Do silêncio armado 10/01/2019 - 10:40

Com sua dicção única e estilo febril, o romance Madona dos páramos (1982), do mato-grossensse Ricardo Guilherme Dicke (1936-2008), merece ser resgatado o quanto antes do ostracismo

André de Leones

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Ilustrações: FP Rodrigues

À memória de Aldair da Silveira Aires

1.
Na obra caudalosa do mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke (1936- 2008), o diabo não está “na rua, no meio do redemoinho”, mas surdamente exposto, nu e às vistas de todos, tomando os nossos olhos para si. Madona dos páramos [1], romance maior do autor, é um épico da incompletude, o recorte de uma viagem cujos inícios, quando muito, apenas entrevemos — “Os inícios das coisas, ninguém sabe, apenas se sabe quando já está no meio, mediações” —, e cujos entrecho e desfecho apontam para um lugar inalcançável pelos personagens, mas ideal e paradoxalmente abraçado tanto por eles quanto por nós, leitores.

Ressalte-se, desde já, a viagem: sua potência transformadora é catalisada pela personagem-título e verificada em cada um dos sujeitos que, dispersos no “silêncio armado” do “sertão”, nos “lugares mais longos, mais restantes, lá onde Deus se recua”, desvelam o caráter esboroante das coisas e seres deste mundo. Mesmo cientes de “que nunca se chega, a verdade, a terra nenhuma nestas terras”, esses personagens cavalgam à exaustão, mirando sua destinação alucinatória, empurrados pela lembrança da madona que se foi e os abandonou nos páramos.

Procuro, por meio deste ensaio, chamar a atenção para um dos achados maiores da literatura brasileira, obra desgraçadamente pouco lida e conhecida. Dono de uma dicção única, aferrado a um estilo febril e desbragado, Dicke merece e precisa ser resgatado o quanto antes do ostracismo.

 

2.
Filho de um alemão de Vechta e de uma brasileira de Coxipó do Ouro, Dicke nasceu em Raizama, na Chapada dos Guimarães. Mudou-se para Cuiabá ainda moleque, sendo educado em colégios religiosos. Mais tarde, no Rio de Janeiro, onde viveu por uma década, estudou Filosofia na UFRJ e pintura com Frank Schaeffer e Ivan Serpa, expôs no XV Salão de Arte Moderna e cursou Cinema no MAM. Ainda na capital fluminense, especializou-se em fenomenologia heideggeriana e trabalhou como repórter e pesquisador para O Globo. De volta a Cuiabá, ocupou-se, entre outras coisas, como professor da UFMT e também no Correio da Imprensa. No começo da década de 1980, outra vez no Rio, concluiu o mestrado com a dissertação Conjunctio oppositorum no Grande Sertão, sobre a obra de Guimarães Rosa, após o que retornou em definitivo para Cuiabá.

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Ao lançar Madona dos páramos, em 1982, Dicke vinha de dois romances bem-sucedidos: Deus de Caim, um dos agraciados com o Prêmio Nacional Walmap 1968 (que teve em seu júri Jorge Amado, Guimarães Rosa e Antonio Olinto), e Caieira, primeiro lugar no Prêmio Remington de Prosa 1977 (júri: Hélio Pólvora, Flávio Moreira da Costa e José J. Veiga). Entre um e outro, escreveu Como o silêncio, Prêmio Clube do Livro 1968.

Se atentarmos para Deus de Caim (relançado em 2010 pela LetraSelvagem) e Caieira (cuja única edição, pela Francisco Alves, data de 1978), é perceptível o fermentar dos temas e formas que culminarão no monumental Madona dos páramos. Seus personagens, lançados em um ambiente de veredas que se desfazem, abauladas por aquele “silêncio armado”, estão sempre à mercê da natureza devoradora e desarvoradora, seja humana, seja inumana. À infinita violência da Mãe-Terra, eles respondem com a débil violência do homem, perpetuando brutalidades e perplexidades na essência redonda da vida — no que parafraseio o trecho inicial de Deus de Caim.

Madona dos Páramos é estruturado como uma sequência de blocos narrativos e digressivos, sem divisões de capítulos ou quaisquer respiros para o leitor; há parágrafos que se estendem por páginas e páginas. Assim, o romance se impõe como uma experiência que desbasta “e modela a grandes golpes, rompe e irrompe, abre clareiras”, como afirma Hélio Pólvora no prefácio à primeira edição, sublinhando: “Sua alquimia é desvairada”.

