base do realismo socialista, como foi ensinado nos anos do stalinismo”. [10]

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“Daí pode surgir um perigo”, diz ele em “O direito à literatura”: “afirmar que a literatura só alcança a verdadeira função quando é deste tipo. Para a Igreja Católica, durante muito tempo, a boa literatura era a que mostrava a verdade da sua doutrina... Para o regime soviético, a literatura autêntica era a que descrevia as lutas do povo, cantava a construção do socialismo ou celebrava a classe operária.” [11]

Esta forma de apreciação das obras literárias por motivos externos está também na base — acrescento — ainda de grande parte da crítica literária de nossos dias, sobretudo daquela que julga o valor de uma obra literária por seu alcance político e, pior, valida ou reprova uma obra segundo as posições adotadas por seus autores diante dos desafios do mundo contemporâneo.


As funções ideológica e social da literatura
Claro, os autores têm opiniões (políticas, religiosas ou de qualquer outra natureza). Podem transpô-las para a sua ficção. Os leitores e críticos, por sua vez, podem privilegiar determinados aspectos da obra em função de suas preferências, experiências, visões de mundo ou posições político-ideológicas. Há que reconhecer, portanto, como o próprio Antonio Candido, em seu ensaio “Estímulos da criação literária”, incluído em Literatura e Sociedade, que existe na literatura uma função ideológica. Nela desígnios conscientes do autor (que quer atingir determinado fim) e do leitor (que deseja que lhe seja mostrado determinado aspecto da realidade) formam uma das camadas de significado da obra. Essa função corresponde muitas vezes, ainda segundo Candido, a “uma ilusão do autor, desmentida pela estrutura objetiva do que escreveu.” Essa função ideológica se torna “mais clara nos casos de objetivo político, religioso ou filosófico. Esta função é importante para o destino da obra e para sua apreciação crítica, mas de modo algum [e este ponto deve ser salientado] é o âmago de seu significado”. [12]

Na verdade essa função ideológica é menos importante do que duas outras também mencionadas por Candido no mesmo ensaio, a função social e a mais importante delas, a função total, que tem a ver com a forma e expressão estética e que deixarei para comentar mais adiante. A primeira, ou seja, a função social, segundo Candido, “independe da vontade ou da consciência dos autores e consumidores de literatura.” [13] Ele ressalta, em “A personagem do romance”, que é “por vezes ilusória a declaração de um criador a respeito de sua própria criação. Ele pode pensar que copiou quando inventou; que exprimiu a si mesmo, quando se deformou; ou que se deformou, quando se confessou.” [14] Portanto, suas intenções sozinhas — podemos concluir — não são suficientes para produzir os resultados desejados. No romance não são as intenções explicitadas pelo autor através do narrador ou de seus personagens o que assegura a relevância, para além de debates conjunturais, da sua função social ou mesmo política. Há, entre outras questões, que observar que as fronteiras do político mudam com o tempo e o lugar. Questões de alta relevância numa época podem perder importância noutra. Questões prementes num lugar podem não ser em outro. Antonio Candido diz, em “Estímulos da criação literária”, que a função social de uma obra decorre, de sua “própria natureza”, “da sua inserção no universo de valores culturais e do seu caráter de expressão, coroada pela comunicação.” [15]


Literatura e política
O entrecruzamento entre política e literatura é evidente em muitas obras e em muitos autores. Zola talvez seja o exemplo mais patente da associação entre produção literária e militância política, ao defender o capitão Alfred Dreyfus e lançar seu panfleto “J’accuse”, inaugurando o que viria a ser a tradição engajada do intelectual moderno.

Mas não apenas pode ter um sentido político a literatura que exprime ideias políticas, como ocorreu no realismo socialista, mas também a que se recusa a fazê-lo. Nas artes plásticas o abstracionismo pôde ser considerado dissidente. A chamada “arte degenerada” era uma forma de resistência às imposições da estética nazista. A literatura, por sua vez, ainda quando apolítica, tem podido ser apropriada politicamente.

Embora ainda seja atual situar a política em campos contrários segundo os valores da liberdade e da igualdade, bem como ainda estejam vivas disputas nacionais e religiosas, as lutas políticas têm se estendido nas últimas décadas a questões específicas — ecológicas, étnicas e de gênero — que podem estar refletidas na literatura.

Além de analisar as interrelações nos próprios textos literários entre a literatura e a política, a crítica e a historiografia podem também explorar os aspectos político-biográficos dos autores. Hoje, aliás, o êxito dos autores enquanto figuras públicas é em grande medida um produto de sua performance e biografia. Mas estas — e as ações dos autores — não definem a qualidade de suas obras nem seu verdadeiro e duradouro alcance político.

