Interferir, mexer, remixar 20/11/2018 - 15:40

O fim da indústria cultural como a conhecemos cria uma nova safra de artistas que renega marcas e nomes do passado para viver intensamente uma nova realidade com gosto de ficção

Alexandre Matias

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Ilustrações: Bárbara Scarambone

Em fevereiro deste ano, o comediante Jerry Seinfeld participou do programa de sua amiga Ellen DeGeneres, no canal norte-americano E!. No meio da conversa, a apresentadora comentou, animada: “Todas essas séries estão de volta. Roseanne vai voltar. Ouvi falar da volta de Murphy Brown, é verdade isso?”. O convidado ficou surpreso, e também pareceu se empolgar. “Murphy Brown? E Candice Bergen [atriz protagonista da série original]? Ela vai voltar? Acho que sei para onde você está indo com isso, mas vou deixá-la terminar”, disse.

Seinfeld é um dos grandes ícones da comédia norte-americana e um dos maiores popstars da virada do século. O seriado batizado com seu sobrenome atravessou todos os anos 1990 como um dos principais programas de humor na TV dos Estados Unidos, ganhando fama internacional em seus últimos anos, algo impensável por todo o século XX. Encerrou as atividades de seu programa em 1998, batendo recordes de audiência, e desde então vive tentando emplacar novidades longe do universo fictício que o imortalizou, sempre com sucesso mediano. Não que precise: o dinheiro que ganhou e continua ganhando com a veiculação da série original o torna um dos comediantes mais ricos dos EUA. Mas ele só volta a causar algum impacto midiático quando se reencontra com seus velhos companheiros de série — os atores Michael Richards (que vivia o desengonçado Kramer), Julia Louis-Dreyfus (a hilária Elaine) e Jason Alexander (o insuportável George).

DeGeneres, portanto, sabia do impacto que a declaração que estava prestes a extrair do humorista teria. “Bem... Você, Jerry, acha que existe a possibilidade de Seinfeld voltar?”. Ele respondeu sem gaguejar: “É possível”, disse antes de ser soterrado pelo ruído dos aplausos vindo do público presente no programa de entrevistas. “Eles gostaram da ideia”, disse, sem modéstia.

A reação, no entanto, não foi como se esperava. Algumas notícias ecoaram o programa, mas nenhum veículo publicou entrevistas com o resto do elenco, listas com os melhores momentos da série ou especulações sobre possíveis episódios. Nem o reencontro do elenco em uma nova temporada da série Curb your enthusiasm, produzida e estrelada pelo mesmo Larry David que ajudou a criar o Seinfled original e serviu de inspiração para o personagem de Jason Alexander, fez mais do que arrancar alguns suspiros nostálgicos isolados na paisagem do pop contemporâneo. Para um retorno que já foi comparado com a volta dos Beatles, a mera especulação sobre novos episódios de Seinfeld parece não ter interessado o público deste século.

Seinfeld não está só. Esta não é a única especulação sobre a volta, remake ou adaptação de um sucesso do passado que não encontra a reverberação que seus produtores imaginavam. Séries como Arrested development e Arquivo X já retornaram duas vezes apostando no reencontro com seu antigo público, mas a repercussão sobre a notícia de suas voltas foi maior que as voltas em si.

David Chase, criador de uma das séries mais festejadas de todos os tempos — The Sopranos, lançada na virada do século pela HBO —, também não ouviu os aplausos que gostaria ao anunciar, no início deste ano, a produção de um filme contando a história do pai de Tony Soprano, protagonista do programa. E a própria Roseanne Barr, citada por DeGeneres ao entrevistar Seinfeld, teve a volta de sua série cancelada (por causa de um tweet racista postado por ela, mas aí é outra conversa).