Pólvora não está sozinho em sua estupefação. Referindo-se a Dicke, a escritora Hilda Hilst afirmou [2], em entrevista cedida a Caio Fernando Abreu, tratar-se de “um homem impressionantemente prolixo, com uma linguagem que tem uma oleosidade fascinante”. E mais: em Madona, ele teria chegado ao clímax de seu estilo, “esse centro prolixo, complexo, onde existe a volúpia da palavra”.

Note-se que a prolixidade, aqui, não é um “problema” ou “senão”, mas uma das ferramentas estilísticas que permitem ao autor desmontar e expor, não raro pelas ações, dizeres e olhos de seus personagens, “o horizonte achatado que se nega sempre a ser compreendido” e a vida, essa vida sempre fugidia, “para que ninguém se perca dentro do oceano escuro que suga, o abismo negro que” nos cerca e “chupa para fora do círculo”.

O mote de Madona dos páramos é uma fuga. A rebelião numa cadeia mato-grossense cospe aos quatro ventos dezenas de criminosos. Um punhado deles, bando liderado por um “pretaço de raça caburé, cuiabano de sangue azougado” chamado Urutu, investe tuaiá adentro rumo a um lugar mítico, a Casa da Figueira-Mãe. “Tuaiá” é uma palavra de origem tupi que significa, conforme o Houaiss, “lugar muito longe, rio acima”, e também é usada para designar, “no Alto Xingu, a mais distante região de seringais”. Os locais remotos servem, é claro, de proteção, na medida em que dificultam a captura ou morte pelas mãos dos “meganhas”, mas também para alimentar a busca última, interminável, pela Figueira-Mãe: “Estavam no centro do tuaiá. Ali era o rodopião, a espiral das ilusões mais profundas”.

Antes de Urutu e dos outros, as páginas iniciais nos trazem o ex-cabo José Gomes. Já em fuga da cadeia, ele se depara com uma velha pedinte que parece uma bruxa desgarrada de Macbeth. Ela roga toda sorte de pragas para o fugitivo, e só aceita lhe ceder a benção após receber uns trocados e entender que ele, a despeito das roupas que usa, não é mais um soldado. Meses antes, José Gomes flagrou a mulher com outro e matou o sujeito a machadadas, deixando “os quartos do homem abertos em dois, os ossos vivos no cerne do branco despontando em tutano no escarlate do esquartejo”.

Em um buritizal, após cavalgar à exaustão, Gomes encontra outro fugitivo, o rapaz Garci, ex-recruta, e com ele segue viagem. Dão com “uma casinhola de sapê num cochicholo de mata”; atrás dela, “um amontoado como de vísceras”, pés e mãos decepados e “testículos humanos, órgãos de gente”; por fim, do “lado do varal da cumieira, dependurados como morcegos, por tiras de couro, de cabeça para baixo (...), quatro homens despidos, sem mãos e sem pés, furados a bala, estrias escuras pelo corpo, castrados em sangue seco”. É sinal de que Urutu e os outros estão por perto e, de fato, não demora para que esses “foragidos, bandoleiros, homens livres” retornem ao local do massacre. São eles: o Caveira, “de Minas Gerais e professor”; Chico Inglaterra, “meio cínico nos modos, meio delicado com o corpo”, o couro devastado pela macutena (hanseníanse); o malfadado mulherengo Lopes Mango de Fogo; Babalão Nazareno, com seu “rosário de contas enormes e toscas no pescoço”; Canguçu, de “cem mortes no lombo”; Pedro Peba, “amansador de gente, capador de onça e capitão”; e Bebiano Flor, “boiadeiro e cantor”.

O destino declarado e desejado por esses homens é a tal Figueira-Mãe, “casa-palácio-igreja”, “direção de homizio, onde não chegam os abusos nem as arbitrariedades”, “lugar perdido no maior sertão do Norte mais profundo, no tuaiá dos mato-grossos, que todos os perseguidos sonham alcançar um dia e pensam encontrar sem erro preconcebido nem maturado”. Essa Canudos elusiva teria o seu Antônio Conselheiro, um certo Sem-Sombra, que antes de lá se fixar se metera com a sobrinha de um arcebispo e, a exemplo de Abelardo, acabou castrado. “Mas tudo isso podem ser lendas”, diz Chico Inglaterra. “E as lendas correm e voam.” Lenda ou não, é para a Figueira-Mãe que o bando de proscritos vai, esteja ela onde estiver, exista ou não.