Seria limitadora e questionável uma leitura que valorizasse Tolstoy por suas ideias ecologistas, pacifistas ou anárquicas ou pelo fato de ele ter-se tornado vegetariano, ou ainda que desse uma importância maior aos seus textos proféticos do que aos romances que os precederam. Seria um equívoco analisar a obra de José Saramago à luz de suas posições comunistas ou julgar a obra modernizadora de Céline à luz de seu apoio ao governo de Vichy ou de Pound por suas simpatias fascistas.

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O caso Balzac é particularmente interessante, pois suas opiniões e ideias reacionárias não impediram a apropriação de sua literatura pela esquerda, que soube valorizar o realismo de seus romances e a forma como retratou a sociedade de seu tempo. Lukács, por exemplo, endossou a estética realista de Balzac, tanto em seu ensaio Realism in the Balance, [16] de 1938, quanto em seu livro The Historical Novel [17]. Acreditava que a visão política reacionária de Balzac fornecia ingredientes críticos, progressistas e até mesmo revolucionários à sua obra em sua análise da burguesia nascente.

Mesmo no caso de autores que pretendem imprimir claramente um cunho político à sua obra, a eficácia ou alcance político pode ser maior em decorrência de uma descrição contundente dos fatos ou do confronto da realidade objetiva com a fabulação do que de uma mensagem dirigida pelo autor ou pelo narrador. Não é por acaso que a linguagem contida de Graciliano Ramos teve e ainda tem um impacto político maior do que a dos primeiros romances, engajados, de Jorge Amado.

Enfim, a grandeza ou pequenez dos autores, enquanto ficcionistas, não reside nas suas lutas políticas. Podemos admirá-los ou desprezá-los pelos seus feitos, mas não são esses feitos que tornam sua literatura melhor ou pior.


Inconformismo e submissão

Como regra geral, o bons escritores escrevem porque não disseram ainda tudo ou porque precisam desdizer-se; escrevem simplesmente porque não podem escapar à escrita; ou seja, por uma necessidade íntima, indefinível. Ou escrevem porque não suportam a realidade e querem refugiar-se na vida e no mundo imaginários. Entram no território da ficção quando todas as outras formas de linguagem são insuficientes para exprimir o que querem. Por isso sua ficção resiste às simplificações e comporta múltiplas interpretações que variam com o tempo. O escritor coleta ou suga informações, experiências e histórias das mais diferentes fontes. Depois trata de dar forma à desordem e ao caos, criando uma estrutura e uma arquitetura feitas de palavras.

Mas mesmo se sua literatura não precisa, como vimos, ser justificada por fatores externos e ainda que julguem escrever apenas pelo prazer ou pela necessidade de escrever, sem considerar a forma de apropriação de seu texto pelo leitor, sua literatura não deixará de ter relação com a vida, com a realidade, com o meio cultural e social, ou seja, não é inconsequente e não existe num vazio. A literatura, no fundo, trata de aspectos fundamentais da vida, permitindo a imersão na mente humana, e da relação do homem com o mundo a seu redor, colocando lado a lado os pequenos detalhes do cotidiano e as grandes ações, o amor e a morte, dizendo o indizível.

Sobretudo resiste a todas as positividades, ao conhecimento já adquirido e às formas conhecidas. Está sempre em busca de uma nova expressão, não necessariamente para explicar ou para descobrir os sentidos do mundo, mas para lançar novas interrogações, para criar emoção, dúvida e vertigem. Muito se tem falado sobre a morte do romance ou até mesmo da literatura em geral, assim como se temeu a morte da pintura quando surgiu a fotografia. Da mesma forma que a pintura se renovou e se enriqueceu com a reprodução mecânica da realidade, o romance, longe de morrer ou ser absorvido, por exemplo, pela imagem e em particular pelo cinema, é capaz de se renovar a partir das novas realidades sociais, comportamentais, políticas e de comunicação.

A literatura não apenas representa a realidade ou a experiência: é realidade e experiência. Não quer dizer, diz. Não só pode levar à ação, é ação.