Repetição no "modo turbo"

Este não é um problema só da TV. O cinema para as massas já há anos patina sem originalidade, enfileirando blockbusters que são continuações, remakes ou adaptações de títulos que fizeram sucesso em outras épocas ou mídias — livros, quadrinhos, videogames, jogos de tabuleiro e até brinquedos de parques temáticos. O avassalador sucesso das marcas que a Disney comprou nos últimos anos — Marvel, Star Wars e Pixar —, além da produção de seus longas clássicos de animação como filmes com atores de carne e osso, só mascaram histórias de derrotas financeiras retumbantes. Estas vão de franquias inteiras sendo canceladas no meio (da adaptação dos filmes inspirados nos best sellers do sueco Stieg Larsson pelo diretor David Fincher às séries para jovens adultos inspiradas em franquias de sucesso do passado — como Northern lights, de Philip Pullman — e do presente — Divergente, de Veronica Roth) até universos inteiros engavetados depois do fracasso de um único filme (como o “universo monstro”, da Universal Studios, que planejava reviver o Lobisomem, Drácula e Frankenstein, mas foi abortado após a queda de A múmia, do ano passado, com Tom Cruise no elenco).

Cada filme de super-herói ou remake inusitado que ganha horas de exposição de mídia em seu lançamento esconde o fracasso de dezenas de filmes com muitos investidores e vários grandes nomes envolvidos, vários deles mais próximos do cinema de arte do que de Hollywood. Basta observar como foram o desempenho dos últimos filmes de Woody Allen, Pedro Almodóvar ou Quentin Tarantino. Ou, do outro lado, do primeiro filme próprio do personagem Han Solo, de Guerra nas estrelas, que lançou a carreira de Harrison Ford. Mesmo a continuação de Blade runner, outro clássico ressuscitado estrelado por Ford, não foi o furor midiático que teria sido em outras épocas.

O mesmo acontece na música, quando artistas de todas as épocas voltam do túmulo (em alguns casos na forma de hologramas 3D) para tentar uma segunda ou terceira vinda enquanto discos clássicos são transformados em parques temáticos ao vivo para fãs de todas as idades e bandas minúsculas se atropelam em dezenas de linhas de atrações em festivais espalhados pelo planeta que parecem ter exatamente a mesma escalação.

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A repetição, antes fórmula mágica da música pop, está ligada no modo turbo e ninguém mais aguenta tanta informação. O artista abre diferentes frentes de contato com o público em busca de cada centímetro de audiência: vista a camiseta, dê um joinha no vídeo do YouTube e assine o canal, compre o vinil, compartilhe o meme, use a hashtag, veja o clipe em 360 graus, compre o cassete, assine a playlist, veja o lyric video, assista aos stories, jogue o game, dê like no post do Facebook, compre o merchandising na banquinha na saída do show. Tudo acontece ao mesmo tempo: artistas soterrados uns sobre os outros brigando por atenção e também colaborando uns com os outros para aumentar os números — digitais e offline. Se em outras épocas bastava um clipe engraçadinho, um penteado inusitado ou uma música grudenta para chamar a atenção de uma infante internet, hoje a Beyoncé precisa alugar o Louvre para usar de cenário num vídeo — que será esquecido na semana seguinte.

Muitos culpam os millenials — os nascidos no século XXI parecem ser culpados por tudo. Mas estamos overdosados de informações independentemente de nossas faixas etárias: veteranos do início do século passado, os baby boomers, nascidos nos anos 1960 e 70, os filhos da era digital e os próprios millenials estão fartos de tanta busca por atenção. Estão igualmente entediados com tanto deslumbre. Bored to death, como disse o título de (mais) um seriado. “Talvez a razão pela qual estamos tão sem inspiração é que já é tarde e nosso corpos estão cansados”, cantava Luke Jenner, vocalista da banda nova-iorquina Rapture, em sua faixa “W.A.Y.U.H.”, de 2006. “E acho que todo mundo aqui concorda que uma festa não é boa só porque a bebida é de graça”, completava.

Isso não acontece apenas pelo excesso de exposição a que as pessoas vêm sendo submetidas, mas principalmente por uma drástica mudança de comportamento que aconteceu na virada do milênio, a partir da popularização da internet. A cultura digital mudou completamente as relações culturais que se estabeleceram no século XX.

