Joca Cruz 20/11/2018 - 15:30

Carol Bensimon

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Ilustrações: Aline Daka

Joca Cruz era o vizinho do apartamento de baixo. Tinha sumido por uns meses logo depois que se aposentou da Polícia Civil. Diziam que, numa noite, havia entrado na sua camionete caolha só com a roupa do corpo e dirigido pros lados de Mostardas. Parou num hotelzinho de beira de estrada, sentou com uma mulher na churrascaria do térreo e ficou mostrando pra ela fotos de maços de dinheiro, fuzis, tijolos de maconha embrulhados em plástico e papel pardo. Subiram juntos para o quarto depois. O menino que trabalhava lá, um tal de Mathias, se lembra claramente dos dois porque teve que acordar o patrão às duas da madrugada e pedir uma garrafa de uísque do seu acervo particular. Joca Cruz pagou bem. Na manhã seguinte, perto da Lagoa dos Patos, foi visto apertando a mão de um velho careca com enfisema. Tratava-se de Alberto Hoffmeister, ex-comandante do 25º Grupo de Artilharia de Campanha de Santiago e que, naquele momento, completamente falido, administrava uma pequena loja de pesca. Joca Cruz comprou a loja e passou a dormir na peça dos fundos.

Alguma coisa podia ter acontecido em Mostardas porque, quatro meses depois, Joca estava de volta ao Edifício Elizabeth. A camionete caolha, no entanto, havia desaparecido. O policial aposentado começou a passar as tardes na sacada do apartamento, de frente para a rua Benjamin Flores, uma ruazinha de um único quarteirão, nos fundos da ainda ativa fábrica da Brahma. Se se inclinasse no terraço, Rita, a vizinha de cima, podia ver o cinzeiro de Joca, seu copo de uísque, seu rádio de pilha.

Joca Cruz deixava o rádio ligado o tempo todo. As notícias esportivas pareciam mantê-lo indiferente — era gremista ou colorado, afinal? —, mas qualquer menção ao presidente Itamar Franco era seguida por sua risada incrédula e gutural.

Rita, uma única vez, viu o 38 no parapeito.

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Ângelo cuidava de um pequeno estacionamento na mesma Benjamin Flores, propriedade de Carlos Nader, que nunca aparecia. Diziam que Ângelo vivia num JK para baixo da Cristóvão Colombo, no meio das putas e travestis, mas ninguém sabia ao certo. Diziam também que nos sábados à noite manobrava os carros importados dos jogadores de futebol que iam visitar as garotas de programa do Vermelho 27. Sua relação com o submundo, no entanto, não impedia que os vizinhos honestos e de boa índole da rua lhe oferecessem pequenos serviços de pintura e hidráulica.

Umas duas vezes por semana, Ângelo destrancava a porta e abria todas as janelas de uma casa verde musgo cuja fachada exibia um cartaz de aluga-se há muito tempo. A casa ficava em frente ao Edifício Elizabeth e, assim como o estacionamento, pertencia a Carlos Nader. Sentado nos degraus da entrada, fumando cigarros que segurava com o polegar e o indicador, Ângelo passava umas horas ali, distraído com o movimento da rua, às vezes tirando o cabelo dos olhos, às vezes abrindo uma lata de cerveja.

Em uma tarde nublada de maio, Rita viu, lá embaixo, que Joca Cruz tinha se sentado na escada também. Parou para olhar, discreta, enquanto a panela de pressão chiava na cozinha. Joca mostrava umas fotografias a Ângelo e ria. Os dois riam. Uma chuva fina começou a cair. Joca e Ângelo entraram na casa.

Agora ficava fácil dizer, com a distância do tempo e com tudo que souberam depois, que aquilo havia acendido em Rita um sinal de alerta, nunca gostou dos dois juntos afinal, olhando as bundas das estudantes de treze anos do Colégio Bom Conselho ou acendendo um cigarro atrás do outro enquanto entravam e saíam da casa desocupada. Um pressentimento. Às vezes desapareciam pros lados da Farrapos, só voltavam no dia seguinte. Quando a privada entupiu, Rita não chamou Ângelo, preferindo ligar para uma daquelas empresas careiras que publicavam anúncios no verso do guia telefônico.

