Miguel Bakun: um doc. post mortem 06/07/2018 - 13:30

Incompreendido em seu tempo, o pintor paranaense foi um dos nomes mais originais da arte moderna brasileira — só falta contar para todo mundo

José Carlos Fernandes

Bakun
Obra de Miguel Bakun, pintura sem data e sem título. Provavelmente nascida da vista que tinha de ateliê que ocupou em prédio hoje demolido, na confluência da Tiradentes com a Praça Generoso Marques, ainda na década de 1930, em Curitiba. Fotos: Henry Milléo

O advogado Constantino Viaro, 80 anos, não passava de um guri quando presenciou uma cena que guarda na memória. Ele e seu pai, o artista italiano Guido Viaro, se encontraram ao acaso com o pintor paranaense Miguel Bakun. Eram amigos. Durante a conversa, Bakun fez a recomendação de sempre: “Essa criança tem de dormir muito e tomar bastante leite”. Logo percebeu no chão um carreiro de formigas. Seria algo banal, não fosse ele dar um rodopio, para não pisotear nenhum inseto. “Parecia ter visto ali algo de sobrenatural”, lembra Constantino.

Não foi a única estranheza. De outra feita, Guido levou Bakun ao litoral, para que produzissem ao ar livre, durante a invernada, a salvo dos mosquitos — prática comum entre pintores nas décadas de 1930 e 1940. Lá pelas tantas, Bakun, súbito, pede que o italiano cuide da maleta de tintas e das telas que carregava. Avisa que vai cruzar de braçada os 48 quilômetros da Baía de Guaratuba, pois não tinha dinheiro para pagar a barca. “Nado bem”, garantiu, antes de Guido elevar a voz alguns decibéis acima, para demovê-lo da loucura.

Passados 55 anos da morte de Miguel Bakun — em 14 de fevereiro de 1963, uma quinta-feira de verão —, não causa espanto a imagem do homem que cruza o mar a bordo de um terno cinza, cortado e cerzido por ele mesmo (após trocar o tecido por um quadro na loja Burro da Casemira, próxima ao Paço Municipal). Nesse espaço de tempo, acumularam-se sobre sua biografia camadas geológicas, de escalas tragicômicas. Algumas são lendárias. Outras, distorcidas pelo telefone sem fio da história. Como afirmam alguns estudiosos, a fantasia criou uma cortina de fumaça que esconde a obra de um dos nomes mais originais da arte moderna brasileira: a produção de Bakun encontra similaridades em Emílio Goeldi, Lasar Segall, Guignard e no próprio Volpi, para citar alguns “geniais” tão fora da curva quanto ele. Só falta contar para todo mundo.

 

O “polaco” do terno cinza

O primeiro ofício de Miguel Bakun foi a alfaiataria. Depois veio a Marinha. Seguiu-se a fotografia ambulante — em 1930. Por fim, a pintura. Em qualquer fase, não desprezava o uso de ternos, sempre maiores do que o número. A magreza fazia com que os colegas o comparassem a um cabide humano. A cabeça, de traços angulosos, parecia desproporcional ao corpo. Os olhos azuis eram espetaculares, mas fundos e tristes. Sua figura impressionava de tal modo que foi retratado por Curt Freyesleben, Poty Lazzarotto e Estanislau Traple, ainda que nenhuma dessas telas tenha superado “O homem sem rumo”, pintada por Guido Viaro, em 1940.

“Meu pai contava que Bakun estava chateado no dia em que posou. Dizia que na vida dele tudo era de segunda mão”, conta Constantino. Nem sempre. Em sua última individual, na Galeria Cocaco, no ano de 1971, Viaro deixou um bilhetinho no chassi de “O homem sem rumo”: “Não vender”. Ao lado de “A Polaca”, a obra figura entre seus melhores trabalhos, além de ser a melhor tradução do gênio atormentado de Miguel Bakun.

Quanto à voz de Bakun, não há consenso. A marchand Eugênia Petriu — que tinha sempre duas obras dele à venda, na Galeria Cocaco — diz que era grave ao extremo. “Eu achava lindo o jeito dele falar. Além de que tinha poucos gestos. Era contido.” Há quem destaque ser de um timbre estridente, com inflexões de imigrante que se expressou em ucraniano até os 12 anos. Todos concordam que falava pouco — “um tipo que não tinha assunto”, observa Constantino Viaro. “Era chorão. Muito tímido, mas educado. Ficava te olhando. Um apaixonado por arte, com muita dificuldade de se expressar.” Nos ambientes, gravitava como um satélite artificial, pouco à vontade, um estrangeiro. “Penso que progredia sem intenção de progredir. Pintava porque pintar fazia parte de sua natureza. Na casa dele havia sempre 20, 30 pinturas pelo chão”, ilustra outro contemporâneo, o advogado Eduardo Rocha Virmond, 87 anos.