Foram atualizadas as condições de uso do termo cultura. Criado para designar uma série de práticas e hábitos sociais que determinam padrões determinantes para qualquer coletividade humana (conhecimento, moral, crença, arte, leis e costumes), o termo “cultura” atravessou a industrialização em massa imposta pelo século XX transformando-se em uma engrenagem mecânica para vender produtos de consumo. Assim, à medida em que o século XX foi passando — e o conceito de “indústria cultural”, definido pelos teóricos alemães da Escola de Frankfurt Theodor Adorno e Max Horkheimer, foi se galvanizando — a cultura parou de ser entendida como o conjunto de particularidades nascidas a partir da vida em sociedade para se tornar uma espécie de eufemismo para as artes em geral, agora transformadas em itens de consumo.

Foi quando surgiram novidades que soam como aberrações artísticas deformadas pelo capitalismo do século passado, como “produção cultural”, “bens culturais” e a ideia de “consumo de cultura”, transformando todos os agentes culturais — em tese, qualquer pessoa — em consumidores que usufruem passivamente o que o mercado traz. Desta forma, os artistas se tornaram uma elite à parte da população em geral, que parou de produzir cultura pois não tinha as ferramentas e os equipamentos para espalhar esta produção. O artista comum, que simplesmente vivia a cultura, passou a ser visto como amador ou hobbyista — paliativos para deixar claro que não eram artistas profissionais e não poderiam produzir cultura a sério.

Abriu-se uma divisão entre público e artista, mediada pelo mercado e pela crítica, que acabou transformando o artista em algo maior do que a vida. Em vez de uma pessoa comum, ele se tornou algo extraordinário, fora de série. Essa separação foi amplificada principalmente através de adjetivos quantitativos, e a qualidade artística tornou-se um capricho descartável comparado à capacidade de comunicação em massa destes ídolos. Qualquer um poderia ser um artista, desde que passasse pelos crivos e critérios estabelecidos pela indústria cultural.

Mas acontece que, a partir da última década do século, uma mudança na forma de comunicação começou a mexer no próprio conceito de cultura. A internet, criada nos anos 1960 pelas forças armadas norte-americanas para proteger segredos de estado, ganha uma nova interface graças a uma linguagem desenvolvida pelo cientista inglês Tim Berners-Lee. Disposto a criar um padrão para apresentações científicas do instituto CERN, onde trabalhava, Lee criou a world wide web, uma nova forma de acessar conteúdos online mais intuitiva, mais visual e menos técnica que as antigas linguagens usadas naquela rede. A web poderia ser acessada através de programas recém-inventados, os browsers (navegadores), e apresentava o conceito de hyperlink, que permitia pular de uma página para a outra apenas clicando uma palavra sublinhada na tela.

Esta nova forma de interagir com a rede fez com que ela se popularizasse de forma vertiginosa nos anos 1990, atingindo um público imensamente maior do que todos que já haviam acessado a internet em seus primeiros 30 anos de vida. Este novo público descobria lentamente uma das principais vantagens da rede: ninguém precisava de um intermediário. Era uma forma mais fácil de entrar em contato com pessoas que não estavam nas listas telefônicas ou até em outros países. Este contato foi ficando mais forte e presente, até tornar-se instantâneo, acompanhando outra grande novidade: qualquer um poderia escrever o que quisesse e ter uma audiência espalhada por todo o planeta.

Estas duas novidades superpostas foram a fundação do que hoje chamamos de cultura digital. A inter-relação entre pessoas de todo o mundo, espalhadas de forma horizontal, proporcionou audiências inéditas para indivíduos que, até o casamento da web com o computador portátil, eram meros espectadores da história. Qualquer um teria chance de fazer sucesso da noite para o dia, sendo genial ou simplesmente pop. O próprio conceito de sucesso (antes quantificado) agora poderia simplesmente ser percebido a partir da disseminação de novas reputações e marcas em um mercado dominado pelos jovens — mas que pouco a pouco atingiu as crianças, os adultos e os idosos.

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Produtor e consumidor

Em vez de ser consumida ou usufruída, a cultura do século XXI é vivida intensamente. O antigo consumidor transforma-se em produtor de conteúdo, concretizando a profecia de Marshall McLuhan. que antecipava, em seu livro Take today: The executive as dropout (1972), um mundo em que artista e público se mesclariam em uma nova figura — o prosumer (producer + consumer), termo criado por outro visionário, Alvin Toffler, em seu livro A terceira onda (1980).