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Algumas semanas mais tarde, encontrou o tecladista do térreo. Gostava quando ele tocava “Whiter shade of pale” e a música subia pelo pátio dos fundos e entrava pela janela da cozinha. Naquele dia, o jovem tecladista, que tocava e cantava três vezes por semana na Churrascaria Mosqueteiro — ela já o tinha visto lá — apontou o queixo para a casa da frente e disse: “Parece que ontem os dois deram uma sova num cheirador de loló”. Rita trancou o portãozinho de ferro. “Tu ligou pra polícia?” O outro riu. “Polícia pra quê, se o problema já tava resolvido?”

Dez dias antes da abertura da Copa do Mundo, encontraram um corpo inchado sobre o junco da Lagoa dos Patos. Tratava-se do ex-coronel Alberto Hoffmeister. Seu barco a motor, Jóia do Sul, já havia aparecido na margem oeste da lagoa, milagrosamente com a vara de pesca ainda presa entre os bancos de madeira, apesar da tempestade que acometera a região e que havia sido provavelmente fatal para o velho Hoffmeister. Poucos, no entanto, se compadeceram. Corria à boca pequena que o militar reformado fizera parte da banda podre do Exército, que estava armando até os dentes os narcotraficantes do Paraguai. Por algum desentendimento interno, Hoffmeister fora expulso do grupo, escorraçado e roubado por oficiais de patente mais baixa. Tinha acabado pobre e sozinho em Mostardas. No momento da tempestade, pode ter tentado sair do barco a nado, havia dito o Dr. Tergolina, médico no Hospital São Luiz, enquanto tomava o tradicional martelinho no Bar do Alemão depois da troca de turno. “Mas aí, o enfisema! O coronel não era mais guri.”

Teve, apesar de tudo, o corpo trasladado para o pampa, onde o enterraram com a bandeira do Brasil sobre o caixão reluzente. A banda marcial de Santiago tocou o Hino Nacional à perfeição.

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No limite sul do município de Tapes, um agricultor chamado Roque encontrou uma camionete queimada. Antes de se aproximar, beijou o crucifixo que carregava no pescoço. Em volta do carro, os cacos de vidro brilhavam. Abriu a porta do motorista e viu que o incêndio não fora total: a estrutura dos bancos se mantinha, e a espuma exalava um cheiro químico forte. Além disso, uma fita cassete resistia no som. Pelo menos não havia um corpo. Roque beijou a cruz de novo e ejetou a fita. Estava escrito Nina Hagen em letra de forma. Colocou a fita no bolso e deixou a carcaça de metal para trás.

Em depoimento tomado no dia 17 de junho de 1994, durante o primeiro tempo morno de Alemanha x Bolívia, Rita Gomes de Azevedo disse ter entrado na casa número 41 da rua Benjamin Flores, desocupada há dois anos, porque seu apartamento havia sido arrombado durante a madrugada. “Alguém escalou a grade do edifício com certeza”, declarara entre soluços, “e depois se pendurou nos galhos do jacarandá e pulou na minha sacada. Os pedaços da fechadura tão lá, no tapete! Vocês não vão fazer perícia?”. O delegado se limitou a olhar para baixo, como se toda a precariedade da corporação não pudesse ser posta em palavras. “A senhora não ouviu nada?”, perguntou. “Tomo remédios para dormir.” Haviam levado um pouco de dinheiro e um talão de cheques.