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Eugênia Petriu, dona da Galeria Cocaco, frequentada por Miguel Bakun no final da década de 1950, início dos anos 1960. Em vida, poucos se interessavam pela obra dele — por mais que a galerista oferecesse. Depois da morte, Petriu passa a encaminhar os interessados à viúva, Teresa Veneri, que precisava comercializar as telas para se manter.

Não escondia as superstições — com o número 13, com palavras que lhe causavam incômodo, não raro vertidas em títulos de obras (repressão, fascinação e vertigens). Fiava-se em dogmas teológicos. Dizia-se conduzido por sinais divinos. Ostentava um indisfarçável complexo de pobreza, acompanhado de autocomiseração.

Há duas versões juramentadas sobre um dos mais famosos testemunhos de execração que teria sofrido das elites. Conta-se que uma dama da alta sociedade, diante das obras dele, preferiu comprar a moldura ao quadro que acompanhava. Quem foi essa figura? A uns Bakun teria dito que se tratava de dona Hermínia Lupion, primeira-dama do Estado; a outros a benfeitora Saza Lattes.

 

Bakun, o pintor

“O tempo gasto com esses episódios nos privou de enxergar a pintura que ele deixou”, constata a artista plástica curitibana Eliane Prolik — há 15 anos devotada a tirar Bakun da prisão do exotismo a que foi condenado. A tarefa é uma estiva: inclui desmontar o senso comum. Um exemplo desses mecanismos simplistas são as habituais comparações de Bakun a Van Gogh, a quem estaria unido no animismo e nos dramas pessoais. É fato que o paranaense filho de um ferroviário, natural de Marechal Mallet, sul do estado, admirava o pintor holandês; que se entusiasmou com as primeiras reproduções coloridas que lhe chegaram às mãos — uma benesse gráfica do pós-Segunda Guerra —, que se fartou dos amarelos e que até fez cópias de Van Gogh para estudo. Mas os paralelos cessam por aí.

A marca mais trabalhosa de diluir diz respeito ao desfecho trágico do pintor: Bakun se suicidou aos 53 anos, com o uso de uma corda, num minúsculo galpão de pás e enxadas que ficava no quintal da casa em que vivia com Teresa Veneri e três enteados, na Rua Paraguassu, 26, Juvevê. A narrativa cruza gerações e habita o imaginário local. “Ao receber a notícia, fechei as portas da Galeria Cocaco”, lembra Eugênia Petriu, então próxima de Bakun e uma incentivadora de sua obra — à revelia de não convencer colecionadores a comprá-lo. “Ninguém dizia ‘ah, que beleza’, diante de uma tela dele”, confidencia.

Não faltam ao episódio da morte hipóteses e factoides, mocinhos e bandidos. A única certeza é que nenhum desses elementos serviu para perceber a pintura superlativa de Miguel Bakun. O estopim da bomba, acredita-se, teria se dado em 19 de dezembro de 1962, na Biblioteca Pública, quando o pintor se sagrou um dos vencedores do 19º Salão Paranaense. Em vez de prêmio em dinheiro, ganha um estojo de tintas e pincéis (e não uma caixa de lápis de cor, como se propaga).

O presente — oferta da loja Arno Iwersen — parecia uma consolação reservada a um púbere, não a um sujeito onipresente no circuito. Entendeu-se ter sido entregue com a intenção de humilhar, para dar corpo a uma anedota sinistra que corria nos bastidores da classe artística. Como Bakun nunca frequentou uma escola de arte, e burlava regras de perspectiva e composição, havia quem dissesse que “não sabia pintar”. O estojo dado a um sujeito de simplicidade flagrante só podia ser maldade da raça.

Ao se matar, dois meses e meio depois, o artista nada mais fez do que responder à pilhéria que sofreu, passando um recibo para a “autofagia curitibana”, expressão repetida à exaustão pela crítica de arte Adalice Araújo. Dali em diante, a grita estava feita, sujeita a atualizações contínuas. “A associação entre a caixa e o suicídio foi instantânea. Virou maledicência. Coisa de gente ruim”, opina Eduardo Rocha Virmond. Constantino completa: “Ninguém imaginaria que ele fosse se suicidar. Mas depois, olhando bem, tinha uma tristeza profunda. Nunca o vi alegre. Achava-se menor. Chegava e pedia ao meu pai: ‘Viaro, posso dispor de 50 mil réis do amigo?’”.

