Do traço, o plano e o espaço 20/11/2018 - 15:40

Nos 20 anos da morte de Poty Lazzarotto, um resgate da trajetória do gravurista, muralista e ilustrador de obras de grandes autores brasileiros, como Guimarães Rosa e Dalton Trevisan

Fernando Bini

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Todo bom escritor é antes um grande leitor, isto também vale para o ilustrador. Poty contava que tudo começou numa banheira, a banheira de Seu Isaac, “que nunca viu água dentro, em compensação transbordava de livros e revistas”. Aos 3 anos, descobriu este universo e se apaixonou por imagens e cenas de histó- rias em quadrinhos — e delas passou para o cinema. Seu primeiro trabalho foi transportando latas de filmes para um cinema de bairro (levava os rolos do Cine Palácio para a Sociedade Morgenau) e, assim, tinha o direito de assistir aos títulos mudos, que as crianças sonorizavam com seus ruídos.

Napoleon Potyguara Lazzarotto, o Poty, nasceu em Curitiba no dia 29 de março de 1924 — mesma data de aniversário da cidade que nunca saiu de sua memória. Seu pai foi guarda-freios da Estrada de Ferro, mas Seu Isaac e Dona Júlia marcaram época em Curitiba quando abriram um restaurante chamado O Vagão do Armistício, no Bairro do Capanema (referência à assinatura da rendição da França em um vagão-restaurante na cidade de Compiègne, no final da Primeira Grande Guerra em 1918 ; neste mesmo vagão foi assinado o segundo armistício de Compiègne, em 1940, quando o país foi ocupado pelas tropas nazistas).

Os livros, o cinema e os quadrinhos começaram muito cedo a preencher a cabeça do garoto: dos textos lidos e das imagens vistas vem a vontade da ilustração. Poty desenha desde pequeno e aos 14 anos começa a publicar no jornal Diário da Tarde, de Curitiba, a história em quadrinhos “Haroldo — O Homem Relâmpago”.

“Primeiro, eu comecei a devastar as revistas Eu Sei Tudo dele (o pai), pintando bigode e pernas onde tinha uma simples fotografia de um rosto. E, naturalmente, ele se irritou e passou a me comprar cadernos para desenho baratinhos. Eu tenho alguns até hoje. E assim fui me desenvolvendo. Aos 5 anos, eu já lia correntemente. Eu queria saber o que diziam aquelas figuras.” (Entrevista para José Wille, fevereiro de 1998)

No Vagão do Armistício, Poty conheceu o interventor Manoel Ribas, que lhe concedeu uma bolsa para estudar pintura na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro — mas nunca foi pintor, a cor não lhe interessava, então à noite aprendia gravura com Carlos Oswald no Liceu de Artes e Ofícios. No Rio, faz o seu primeiro trabalho de ilustração com a capa do livro Lenda da herva mate sapecada, de Hermínio da Cunha Cesar, e atuou como ilustrador de contos e crônicas na Folha Carioca.

Como gravurista, uniu-se aos intelectuais paranaenses e foi ilustrador do jornal Joaquim, de Dalton Trevisan, participando de todos os seus números entre 1946 e 1948, seja como artista ou correspondente em Paris.

Do Rio foi para Paris (1946/47), também com bolsa, mas agora do governo francês, e continuou sua aprendizagem da gravura, principalmente a litogravura, e conheceu o expressionismo da Escola de Paris.

De volta ao Brasil, em 1948, começou a divulgar a gravura criando cursos em São Paulo, Salvador e Curitiba. Com Flávio Motta, em São Paulo, criou a Escola Livre de Artes Plásticas, onde era professor de desenho e gravura. Mas também continuou com as ilustrações, como ele mesmo contou: “Conheci o Augusto Rodrigues, que era caricaturista no jornal que Samuel Wainer dirigia, e Valdemar Cavalcanti era o editor do suplemento literário dos domingos. Acabei ilustrando para uns três, quatro suplementos literários no Rio”.

Reforçou sua brasilidade no Xingu, com Orlando Villas-Boas e Noel Nutels. Produziu muitos desenhos sobre os hábitos e costumes dos índios, e seu traço começou a se tornar mais sintético — é o que encontraremos posteriormente nas ilustrações que fez para o livro Maíra, de Darcy Ribeiro. Poty então se tornou um verdadeiro embaixador da arte brasileira pelas inúmeras ilustrações de livros, tanto na literatura nacional quanto internacional.

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Desenho com o tema de Grande sertão: veredas (1990)
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Ilustração para Sagarana (1958)

Por ele mesmo

Ninguém explicou Poty melhor que o próprio Poty: “Me interessou o mural, como a gravura, pela oportunidade de alcançar bastante gente” (citado por Valêncio Xavier Niculitcheff).

Apesar de ter seguido o curso de pintura da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, Poty jamais se considerou um pintor. Para ele, valeram as aulas de desenho da figura humana, que solidificaram o seu pró- prio traço, dando-lhe a segurança da transformação da figura. A pintura é uma arte intimista e individual; é o pintor e sua própria tela, no espa- ço solitário do atelier. Já a gravura, do ponto de vista técnico, dá origem às criações coletivas, exige a participação de outros na produção da obra; e, pela sua qualidade de reprodução, lhe dá maior atuação no meio social.