O delegado ainda demorou a entender por que a mulher havia atravessado a rua usando apenas um chambre atoalhado azul, aberto a porta da casa desocupada sem bater ou tocar a campainha, e então mexido em coisas pessoais de terceiros, a saber, João Carlos Cruz, recentemente aposentado da Civil, e Ângelo Passos, zelador do imóvel. Relatou a depoente que estava nervosa, “um pouco descontrolada”, e que, encontrando a sala vazia, com apenas um balcão velho que remetia a uma recepção de qualquer coisa comercial mal cuidada, não viu problema em se aproximar do tal balcão e olhar o que havia sobre ele: um som portátil, uma dúzia de fitas cassete e algumas fotografias. “Uma coletânea de jazz, e uma fita dos Mutantes com certeza. O que tocava era Gal Costa, altíssimo.” Passou a olhar as fotos, aparentemente esquecendo o que tinha ido fazer na casa. Eram fotos de mesas que ostentam as apreensões da Polícia Civil. Sobre a mesa, tijolos de maconha, pistolas, fuzis. Em uma das fotografias, podia-se ver os policiais em linha, com Joca Cruz no centro usando um colete à prova de balas.

Segundo a depoente, ao ver aquelas imagens, ela se sentiu ainda mais motivada a discutir sobre o arrombamento com o vizinho Joca Cruz. “Tínhamos falado dele na última reunião de condomínio”, conta. “Diante dessa escalada de violência horrorosa, a maioria achou que ele podia ser consultado, ajudar o pessoal do edifício.” Então, levada por uma Gal Costa que cantava Se você pensa que vai fazer de mim o que faz com todo mundo que te ama, subiu as escadas até o segundo piso, igualmente branco e igualmente vazio, até encontrar Ângelo, que parecia suado, como se tivesse feito grande esforço físico. Ângelo não demonstrou surpresa ao vê-la, mas procurou fechar — segundo a depoente — uma porta que estava entreaberta, atrás da qual ela parecia estar ouvindo os gemidos de um homem, talvez de dois.

“Vai ficar tudo bem”, ele disse, e subitamente Rita quis sair de lá, foi o que contou aos prantos às amigas de colégio, que ainda se reuniam mensalmente na Churrascaria Santo Antônio. Sentiu um mal-estar e deu-se conta que estava de roupão, tão vulnerável em frente àquele homem. Então desceu as escadas sem nem mesmo se despedir de Ângelo, e no caminho chutou sem querer um frasco de plástico. “Loló!”, sentenciou a amiga mais vivida, com a empolgação típica de quem sai da rotina pelas tragédias dos outros.

O fato é que a descrição da cena corrobora com o depoimento posterior de Carlos Nader, proprietário do imóvel em questão e do estacionamento ao lado, que afirmou ter visto, ao menos em duas ocasiões, naquela mesma casa e com a presença de seu funcionário, Ângelo, e do vizinho da frente, Joca Cruz, “algo que parecia uma sessão de tortura”. Não procurou a polícia na época porque “ele era a polícia!”, declarou, já irritado por estar perdendo a estreia do Brasil na Copa. “Ladrões de galinha, cheiradores de loló, a escória. Quando o Estado falha, surgem os heróis”, sentenciou.

“Gostavam de enrabar travecos”, afirmou o depoente seguinte, que trabalhava como leão-de-chácara do Vermelho 27. O caso foi arquivado.

Em Mostardas, um grupo se reuniu no Bar do Alemão para ver a estreia do Brasil contra a Rússia. O bar estava todo decorado com flâmulas verde-amarelas de plástico. Uma menina novinha fritou dúzias de pastéis de carne. As garrafas de cerveja não paravam de aterissar nas mesas. Romário abriu o placar. No intervalo do jogo, O Dr. Tergolina contou que a polícia havia identificado o proprietário da camionete queimada de Tapes. “Um homem bom”, afirmou, repassando mentalmente o encontro que tivera com Joca Cruz. Raí fez um gol de pênalti. O futuro era promissor.

 

Carol Bensimon é escritora. Publicou os livros Pó na parede, Sinuca embaixo d’água, O clube dos jardineiros de fumaça, Todos nós adorávamos caubóis. Colaborou com veículos como O Estado de S. Paulo, O Globo, Zero Hora, Folha de S. Paulo, Superinteressante e Piauí.

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