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Constantino Viaro, dono do Museu Guido Viaro, em Curitiba, onde está a obra “O homem sem rumo”, de 1940. É o mais expressivo dos retratos de Bakun e nasceu da amizade entre os dois pintores, iniciada em 1930. Além da tela, em 1946 Viaro escreveu na revista Joaquim o texto “Bakun”, que causou grande impressão.

Eduardo Rocha Virmond dividia o júri do salão de 1962 com nomes de proa, como o mineiro Frederico Morais e o paulista Mário Pedrosa, além do também paulista Nelson Coelho e do paranaense Ennio Marques Ferreira. Ele repete a explicação dada diversas vezes em cinco décadas de acusações: para surpresa, a obra premiada de Bakun, uma paisagem, tinha sido vendida antes do salão, para Tyrso Silva Gomes, o que o impedia o autor de ganhar o prêmio aquisição. Antes de um achincalhe do júri impiedoso, o estojo tinha a intenção — desastrada, por certo — de demonstrar apreço. 

O advogado garante que Bakun agradeceu a deferência. E que como prova de que não tinha ressentimentos, amigos que eram desde os tempos do Café Belas Artes, pintou-lhe um retrato, nos dias que antecederam o suicídio. Guarda-o em casa, num lugar de destaque, ao lado de Paul Klee, Pancetti, Manabu Mabe, Morandi, Tomie Ohtake, Ianelli — entre outros.

 

Símbolo

Uma explicação possível para o caso “quem matou Bakun?” é que o artista se tornou uma espécie de mártir de todos os que em algum momento se sentiram injustiçados em Curitiba. Essa significação toda, contudo, ignorou que as tormentas do pintor extrapolavam o episódio do prêmio. Ele vinha de sucessivas crises de melancolia, tendo passado pelo consultório do psiquiatra Alô Guimarães — uma referência à época, ainda que seus métodos tenham se tornado alvo de críticas severas na década de 1970.

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Miguel Bakun jovem, em seu ateliê (sem data). Aposentado da Marinha, depois da queda de um mastro em sua perna, Bakun volta para Curitiba, em 1930. Trabalha como fotógrafo. Reza a tradição que o pintor Guido Viaro e o cineasta João Baptista Groff o incentivaram a abraçar a pintura.

Outro dos desvarios de Bakun era de cunho religioso — fato que ele não escondia nem do mecânico de sua velha Mercedes Benz. Eslavo até a última gota de sangue, tinha entrado na esfera das indagações da fé. Culpava-se por ter buscado o consolo do espiritismo. Debatia-se com as orientações de seu conselheiro espiritual, um padre do bairro Cabral. “Esse sacerdote foi má companhia para ele”, avisa Virmond. Não está sozinho. Uns tantos contemporâneos creditam o suicídio de Bakun a seus embates espirituais. Um indício estava na papelada de sua escrivaninha. “Tentava em vão escrever sobre o que sentia”, diz Virmond. Constantino reforça: “Ele me mostrou um papel. Tentava escrever, mas não desistia”.

Mesma trava sentia ao tentar definir arte. Não é de todo absurdo imaginar que a convivência com intelectuais tenha aguçado seu notável complexo de inferioridade. Por ironia, nos meses que antecederam sua morte, tinha uma proposta para expor no Rio de Janeiro, a convite de Farnese de Andrade, que se impressionou com o que viu, em visita a seu ateliê em Curitiba. Dado a acreditar em sinais divinos, fica o mistério sobre a leitura que Bakun fez desse xadrez do qual faziam parte muitas peças. O estojo de pintura era apenas uma delas.

 

Dogville

O empenho de Eliane Prolik tem compensado parte do tempo perdido com o Dogville da vida e morte de Bakun. No papel de pesquisadora, listou 500 das estimadas 800 obras que o pintor produziu, entre 1930 — quando se aposenta na Marinha e volta do Rio de Janeiro para Curitiba — e 1963. Montou-lhe duas exposições — uma em 2009, ano do centenário de nascimento do artista, na Casa Andrade Muricy; outra em 2010, no Museu Oscar Niemeyer. As curadorias foram acompanhadas do lançamento do livro Miguel Bakun — a natureza do destino. Um dos méritos da empreitada está em apresentar o pintor à crítica especializada. Ronaldo Brito e Rodrigo Naves escreveram sobre ele, assim como o historiador Artur Freitas. Em conjunto com Eliane, o trio afugenta o obscurantismo em torno do “Van Gogh paranaense”. “O problema de Bakun não foi de reconhecimento, mas de entendimento”, escreve Freitas, num texto inspirado e definitivo.