A boa e verdadeira literatura não é conformista e por isso surpreende. Como afirmava Octavio Paz, é “subversiva por natureza.” [18]


Literatura como fator de humanização
Para Antonio Candido, em “O direito à literatura”, a literatura é, numa de suas faces, “uma forma de expressão”, manifestando “emoções e visões do mundo.” [19] É por isso, acrescento, que em grande parte da boa literatura, quando se trata de opiniões e pontos de vista dos personagens, os romances não são necessariamente coerentes. Em vez de exprimirem visões unívocas, unidimensionais, muitas vezes exprimem ambiguidade e perspectivas conflitantes. Põem lado a lado personagens radicalmente distintos ou exploram personagens em sua complexidade e em sua mistura de bem e de mal.

Tzvetan Todorov, em seu livro A literatura em perigo, [20] poderia concordar com essa apreensão da literatura como forma de expressão e de manifestação de emoções e visões do mundo, quando inclui entre as funções da literatura a de nos ajudar a viver e a compreender melhor o mundo. Ela nos tornaria mais próximos dos outros seres humanos. Poderia por isso nos estender a mão quando estamos deprimidos. Ao criticar o estruturalismo e correntes formalistas, Todorov advoga por uma leitura que aproxime o leitor da obra literária em si, resgate a substância e o significado dessa obra, sua reflexão sobre a condição humana, nos planos individual e coletivo, seu diálogo com a realidade, e não se limite a um discurso sobre o método, noções críticas ou a criação de teorias.

Talvez seja uma visão demasiado otimista, compartida por quem diz que a literatura necessariamente constroi um mundo melhor, não apenas ao criar a dimensão de fantasia, mas também ao definir conceitos, esclarecer sentidos, apontar caminhos ainda pouco visíveis para o desenvolvimento do ser humano, descobrir novas verdades e até mesmo transformar a realidade.

Mas nada disso é certo. Pode ser que ela tenha um poder demolidor tão grande quanto seu poder criador. Pode ser que em vez de apontar caminhos, seja desconcertante; em vez de despertar entusiasmo ou esperança, seja fonte de angústia. Às vezes interroga, mais do que afirma. Não apenas revela o que parecia invisível, mas pode também – acrescento – tornar complexo o que parecia simples e problematizar o que dava a impressão de obviedade. Poderá dar atenção, não ao conhecido e acabado, mas ao parcial, ao inacabado, ao arruinado, ao ausente, escondido ou silenciado.

O texto de ficção poderá fazer o leitor pensar, levantar novas questões e ao mesmo tempo provocar emoções: raiva, amor, compaixão. Não tem necessariamente qualidades morais. Não transmite sempre o bem. A esse respeito, no seu ensaio sobre “O direito à literatura”, Antonio Candido tomará o cuidado de dizer que a literatura exprime não apenas os valores que a sociedade preconiza mas também os que ela julga prejudiciais. Assim, “a literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; as que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante.”

Candido vai além, ao afirmar que “ela não é uma experiência inofensiva, mas uma aventura que pode causar problemas psíquicos e morais”, podendo o livro “ser fator de perturbação e mesmo de risco.” Bastaria lembrar, acrescento, a onda de suicídios na Europa que se seguiu à leitura de Werther de Goethe. Como dizia Guimarães Rosa, através de seu personagem Riobaldo de O Grande Sertão: Veredas, “viver é muito perigoso”, e, como Candido lembra, este fator de risco da literatura está presente na própria vida, da qual a literatura “é imagem e transfiguração”, a ponto de ter um papel formador da personalidade.

Por isso que o fundamental de seu aporte continua sendo o que Antonio Candido chama de “humanização”. Diz ele que a literatura “não corrompe nem edifica..., mas trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”. Poderíamos acrescentar: faz viver mais, pois prolonga nossas experiências e nos faz viver muitas vidas. Dito em outras palavras, “ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade.” [21]

Mas o que isso significa? A humanização, para Candido, é “o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.” [22]

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A forma ou a expressão estética
Em “Estímulos da criação literária”, Antonio Candido distinguia na literatura — eu dizia — três funções: função total, função social e função ideológica. Já comentamos as duas últimas. A primeira, a função total, que deriva da elaboração de um sistema simbólico e tem a ver com a forma e a expressão estética, é aquela que Candido considera a mais importante. Da leitura não apenas daquele ensaio, mas também de “A personagem do romance” e de “O direito à literatura”, podemos concluir que, para ele, o que faz de um texto “literatura” é sua forma.