A cultura digital se intensificou na primeira década do século, primeiro com a chegada da conexão de banda larga, depois com a popularização dos laptops e finalmente chegando aos computadores de bolso que são os smartphones de hoje em dia. Em pouco mais de dez anos, grande parte da população do planeta mudou completamente seus hábitos a partir da internet e do telefone celular — e, com isso, todas as relações sociais mudaram a cultura do planeta. Famílias, colegas de trabalho, vizinhos, amigos, chefes, funcionários e conhecidos se misturaram nas redes sociais e nas agendas de contato. As pessoas se aproximaram mais, conheceram outras com interesses específicos em comum, ganharam voz a partir destes encontros. As mudanças no trabalho, nas artes, na política e nas relações sociais são decorrentes deste avanço tecnológico, que desafia à própria sobrevivência de nossa sociedade como a conhecemos.

Basicamente porque esta nova realidade digital nos permite interagir uns com os outros. O Facebook e seus algoritmos surgiram como uma nova forma de conter este avanço e rehierarquizar verticalmente a conversa que vinha se tornando horizontal no diálogo com o avanço das ferramentas digitais. E mesmo que a rede social de Mark Zuckerberg crie bolhas artificiais de pensamentos únicos e paralelos entre si (que nunca se superpõem), ela não pode conter o fim da passividade que estes mesmos recursos fizeram com as pessoas. Mais do que simplesmente utilizar as redes sociais para comunicar sobre o que fazem, as pessoas estão se entregando literalmente de corpo e alma a uma nova forma de produção cultural e de exercício da cultura, uma vez que têm a consciência da criação de suas próprias identidades frente ao público.

Como os artistas do passado, qualquer um pode escolher a melhor foto para lhe representar nas redes sociais ou a persona que prefere assumir em determinados momentos de sua vida, em diferentes ambientes digitais. Não apenas nas redes sociais, mas também em aplicativos de encontros, fóruns de interesse comum, áreas de comentários de vídeos, jogos online ou qualquer outro lugar em que se possa criar uma versão sua que possa interagir com os outros. A presença online dos indivíduos é cada vez mais consciente — até quando escolhemos pagar com dinheiro ou cartão.

Esta nova realidade mescla-se com outra fusão — a de ficção e realidade —, transformando a autoficção praticada nas redes sociais, nos reality shows, na cultura das celebridades e no jornalismo pós-verdade em um dos principais gêneros artísticos deste início de século. Não são filmes, livros, discos ou games — e, sim, pessoas. Pessoas que se reinventam como experts de todo tipo de assunto, beldades perfeitas, intelectuais orgânicos, atletas renascidos, leitores vorazes, fãs enlouquecidos, hipsters de plantão, endinheirados ostensivos e por onde mais a sua imaginação for.

Esta é a nova cultura do século XXI: uma cultura participativa e vivida, e não apenas produtos encaixotados em prateleiras de uma megastore. Personagens de si mesmos, os novos artistas querem interagir chamando outros para colaborar, conversar, criar junto ou mesmo mostrar que se conhecem (a era do selfie-knowlegde).

A velha indústria cultural, ainda querendo devorar novos consumidores que não agem mais passivamente, saca marcas e obras do passado na esperança que causem rebuliço e furor entre as multidões só pela simples menção de seus nomes. Mas os novos atores da cultura digital não querem só nomes ou marcas — querem interferir, mexer, conectar, remixar e fazer parte do novo. Esse embate ainda causará mais frustrações em gente que tinha certezas sobre a importância das riquezas que guardavam em suas mangas, ao mesmo tempo em que reinventa o conceito de cultura longe de discos, livros, quadrinhos, filmes ou videogames — uma ideia que começa a sair da internet para ganhar as ruas.

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Alexandre Matias é jornalista e criador do site Trabalho Sujo. Foi diretor da revista Galileu e editor do caderno Link (O Estado de S. Paulo), do site Trama Virtual e da Conrad Editora.

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