Fahrenheit 451 não precisa de gasolina 10/01/2019 - 00:10
Por que a censura em nome das boas intenções pode produzir um efeito nefasto para a cultura e a intelectualidade
Jones Rossi
É fácil identificar o inimigo quando ele queima livros em praça pública. Em 1933, ficou claro quem eram os vilões quando os nazistas fizeram uma imensa fogueira em Berlim com obras de Kafka, Freud, Marx e Einstein. Antes tivessem parado por aí. Mas como vaticinou o poeta judeu Heinrich Heine: “Onde se lançam livros às chamas, acaba-se por queimar também os homens”.
Vinte anos depois, Ray Bradbury publicou Fahrenheit 451, que se passa em um futuro distópico no qual todos os livros foram proibidos. Nesta sociedade, a função dos bombeiros não é apagar incêndios, e sim iniciá-los com os volumes clandestinos encontrados nas casas de quem ainda teima em contrariar o regime.
Até aqui, está evidente que todo regime que queime obras literárias é intrinsecamente maligno. E ninguém com o mínimo de bom senso gostaria de ficar ao lado deles. Mas e se eu disser que já estamos jogando livros e mais livros na fogueira, de um modo muito mais insidioso, e tudo isso em nome do bom senso, do bem de todos?
LIVROS QUE VOCÊ NÃO DEVE LER
Quando a revista americana Esquire publicou uma lista de “80 livros que todo homem deveria ler”, com o subtítulo “Uma lista incompleta, sem ranking e altamente parcial das grandes obras da literatura mundial”, talvez não imaginasse a controvérsia que ela geraria. Embora listas sejam sempre objeto de debates acalorados entre fãs, estudiosos ou simplesmente palpiteiros, a discussão iniciada foi de outra natureza: moral.
A escritora Rebbeca Solnit, conhecida por criar o termo mansplaining (que em português já se tentou traduzir com uma só palavra — homexplicando — , mas, como pode se notar, não caiu nas graças do povão), escreveu um artigo replicando a lista da Esquire sob o título “80 livros que nenhuma mulher deveria ler”. No texto, Solnit critica a lista por vários motivos, e explica que ela, apesar do título do texto, acredita que as mulheres devem ler o que quiserem. Mas deixou claro que as pessoas deveriam substituir a leitura de Saul Bellow, John Updike, Norman Mailer e Philip Roth, “misóginos”, por Philip Levine, Subcomandante Marcos (líder do Exército Zapatista de Libertação Nacional do México), Eduardo Galeano e Barry Lopez.
A Esquire chegou a publicar uma espécie de retratação. Com o título “80 livros que toda PESSOA deveria ler”, a revista convocou uma série de mulheres influentes na literatura para opinar, como a premiada ex-chefe da seção de crítica literária do New York Times, Michiko Kakutani, e a escritora Lauren Groff, entre outras.
Para Sarah Churchwell, em um artigo no jornal inglês Guardian, a coisa mais importante a ser dita sobre Moby Dick, de Herman Melville, é que mulheres aparecem em apenas duas das 600 páginas. No texto, além de Updike e Mailer, são igualmente criticados os escritores Jonathan Franzen e J.M. Coetzee por praticarem o gaslighting (outra palavra de difícil tradução, usada para indicar quando um homem tenta fazer uma mulher passar por louca) contra as feministas.
Ambas são análises válidas à luz da evolução da sociedade. Ninguém deseja um retorno a uma época em que as mulheres não tinham voz. O que não faz sentido é desprezar Updike e Mailer como apenas “pênis com um bom vocabulário” porque seus livros, escritos há meio século ou mais, não rezam a cartilha politicamente correta dos anos 2010.
LOBATO REVISADO
Desde 2010, a obra de Monteiro Lobato tem passado por um revisionismo histórico. Gerações que passaram a infância lendo as aventuras de Pedrinho, Narizinho, Tia Nastácia, Visconde de Sabugosa e Emília descobriram agora, à luz de novas leituras, que foram alfabetizados com uma obra racista. Professores da UERJ descobriram que, em Reinações de Narizinho, o escritor se refere à Tia Nastácia como “a negra” 56 vezes.
Em artigo na Carta Capital, comentando o caso, Mauricio Dias rejeita vetar o livro. “Os pais têm o direito de comprar as obras do autor e, com elas, presentear os filhos. Pelo aniversário ou por qualquer outra razão”, diz, mas faz uma ressalva sutil. “O poder público não pode propagar a visão racista de Monteiro Lobato.”
No livro O choque das raças, Lobato faz afirmações que não deixam dúvida de que era racista e defendia inclusive a eugenia. Se a proibição se faz necessária, aí é outra história.
O Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) quis banir o livro Caçadas de Pedrinho das escolas. A iniciativa foi rechaçada por João Luís Ceccantini, pesquisador de literatura infantojuvenil e coautor de Monteiro Lobato — Livro a livro. “Tenho estudado a forma pela qual as crianças absorvem o que leem e minha conclusão é que elas sabem identificar os excessos dos livros, elas se apegam ao que é bom, à essência da história — e, no caso de Lobato, essa essência não é racista.”