No primeiro ensaio, “Estímulos da criação literária”, fica claro que a apreciação estética de uma obra, ou seja, o julgamento de sua qualidade, se dá sobretudo através da avaliação da função total, pois é nesta função que estão presentes “os elementos de intemporalidade e de universalidade que conferem grandeza a uma obra.” [23] Em “A personagem do romance” [24], Antonio Candido mostra que a construção estrutural e o critério estético de organização interna de um romance são os principais responsáveis por sua força e eficácia, por seu pleno funcionamento e, portanto, pelo funcionamento das personagens [25], que a própria verossimilhança depende da organização estética da obra e que, no plano crítico, “o aspecto mais importante para o estudo do romance é o que resulta da análise de sua composição, não da sua comparação com o mundo.” [26] Na mesma linha de pensamento, em “O direito à literatura”, afirma que, embora o efeito das produções literárias dependa da atuação simultânea de suas três faces ou aspectos -- construção de objetos autônomos como estrutura e significado, forma de expressão e forma de conhecimento –, o primeiro, “que corresponde à maneira pela qual a mensagem é construída”, é o aspecto crucial, pois define se uma comunicação é literária ou não. O próprio conteúdo “só atua por causa da forma,” que traz em si “uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que sugere.” [27]

Ainda em “O direito à literatura”, Candido criticava a definição da boa literatura ou da literatura autêntica pela Igreja Católica ou o regime soviético por se basear em critérios alheios ao plano estético, visto por ele como decisivo. “De fato,” diz ele, “sabemos que em literatura uma mensagem ética, política, religiosa ou mais geralmente social só tem eficiência quando for reduzida a estrutura literária, a forma ordenadora.” [28]

Através da forma, o crítico poderá inclusive descobrir nas obras literárias aquilo que a princípio não parecia evidente ou que não era destacado ou explicitado pelo autor. De Machado se dizia e ainda se diz que não era descritivo, o que não impediu que Roger Bastide nele descobrisse o paisagista; ou que não tomou partido claro nas disputas políticas de seu tempo — por exemplo não se engajou na luta anti-escravista — e que não se interessava pela história, o que não impediu que sua obra se prestasse a análises acuradas e críticas da sociedade brasileira do século XIX, como nos estudos já clássicos de Roberto Schwarz e John Gledson.
 

O direito ao sonho
À luz de tudo isso, deveria ou não haver um direito à literatura? Antonio Candido acha que sim.

Claude Lefort, grande pensador daquilo que chamou de revolução democrática, uma revolução radical e sem fim, sempre capaz de expandir as fronteiras do possível, dizia dos direitos humanos em clássico artigo originalmente publicado no número 3 da revista Libre, em fevereiro de 1980, que são uma criação permanente, respondendo a novas circunstâncias, necessidades e percepções. Numa democracia, ninguém pode aprisionar a liberdade nos sentidos já adquiridos, e os homens devem ter o direito de sair de si mesmos e se ligar uns aos outros através da palavra, da escrita e do pensamento.

Preocupado com a situação dos excluídos, Candido levou a ideia dos direitos humanos a campo novo. O direito à literatura se inscreve tanto naquela criação permanente quanto no âmbito dessa relação interpessoal através da palavra. Trata-se aqui da liberdade de criação, mas essa liberdade também se estende à leitura e, portanto, à fruição da literatura. Na melhor literatura, tanto para quem escreve como para quem lê, há uma dimensão de inconformismo, que resiste a todas as formas de opressão e tirania.

Para Antonio Candido, em seu ensaio sobre “O direito à literatura”, a relação da literatura com os direitos humanos pode ser vista de dois ângulos distintos. O primeiro — e para ele o mais importante — é o de que “a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza”. O segundo é o de que “a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual.”

Para Candido, naquele ensaio, “a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável.” A literatura e a arte em geral seriam bens “incompressíveis”, ou seja, que não podem ser negados a ninguém, por serem fundamentais para assegurar a integridade espiritual do homem, podendo ser colocados lado a lado do direito à crença, à opinião e ao lazer. Correspondem a necessidades universais e profundas dos seres humanos, “que não podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desorganização pessoal, ou pelo menos de frustração mutiladora.”

Poderia ser dito que esse direito pressupõe outros, em especial o direito à educação, porém não se partirmos do sentido amplo do termo “literatura” empregado no referido ensaio. De fato, literatura é ali referida como “todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático”, que abrangem desde o folclore, a lenda ou o chiste até as formas mais complexas da produção escrita. Naquele ensaio diz Candido que “não há povo e não há homem que possa viver sem ela [ou seja, sem a literatura nesse sentido amplo], isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação.” Para ele a literatura na nossa vigília desempenha um papel semelhante ao do sonho enquanto dormimos. A “criação ficcional ou poética,” afirma, “está presente em cada um de nós..., como anedota, causo, história em quadrinhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance.” Nesse sentido, a literatura seria “o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade.” [29]

O direito à literatura seria, portanto, uma espécie de direito ao sonho, e talvez possamos dizer que não há como privar alguém do direito à literatura naquele sentido amplo. Quando se proíbe um livro, quando há censura, as histórias correm de boca em boca. A literatura resiste e pode sobreviver na clandestinidade. Não exercer o direito à literatura, nesse sentido amplo, seria quase como cessar de imaginar. A esse sonho — “sonho acordado das civilizações” — não devemos e não podemos renunciar.