De acordo com contabilidade do próprio Freitas, entre 1947 e 1962 Bakun participou de nada menos do que 29 das 32 edições de salões locais. Era raro vender uma obra — com honrosa exceção das encomendas de seu mecenas, Oscar Martins Gomes. Mas a falta de compradores não era privilégio seu. Quadros de vários artistas mofavam nas vitrines da Rua XV. Guido Viaro, aliás, também não vendia. “Quando conseguia, era uma festa. Minha mãe guardava dinheiro para comprar uma casa e escondia atrás de um chassi”, diverte-se Constantino.

Quanto ao propalado bullying que o pintor sofria das elites, há controvérsias. “Tinha de tudo no grupo de artistas e intelectuais da época. Aquilo era uma verdadeira célula”, afirma o pintor Fernando Velloso, 87 anos, sobre uma comunidade que incluía um homem de fino trato, como o francês Paul Garfunkel; comunistas de carteirinha, feito o jornalista Walmor Marcellino; e pobres de marré desci, a exemplo de Antônio Arney, tão humilde e deslocado quanto Bakun.

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Miguel Bakun em Guaratuba (sem data). Relação com a natureza vai ser a marca do pintor, o que não faz dele um paisagista convencional.

Sim, havia quem não gostasse dele ou que praticasse com afinco o esporte de chateá-lo, por pura molecagem, como atesta o livro Bakun, do jornalista Newton Stadler de Souza, lançado em 1984 (mesmo ano do controvertido docudrama Autorretrato de Bakun, de Sylvio Back). A dezena de pessoas da época que ainda vive cita sem pudores o nome dos algozes — gente que não está mais aqui para se defender. Em alguma medida, todos acabaram responsabilizados pelo suicídio de Bakun.

Grosso modo, contudo, o artista era nome recorrente nos catálogos e fez parte, com todas as honras, de dois grupos sem os quais não se conta a história da arte no Paraná — a geração Café Belas Artes e a da Galeria Cocaco. A pequena Montparnasse, como Theodoro De Bona chegou a nominar Curitiba na primeira metade do século XX, recebia Miguel Bakun e outro pintor modesto como ele — Esmeraldo Blasi — na mesa de conversa do Café Belas Artes, que ficava na XV, ao lado da mítica loja de tecidos O Louvre. Ali tinha parte não só com intelectuais do quilate de Armando Ribeiro Pinto, mas com os médicos Milton Sabbag e Fernando Ribeiro, e com os soberbos jornalistas Samuel Guimarães da Costa, Barros Cassal e João Dedeus Freitas Neto.

De 1957 em diante, com a abertura da primeira galeria de arte moderna da cidade, a Cocaco, Bakun se torna figura frequente na esquina das ruas Ébano Pereira com Cândido Lopes, onde a intelectuália batia ponto duas vezes por dia. Havia conflitos. “Ele se retirava quando algumas figuras chegavam”, comenta Eduardo Rocha Virmond, então crítico de cultura nos jornais Gazeta do Povo e Diário do Paraná, no qual sua coluna Arte & Letra marcou época.

Virmond se refere às tiradas de sarro desferidas por aqueles que, acredita, “tinham inveja” de Bakun. Por ironia, teriam sido justo esses, após o suicídio do pintor, os primeiros a apontarem o dedo para os colegas.

A tese do ciúme faz algum sentido. Bakun não pertencia a nenhuma escola. Não seguia a academia de Alfredo Andersen, nem se assemelhava a Guido Viaro — que o classificou de “invulgar e antidecorativo”, autor de uma pintura sem oxigênio, sem bem-estar, sem sol, “como ele mesmo”. Tampouco se afinava com o frenesi em torno da arte abstrata, mote da Geração Cocaco. Mesmo assim, em 1948, tinha arrancado elogios de ninguém menos do que Sérgio Milliet, em visita a Curitiba. O crítico aponta todos os defeitos daquela pintura estranha, de massas de tinta e normas desobedecidas. Mas destaca que não lhe faltava entusiasmo, o que a tornava simpática em seus defeitos. Bakun era o homem que não estava lá — quem haveria de compreender?

 

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Leciona na Universidade Federal do Paraná e escreve crônicas semanais para o jornal Gazeta do Povo.

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