O clássico Huckleberry Finn, de Mark Twain, o primeiro grande escritor americano, também foi acusado de ser racista pelo linguajar usado — o terno nigger, de conotação altamente ofensiva, é repetido mais de 200 vezes ao longo da obra. Em 2011, depois de várias reclamações, foi criada uma edição da obra em que o termo é substituído pela palavra “escravo”.
Quando o repertório literário, em nome da virtude, é reduzido, o resultado não é bom. O professor Mark Lilla, da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, em seu livro O progressista de hoje e o de amanhã, recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras, mostra como essa obsessão com políticas identitárias está empobrecendo o ambiente universitário.
“Os colégios e faculdades supostamente desinteressantes e convencionais dos anos 1950 e começo dos anos 1960 incubaram, talvez, a mais radical geração de cidadãos americanos surgida no país desde a sua fundação”, diz Lilla. “As universidades dos nossos dias cultivam alunos tão obcecados com sua identidade pessoal, que eles têm bem menos interesse e envolvimento no que acontece lá fora. Nem Martin Luther King Jr. (que estudou teologia cristã), nem Angela Davis (que estudou filosofia oriental) receberam uma educação baseada em identidade. E é difícil imaginá-los se tornando o que se tornaram se tivessem tido o azar de receber uma.”
NOVAS FORMAS DE CENSURA
Updike e Mailer eram misóginos? Com a mesma certeza que é possível afirmar que Lobato era racista. Seus livros devem sofrer alterações para se adequar ao que a sociedade acha correto hoje em dia, ou mesmo serem banidos? É aqui que começa a se alicerçar as bases para um novo tipo de censura, uma censura “do bem”. Se a sociedade optar por algo menos drástico, como fez a editora que reescreveu Huckleberry Finn, quando será prudente parar, quando ficará evidente a linha que separa a censura das boas intenções?
Pode ser que em alguns anos ou em algumas décadas não seja mais de bom tom livros em que animais são mortos de forma violenta. Se, por algum motivo, toda a humanidade decidir pelo veganismo, será de bom tom vasculhar os livros em busca de refeições carnívoras e reescrever tudo para que nenhuma sensibilidade seja afetada?
Embora possa parecer um exagero, existem situações atuais que tratam quase da mesma coisa. A Associação Americana de Cinema (Motion Picture Association of America, MPAA) enfrenta desde 2016 um processo contra a representação do cigarro nos filmes. Os motivos que pedem a proibição são ótimos: estudos já provaram uma correlação entre o hábito de fumar na adolescência com o cigarro nas telas. O exemplo das estrelas de cinema fumando ultrapassa os modelos familiares, afirmam os pesquisadores. Retirar qualquer tipo de menção aos cigarros dos filmes poderia salvar 18% das 5,6 milhões de vidas que serão perdidas por causa de doenças relacionadas ao hábito.
É difícil não concordar. Esses 18% representam 1 milhão de vidas. Fumar é ruim para a saúde, não há dúvidas. Não tão ruim, mas ainda assim ruim, é ficar sentado durante várias horas ao dia. Fique mais de seis horas e veja seu risco de morrer nos próximos 15 anos aumentar em 40%. Especialistas, pelo bem da sociedade, poderiam criar uma lista com todos os hábitos que de forma alguma poderiam ser representados nas telas. Começariam com os infames cigarros, passariam para as comidas gordurosas, então álcool, açúcar, e assim por diante numa sucessão quase infinita de riscos à saúde.
Melhor ainda, com o apoio da sociedade.
Fahrenheit 451, de Bradbury, se torna então mais assustadora, pois não é uma distopia em que o totalitarismo foi imposto de forma brutal aos cidadãos. Tudo acontece de forma mais traiçoeira, a partir do senso comum, de uma moral estabelecida a partir das maiorias, contra as inquietações trazidas pelos livros, que por natureza são questionadores, perturbadores.
É justamente essa nova moral, construída pelo bem da sociedade, que está entrando em vigor. Poucos hoje têm a audácia de sugerir proibições e banimentos de obras porque a História está cheia de exemplos de como somente os piores regimes colocaram em prática este tipo de ação. Mas, ao dar uma roupagem progressista à proibição, as chances de sucesso tendem a aumentar conforme elas ganham um status de proteção às crianças, adolescentes e posteriormente são estendidas a toda a população.
Uma característica interessante desse novo tipo de censura que está surgindo é que ela não é proposta por brucutus armados, pessoas mal-intencionadas por natureza. É o contrário. São pessoas instruídas, que buscam o bem. Mas é justamente essa incessante busca por mostrar o tempo todo quem tem sentimentos mais elevados, sem fazer qualquer tipo de concessão, que pode produzir resultados nefastos. Quem tem convicção de ser altamente virtuoso não costuma fazer concessões contra o que imagina ser o mal.
Nelson Rodrigues costumava dizer que “há coisas que o sujeito não confessa ao padre, ao psicanalista, e nem ao médium, depois de morto”. Livros não precisam ser depósitos de justiça social para terem valor. Como o mesmo Nelson, que sofreu tantas vezes com tentativas de censura motivadas pela mais elevada moral então vigente, afirmou: “Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos”.
Jones Rossi é jornalista, com passagens por veículos como Veja, Jornal da Tarde, UOL e Galileu. Atualmente é editor na Gazeta do Povo. Escreveu, com Leonardo Mendes Júnior, o Guia politicamente incorreto do futebol.