 

João Almino é escritor e diplomata. Publicou, entre outros, os romances As cinco estações do amor, O livro das emoções, Cidade livre, Enigmas da primavera e Entre facas, algodão (editora Record, 2017).

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Notas
1
Candido, Antonio, “Timidez do romance”. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo:
editora Ática, 1989, p. 82-99.
2 Tieje, Arthur Jerrold, The critical heritage of fiction in 1579. Englische studien, n. 47, p. 415-48, apud
Candido, Antonio, “Timidez do Romance”, in: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo:
editora Ática, 1989, p. 84.
3 Compagon, Antoine, La literature, pour quoi faire? Paris: Collège de France: Fayard, 2007.
4 Candido, Antonio, “O direito à literatura”. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 4ª. edição,
reorganizada pelo autor, 2004, p. 176, 179,180.
5 Candido, Antonio, “A personagem do romance”. In: Vários autores, A personagem de ficção. São
Paulo: Perspectiva, 2009, p. 64.
6 Candido, Antonio, “Timidez do romance”. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo:
editora Ática, 1989, p. 89.
7 Idem, ibidem, p. 97.
8 Idem, ibidem, p. 88 e 99.
9 Idem, ibidem, p. 89.
10 Candido, Antonio, “Timidez do romance”, op. cit., p. 82.
11 Candido, Antonio, “O direito à literatura”, op. cit., p. 181.
12 Candido, Antonio, “Estímulos da criação literária”. In: Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul, 2010, p. 56-57.
13 Idem, ibidem, p. 56.
14 Candido, Antonio, “A personagem do romance”, op. cit., p. 69.
15 Candido, Antonio, “Estímulos da criação literária”, op. cit., p. 56.
16 Lukács, Gyorgy, “Realism in the balance”. In: Lukács: Aesthetics and Politics, Verso, London, 1980,
28-59.
17 Lukács, Gyorgy, The historical novel. Tr. do alemão por Hannah e Stanley Mitchell. London: Merlin
Press,1962.
18 Paz, Octavio, Ideas y costumbres I, La Letra y el Cetro, op. cit., p. 21.
19 Candido, Antonio, “O direito à literatura”, op. cit., p. 176.
20 Todorov, Tzvetan, A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2009.
21 Candido, Antonio, “O direito à literatura”, op. cit., p. 175 e 176.
22 Idem, ibidem, p. 180.
23 Candido, Antonio, “Estímulos da criação literária”, op.cit., p. 55.
24 Candido, Antonio, “A personagem do romance”, op. cit., p. 51-80.
25 Idem, ibidem, p. 54, 55 e 77.
26 Idem, ibidem, p. 75.
27 Candido, Antonio, “O direito à literatura”, op. cit., p. 176, 177 e 178.
28 Idem, ibidem, p. 181.
29 Candido, Antonio, “O direito à literatura”, op. cit., p. 174, 175, 186 e 191.


Bibliografia
Candido, Antonio, “A personagem do romance”. In: Vários autores, A personagem de ficção.
São Paulo: Perspectiva, 2009.
Candido, Antonio, “Estímulos da criação literária”. In: Literatura e sociedade. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.
Candido, Antonio, “O direito à literatura”. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades,
4ª. edição, reorganizada pelo autor, 2004.
Candido, Antonio, “Timidez do romance”. In: A educação pela noite e outros ensaios. São
Paulo: editora Ática, 1989.
Compagon, Antoine, La literature, pour quoi faire? Paris: Collège de France: Fayard, 2007.
Lukács, Gyorgy, “Realism in the balance”. In: Lukács: Aesthetics and Politics, Verso,
London, 1980, 28-59.
Lukács, Gyorgy, The historical novel. Tr. do alemão por Hannah e Stanley Mitchell.
London: Merlin Press,1962.
Paz, Octavio, Ideas y costumbres I, La letra y el cetro. México: Fondo de Cultural Económica,
primera edición 1993, segunda reimpresión, 2003.
Todorov, Tzvetan, A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

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