Para se tornar coletiva, a pintura tem que ser mural, como nos ensinaram os artistas medievais. E esta é outra opção de Poty: os painéis em azulejos, madeira ou concreto. São obras que exigem parcerias na sua realização técnica e estão à disposição de uma audência mais vasta pela sua tendência de arte pública.

Poty se interessou primeiro pela gravura, no Rio de Janeiro ou em Paris; conheceu a obra gráfica de Goeldi, Rembrandt, Goya, Daumier, Fuseli e Käthe Kolwitz; buscou para ela a solução pictórica do hieratismo das figuras de Paolo Uccello. Sua pesquisa científica e a lição sobre a submissão da realidade às leis da ótica (da perspectiva, especialmente) lhe possibilitaram a produção de formas fantásticas e imaginativas. “Só mais tarde me fixei nos expressionistas”, diz, provavelmente pelo contato com a chamada Escola de Paris.

No expressionismo, as estruturas da obra não decorrem da informação visual direta, mas principalmente do artista: “O objeto é posto em silêncio em favor do sujeito” (Frederick Karl). E é isto que Poty traz no seu retorno ao Brasil: o sentimento trágico da vida, da miséria humana, que ele vai representar com muita poesia nos personagens que escolhe.

Poty é principalmente um desenhista, é um mestre da linha, do vigor do traço sintético e altamente expressivo, ao mesmo tempo que se utiliza de uma linguagem clara — “Eu não me dou bem com a cor”, dizia. Pela problemática da cor é que ele opta pela gravura, e com a influência do expressionismo retoma a importância da intensidade dramática do claro e escuro: “Eu me interessava muito mais pela gravura, por causa do preto e branco”.

Fez xilogravura, ponta-seca, água-forte, água-tinta, litografia. Tornou a gravura conhecida no Brasil, fundando cursos de arte especializados em gravura e ensinando sua técnica em várias cidades do Brasil; despertou o interesse dos artistas brasileiros para a litografia. Foi seu Curso de Gravura em Curitiba, nos anos 1950, que deu origem ao forte movimento gravurista que há até hoje nesta cidade: o Clube da Gravura, o Centro de Gravura e agora a Casa da Gravura do Solar do Barão.

Além da gravura e do mural, a terceira opção de Poty também é social, pois a ilustração é uma forma de leitura do texto que tem a função principal de adaptar o que foi escrito ao leitor, aumentando seu público.

A vocação do “múltiplo”, intrínseca na gravura, como uma possibilidade de democratização da arte, o conduz às ilustrações. Poty foi grande ilustrador porque foi grande leitor, como foi dito. Na ilustração ele acentua o valor verbal da origem da representação gráfica e, por esta razão, as imagens que cria são profundas, carregadas de significados que vêm de sua memó- ria, e não simplesmente da representação de acontecimentos da atualidade.

Na ilustração somos atraídos pelas “vinhetas”, figuras em silhuetas que normalmente repudiam o enquadramento e que Poty transforma numa imagem de sonho. Elas se tornam inseparáveis dos títulos: são as “lágrimas falantes do romantismo”, para usar a expressão do crítico Adolphe Jullien. As melhores vinhetas de Poty foram as que desenhou para Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas e Sagarana.

Em Sagarana (prêmio na Bienal Internacional de São Paulo de 1969), as vinhetas abrem e fecham os capítulos. A primeira é uma “esfinge sobre o tempo”: “decifra-me ou te devoro!”. Emblemas provocantes como imagens de sonhos flutuantes e que se prestam às projeções do imaginário. Rosa assim se expressou na dedicatória do livro: “Poty e Célia, meus amigos — esta nossa ‘Potyrana’ de afeto e arte!”.

Ele exigia, por exemplo, que a imagem de um sapo fosse colocada dentro de um círculo, em cima de um poste telegráfico. Eu nunca entendi isso, mas fiz. […] Sagarana é um livro com coisas que estão dentro de um círculo. Ele editou e nunca me explicou o porquê da coisa — por exemplo, uma esfinge com três ursos pretos atrás. (Entrevista para José Wille, fevereiro de 1998)

Em 1956, para a primeira edição de Grande sertão: veredas, o terceiro livro de Guimarães Rosa, Poty faz “os misteriosos desenhos” encomendados para a capa do livro e, na segunda edição, de 1958, desenha para as orelhas os mapas do Grande Sertão. Rosa gostava da palavra “encantamento”, e foi o que aconteceu entre os dois: ficaram encantados. Durante uma conversa de oito horas, um narrando e outro desenhando, surgiram os mapas cheios de hieróglifos, que recriam um sertão imaginado tanto por Rosa quanto por Poty, elementos que integram os sentidos mais sutis e secretos do texto e lhe sugerem infinitas leituras. Para ambos o “mundo é mágico”, e tanto o texto quanto a imagem são narrativas sobre a incerteza e a indeterminação. “Graças a Deus, tudo é mistério”, e é o próprio Guimarães Rosa que descreve o resultado como “milagres” num “festival Poty”.