A eles se juntarão o silencioso Melânio Cajabi, “com sua solidão de mil silêncios encravados na sua mudez”, homem cuja voz só se fará ouvir no longo e esplendoroso monólogo final, e aquela que é o centro em torno do qual orbita o romance — a moça sem nome.

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Necessitados de provisões, alguns membros do bando invadem uma fazenda e matam os proprietários. Trazem de lá, entre os espólios, a moça cujo nome jamais saberão. Estaria destinada aos usos e abusos de Urutu, mas algo nela, para além do silêncio e da grande beleza que ostenta, acaba por mesmerizá-los. Ciente do poder de que é pouco a pouco investida, ela prepara e executa “uma espécie de vingança” que passa pela negação do nome (“... eles ficarão para sempre sem saber como me chamo, até a hora da morte se lembrarão de mim e não saberão meu nome, morrerão de sede, cada qual no seu maior deserto...”), pois:

(...) a essência do homem é dar nome às coisas e transformá-las de inomeadas em nomeadas, de coisas ignoradas em coisas conhecidas, de desconhecidos em coisas, mas eu não tenho nome, eu sou a Mulher me vingando da gratuidade do mundo, a mulher que exige vingança ou uma explicação de Deus; (...) nunca saberão como me chamarei, eu que vim sem nome das origens, e essa recordação lhes arderá na existência como um fogo sem chama, um fogo que arde sem queimar, só para mim mesma me chamarei por meu nome verdadeiro, nome que, para acalmar a sede infinita das apelações, me puseram meu pai e minha mãe quando nasci (p. 130).

Para além da negação do nome, há ainda a elusividade do corpo: em uma das passagens mais poderosas do romance, a moça sem nome, intocada (o único que ousa achegar-se é prontamente assassinado por Urutu), tira suas roupas e, às vistas de todos, banha-se em um rio. É o momento em que seu domínio sobre eles é consumado, e os homens passam de sequestradores a sequestrados: “se fosse mais bela, o que seria? Uma divindade, um poder (...). Bastava a ela ser ela mesma, a vingadora pela beleza, nada mais”. A partir daí, identificada com uma espécie de “santa no altar” ou, melhor ainda (e aqui o paganismo de Dicke sorri para o leitor com todos os seus dentes), “deusa, dessas dos livros antigos, mais velhos”, ela permanecerá inviolada, exceto por um breve contato com o leproso Chico Inglaterra — mas o que se tem aí é o reiterar de sua condição, na medida em que, feito “uma rainha”, ela oferta “aqueles instantes como um presente aos homens, aos viventes que a amavam na sua solidão”. 

Assim inalcançável, ela se torna uma ideia que, porquanto desnomeada, escapará a quaisquer admoestações racionais ou conceituais. De certo modo, a moça sem nome como que se coloca no centro da clareira (Lichtung) a que Heidegger alude em um de seus mais belos textos [3]:

(...) A luz pode, efetivamente, incidir na clareira, em sua dimensão aberta, suscitando aí o jogo entre o claro e o escuro. Nunca, porém, a luz primeiro cria a clareira; aquela, a luz, pressupõe esta, a clareira. A clareira, no entanto, o aberto, não está apenas livre para a claridade e a sombra, mas também para a voz que reboa e para o eco que se perde, para tudo que soa e ressoa e morre na distância. A clareira é o aberto para tudo que se presenta e ausenta (p. 77)

Identificada, também, com a Mãe-Terra, com a violência feminina intrínseca à natureza, com a Criação que põe e dispõe, engole e regurgita, com aquilo que governa o olho masculino para melhor absorvê-lo, ela ainda personifica, a meu ver, o veredicto de Camille Paglia a certa altura de Personas sexuais [4]: “A mãe natureza nos torna a todos eunucos”. 

A violência da moça sem nome, ainda me aproveitando do vocabulário de Paglia, é de ordem ctônica, ao passo que a violência dos homens que a escoltam, por mais brutal que seja, é um mero jogo de meninos adoecidos. Presos na armadilha, dessexualizados ou incomodamente deslocados no âmbito de sua turbulência libidinal, eles lançam olhares embasbacados para aquela que os remete ao Caos primevo, ao inominado e inominável, ao que foge à conceitualização e que fatalmente lhes escapará (ascenderá?).

