Cinco perguntas para João Moreira Salles 10/01/2019 - 01:40

O documentarista e criador da revista Piauí fala sobre seu cinema, violência, jornalismo e o futuro do Brasil

Luiz Rebinski

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Fotos: Ivone Perez

As manifestações de 2013, ao que tudo indica, devem culminar em um período conservador no Brasil. Como você analisa esses acontecimentos e os relaciona com o Maio de 1968, tão presente em No intenso agora, seu mais recente documentário?
Não acho que seja possível saltar da causa para o efeito de maneira tão simples. São muitas as origens do que vivemos hoje. Turquia, Polônia, Hungria, EUA, Itália e Áustria não passaram por Junho de 2013, o que não impediu que, cada um à sua maneira, não acabassem também escolhendo regimes não propriamente conservadores — que luxo se fossem apenas conservadores —, mas que tendem ao autoritarismo, quando não já francamente autoritários, ou até mesmo reacionários. No máximo, pode-se apontar para a faceta desiludida de 2013, aquela que indicava o cansaço com o sistema político vigente, que se expressava deixando claro que a confiança nos partidos e na democracia representativa tinha se esgotado, e especular se esse caldo de frustração não ajudou a gestar a figura do outsider que o atual presidente eleito falsamente encarna. Esse aspecto não propositivo de 2013, em que as energias estão direcionadas mais a afirmar o que não se quer do que a construir alternativas, reproduz em certa medida alguns aspectos de Maio de 68. O risco desse tipo de dinâmica é fragilizar o que existe — o que pode ser civilizatório, dependendo do que está sendo fragilizado — sem ocupar o espaço que inevitavelmente se abre. O diabo é que tem muito projeto latente à espera de uma vacância de poder, gente boa e gente perigosa na tocaia. Desmanchar o que existe sem produzir lideranças e sem apresentar propostas tem seus custos.

 

Você tem dito que quer fazer filmes sobre realidades que conhece, e não mais tratar de assuntos que envolvam estratos da sociedade com que não tenha vivência — como em Notícias de uma guerra particular, por exemplo. Santiago e No intenso agora são filmes que apontam o futuro do seu cinema?
Não gostaria de pensar que os filmes que eventualmente ainda farei serão todos autobiográficos. Seria uma limitação muito grande. Mas você está certo em observar que Santiago e No intenso agora apontam numa direção que hoje parece incontornável no meu percurso. Não se trata exatamente de me fixar em realidades que conheço. A questão é outra e diz mais respeito a não subestimar as relações de poder que subjazem todo documentário. Quem dirige um filme tem domínio sobre o seu personagem. Isso é inevitável. Num país desigual como o nosso, é impossível não pensar que um filme dirigido por pessoas privilegiadas sobre pessoas pobres não implica em dilemas que, no mínimo, merecem ser submetidos a uma tomada crítica de consciência. Cada um encontrará a sua própria solução e tomará o caminho resultante. Por ora, o meu caminho é deixar esses filmes de lado até encontrar outro modo de voltar a eles.

 

Notícias de uma guerra particular talvez seja ainda seu filme que mais repercutiu para além do público cativo dos documentários. À época, suscitou debates na imprensa e na TV. Como você o vê hoje, quase 20 anos depois?
Durante muito tempo achei que Notícias — que dirigi com Kátia Lund — tinha se tornado um filme histórico, um retrato de uma cidade que havia ficado para trás. De uns três anos para cá, fui obrigado a reconsiderar isso. Com tristeza, cheguei a pensar que o documentário voltara a ser atual. Mais recentemente, muito em função das reportagens de Allan de Abreu na revista Piauí, me dei conta de que estava errado. Notícias não reflete mais o que se passa no Rio e, por extensão, no Brasil. Aquele mundo de narcotraficantes do lumpesinato, de gente desarticulada, de meninos adolescentes com armas de gente grande na mão fingindo que sabem para onde vão, aquela anarquia selvagem, aquela violência pulverizada e molecular, pois bem, isso também ficou para trás. Como sabemos, de uns tempos para cá o crime se organizou, a ponto de certas pessoas começarem a empregar o termo narcoestado para se referir ao Brasil. Nesse sentido, por mais incrível que pareça, Notícias é o retrato de um período inocente da violência nacional.

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A Piauí não está atrás de furo de reportagem. Seu foco é outro: matérias bem apuradas e de fôlego. Mas, nos últimos anos, a revista deu uma guinada ao jornalismo diário, ao incrementar o site com notícias que não estão na pauta da edição impressa. Por quê? É uma tentativa de ampliar o público?
Acho que é uma forma de responder a essa sensação de que nesses últimos anos a história do Brasil se acelerou. Destituição de Dilma, Temer, Lava Jato, Joesley, condenação e prisão de Lula, ascensão da direita, Bolsonaro. O ritmo mensal da revista é incapaz de dar conta dessa aceleração. Antes, tínhamos a impressão de que as coisas avançavam dentro do limite da velocidade histórica. Não mais. O site tem mais capacidade de reação, razão pela qual ele hoje nos ocupa tanto quanto a revista. O essencial, acho, é que esses dois tempos são simultaneamente complementares e necessários. Rapidez para reagir, lentidão para depurar. A Piauí tenta fazer as duas coisas.

 

Na edição de outubro da Piauí há uma reportagem sua sobre a cidade de Três Corações, em Minas Gerais. O texto sugere que as relações políticas, sociais e de classe do local são um espelho do que acontece no Brasil. A partir dessa experiência, que futuro imagina para o País?
Fala-se muito da crise da democracia brasileira. Em Três Corações, percebi que isso não procede. A tese não é minha, mas de um intelectual de lá, um escritor brilhante chamado Lelo de Brito. Ele observa que ainda estamos na pré-história das instituições. Nada funciona como deveria. O Executivo não sabe executar, o Legislativo não legisla, o gestor público não conhece os instrumentos de que dispõe, é tudo anterior ao conhecimento. Donde a miséria e a feiura da nossa realidade urbana, por exemplo. Isso me leva a concluir que, para que haja crise da democracia, é preciso que antes exista uma democracia. E ainda não chegamos lá. Quando penso no futuro do Brasil, gosto de imaginar que um dia chegaremos lá.

 

Luiz Rebinski é jornalista e editor do jornal de literatura Cândido. Publicou o romance Um pouco mais ao sul.

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