Se na narrativa de Rosa há uma genealogia medieval, também encontrada na literatura de tradição oral nordestina, esta narrativa se encaminha em direção a um barroquismo, sem deixar de fazer incursões no claro-escuro da influência clássica. Assim são os signos-hieróglifos de Poty, que partem também de modelos xilogravados, como as capas dos pequenos livretos de cordel, acentuando o valor do claro-escuro para atingir a profusão de elementos próprios do barroco. A ilustração se torna, assim, uma forma de paratexto, pois abre a possibilidade de outras leituras, como afirmou Antonio Cândido, ainda em 1956:

“Na extraordinária obra-prima Grande sertão: veredas há de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício; mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental do autor: a absoluta confiança na liberdade de inventar.” (Antonio Candido. “O homem dos avessos”. In Tese e antí- tese. 3ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 121).

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Ilustração para o conto "Sete anos de pastor", de Dalton Trevisan (1948)

Qualquer texto literário, jornalístico ou anúncio de propaganda poderia ser pretexto para Poty desenhar. Mas várias vezes ele utilizou a narrativa oral como tema de seus trabalhos plásticos, com traços agudos e significativos e sua tradicional economia cromática.

Quando viveu no Rio de Janeiro, foi frequentador da livraria José Olympio e ilustrou, para ela e para a editora Civilização Brasileira, Machado de Assis, Temístocles Linhares, Dalton Trevisan, Darcy Ribeiro, Euclides da Cunha, Gilberto Freire, o já citado Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Mário Palmério, Edgard A. Poe, Herman Melville, Jack London, Anton Tchekhov e Franz Kafka, entre outros.

Sua linguagem narrativa “verbal-visual” tira da palavra aquilo que ela não pode ou não quer dizer. E a parceria entre dois criadores, o escritor e o artista, os conduzem de novo a uma reflexão solitária, mas que exige comprometimento mútuo.

Quando a Livraria José Olympio reabriu, em 1964, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, tinha nas paredes da sua “cantina” três talhas de Poty representando a cidade de Batatais (SP), terra natal de José Olympio.

Se a pintura é ato particular, íntimo, Poty quer transformá-la em teatral, em espetáculo para o olhar de todos; a pintura de cavalete é negada pela sua cor e por sua incapacidade social. Temos então Poty muralista executando painéis monumentais em madeira, azulejos, cimento ou ainda os vitrais.

Novamente abundam os temas do cotidiano, e nos murais de Curitiba, especialmente, o cotidiano da cidade se mistura com o da história do homem e da humanidade. Junto com o caráter social da arte mural, retornam os elementos da pintura e da escultura nas discussões plásticas entre forma e cor. Mas é principalmente o conteúdo que lhe interessa: o indivíduo que circula nas ruas se identifica com as imagens, não como sendo um índice abstrato, mas como uma realidade concreta. Os signos esquemáticos, simplificados, próximo às garatujas, lembram, seja na sua forma ou no seu conteúdo, o que nós, na nossa imaginação, também desejaríamos representar.

Imagens de ficção e realidade, mas também que envolveram a vida do artista. Poty, o homem simples se comunica com o homem simples; mas, ao mesmo tempo intelectual, sabe as maneiras de trabalhar a linguagem persuasiva que agrada a todos. Uma observação importante: sua obra não é linear, nem na temática, nem na técnica, tudo pode ocorrer em paralelo, pode ser esquecido e depois retomado. Só uma coisa foi importante, a vontade do artista.

Darcy Ribeiro, que também desfrutou da amizade de Poty, assim se expressou: “Como é que este filho de italianos, nascido e criado nesta Curitiba tão cheia de imigrantes, pôde fazer-se, na arte, a mais alta expressão do povo e da cultura brasileira? Não sei. Sei apenas que se o Paraná não produzir daqui para adiante nenhum artista mais, só com Poty estará à frente de todas as outras províncias brasileiras (Gazeta do Povo, 29 de março de 1996)”.

Poty morreu em Curitiba em 8 de maio de 1998 e, neste ano de 2018, ainda sentimos os 20 anos de sua ausência.

 

Fernando Bini é crítico e de arte e professor de História da Arte e Estética da PUCPR.

Bibliografia

CÂNDIDO, Antônio. “O homem dos avessos”, (In) Tese e antítese. 3ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 121.

DASILVA, Orlando. Poty, o artista gráfico, Curitiba: Fundação Cultural Curitiba, 1980.

GRAVURA Brasileira: arte brasileira do século XX, São Paulo: Itaú Cultural: Cosac & Naify, 2000.

NICULITCHEFF, Valêncio Xavier. Poty: trilhos e traços. Curitiba: Prefeitura Municipal de Curitiba, 1994.

O TRAÇO indelével de Poty. Gazeta do Povo. Curitiba, 15 mar. 1994.

WILLE, José. “Uma conversa com Poty Lazzarotto”, Entrevista, 1998, Paraná Portal, 5 de fevereiro de 2017.

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