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Reitero: Madona dos páramos é uma fuga e, enquanto tal, uma viagem. Mas a jornada que inscreve não se completa. Longe de se perder — embora às vezes se sintam assim —, seus personagens se entregam a essa (não-)destinação, a esse eterno palmilhar e cavalgar pelos ermos do mundo, a essa busca interminável pela Figueira-Mãe que, no fundo e ao cabo, acaba se transformando em buscas outras. No transcorrer desse percurso, a narrativa passeia por todos e cada um deles, flutua com e por suas vozes e rememorações, municia um coral que se dispõe a cantar histórias dentro de histórias dentro de histórias, em notas que se distendem ao extremo em meio a “esse som de cascos, cascos, cascos e cascos e no interior dos cascos esse silêncio e dentro das frestas desse silêncio esse violão soando”.

E é inclusive por essa estruturação singular, cuja incompletude fundamental não canso de ressaltar, que considero um erro grotesco subsumir a prosa de Dicke à de quaisquer “regionalismos” (categorização tão genérica quanto disfuncional) ou, pior, encará-lo como uma espécie de sub-Guimarães Rosa. O ordenamento rosiano obedece a intenções, instintos e procedimentos diversos dos da prosa dickeana. Cito um trecho d’A poeira da glória, no qual Martim Vasques da Cunha nos esclarece que:

(...) reelaborando cada palavra arcaica da língua portuguesa e reestruturando-as via as línguas greco-latinas e germânicas, (Rosa) implodia qualquer noção tradicional de romance (o mesmo foi feito 30 anos antes com o Ulysses, de Joyce). A estória, contada — ou melhor, ruminada — pelo ex-jagunço, agora fazendeiro barranqueiro, Riobaldo, tem uma estrutura dupla: sua fala tem o ritmo de um rio (seu nome anuncia isso), mas o modo de fabular é de um redemoinho que ora é uma serpente, ora é uma espiral — imagens simbólicas que terão múltiplas ressonâncias neste épico sobre o perigo de viver nas veredas da graça (p. 403).

Se Rosa é joyceano, Dicke é faulkneriano. No lugar da fabulação espiralada de Grande sertão: veredas, temos um estiramento tumultuoso que sugere o desenho (falho, incompleto) de um círculo. Não por acaso, quando deixamos Urutu, José Gomes, Melânio Cajabi e cia., eles prosseguem em sua busca pela Figueira-Mãe, prenhes da presença-ausência da moça sem nome, talvez andando em círculos, talvez não (as noções de tempo e espaço são pouco a pouco implodidas pelo caráter crescentemente alucinatório do romance), mas entregues àquela procura e contaminados por ela. Inexiste, portanto, um arco narrativo como aquele de (imposto por?) Riobaldo, que desde o início se coloca em um ponto fixo a partir do qual pode, retrospectivamente, ruminar sua história. Ademais, em Dicke, tampouco o espraiar “oleoso” da linguagem se assemelha, pelos seus métodos e efeitos, ao inventivo gozo linguageiro proposto por Rosa.

Do mesmo modo, as perquirições filosófico-metafísicas também apontam em direções opostas. Rosa, atesta Vasques da Cunha, “faz um livro inteiro a respeito do pacto demoníaco e, ousadia das ousadias, demonstra que esse fato é a raiz da alma brasileira”. Em Madona dos páramos, por mais que Melânio Cajabi invoque o Demo, este não aparece ou comparece: o pacto faustiano jamais é efetivado porque o Diabo se revela tão surdo quanto D’us.

 

5.
E surdos ficamos nós à voz única de Ricardo Guilherme Dicke. Afeitos às facilidades dos juízos inconsequentes e apressados, às simplificações, aos nivelamentos grosseiros, permitimos que uma obra-prima como Madona dos páramos restasse nas sombras do olvido. Mas um livro sobrevive enquanto tiver leitores, e eis-me aqui pedindo, implorando, que se voltem para este caminho que nem é “mais caminho e sim deserção de caminho”, que atentem para o “silêncio armado” dos páramos e sua aridez incontornável, que enlouqueçam com a alquimia desvairada de um gigante.

 

André de Leones é escritor. Publicou Eufrates, Abaixo do paraíso e Hoje está um dia morto, entre outros livros.

 

BIBLIOGRAFIA
[1] DICKE, Ricardo Guilherme. Madona dos páramos. Rio de Janeiro: Edições Antares; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1982.

[2] DINIZ, Cristiano (org.). Fico besta quando me entendem — Entrevistas com Hilda Hilst. São Paulo: Biblioteca Azul, 2013.

[3] HEIDEGGER, Martin. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. Em Conferências e escritos filosóficos, coleção Os pensadores. Tradução: Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

[4] PAGLIA, Camille. Personas sexuais – Arte e decadência de Nefertite a Emily Dickinson. Tradução: Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

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