Bolsonaro e as bibliotecas 10/01/2019 - 04:20

Especialista em livro e leitura aponta caminhos para a valorização do equipamento cultural mais popular do País

Cristian Brayner

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Ilustrações: Caco Galhardo

O que se espera de Bolsonaro em relação às bibliotecas? Os apaixonados, obedientes à lógica de seu próprio ardor, arrotam certeza quanto ao sucesso ou malogro do próximo governo. Não seria tão precipitado. Afinal, até o presente momento, o que temos de garantia é a redução do status da pasta da Cultura. O que se comenta pelos corredores de Brasília é que a equipe de transição irá fundi-la com os ministérios da Educação e dos Esportes. Nada mais.

De todo modo, teve gente que esperneou com o triunvirato ministerial proposto. Alguns figurões da Esplanada encararam o ménage como um modelo pouco avançado, alegando tratar-se de uma cópia malfada da Venezuela e da Guiné Bissau. Da minha parte, não tenho certeza ser este ou aquele o melhor modelo de gestão. O que posso assegurar é que a estrutura atual é ruim, pelo menos para as pautas do livro, leitura, literatura e bibliotecas, as primas pobres do Ministério da Cultura. Falo com a propriedade de quem conhece a máquina por dentro. Nos últimos anos, sob o mantra do ajuste das contas públicas, o orçamento despencou. O mais curioso é observar que na tessitura dessa narrativa aterradora, repleta de cifras e tesouras, são os mais desvalidos que acabam perdendo os fundilhos.

É o caso da biblioteca que, embora sendo o equipamento cultural mais popular do país, continua sendo tratada com absoluta negligência. Vale ressaltar que não se trata de um comportamento político recente, adotado nos dois últimos anos, vinculado a um grupo político ou qualquer coisa que o valha. Confrontem os números da última década e constatem a natureza suprapartidária do descaso. Em linhas gerais, todas as legendas, independentemente da coloração, compartilham de uma verborragia elogiosa e estéril sobre a biblioteca e quem trabalha nela.

Ah! Se pudesse ter acesso ao presidente Bolsonaro, pediria duas coisas. Nada mais que duas. Primeiro, investimento na área. Falo de dinheiro mesmo, começando pelas bibliotecas públicas. Creio não ser difícil convencê-lo da importância das bibliotecas a partir do quesito “impacto social”. Bastaria identificar a popularidade e o impacto dos equipamentos, produtos e serviços culturais na vida do brasileiro comum. Nesse sentido, a biblioteca daria uma goleada. É sabido que, apesar dos pesares, a biblioteca é reconhecida pelo cidadão como espaço eminentemente público, de acesso livre e irrestrito.

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De fato, toda biblioteca nasce do desejo de se garantir cidadania, sem que haja necessidade de se pagar ingresso ou qualquer coisa que o valha. Talvez essa perspectiva coletiva tenha sido semeada já em nossa época de criança, quando encontrávamos em cada escola um espaço, ainda que modesto, dedicado à leitura. Nesse sentido, longe da perspectiva apocalíptica de alguns, encaro que a fusão da Cultura com a Educação pode trazer benefícios, pelo menos para a maior parte da população brasileira.

Chego a conjecturar medidas simples e críveis: que tal atrelar o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas à Coordenação Geral dos Programas do Livro do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)? Não sei se estão a par, mas já tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que cria o Sistema Nacional de Bibliotecas Escolares. Além disso, o FNDE tomou para si a competência de parametrizar, de forma clara e inteligente, as bibliotecas escolares. Abrigar estas duas tipologias de bibliotecas numa mesma aba pode ser de grande valia, especialmente por sabermos que a frequência de adultos na biblioteca pública é fruto do investimento na biblioteca escolar. Além disso, essa medida poderia representar um incremento considerável no financiamento das bibliotecas públicas do País. Afinal, o Ministério da Educação é o maior investidor de livros didáticos do mundo. Ampliar o espectro da formação leitora, desdobramento da incorporação das pastas, representaria um empoderamento orçamentário.

Entretanto, nem só de dinheiro vive nossas bibliotecas, mas de toda palavra que nasce da boca dos homens. Nesse sentido, pediria ao presidente Bolsonaro que, além de receita, sua gestão invista, pesadamente, em liberdade. Sendo mais claro: que não aprove qualquer política pública ou promulgue nenhuma lei destinada a caçar ou diminuir o direito de todo brasileiro ser informado. Tentaria convencê-lo de que toda biblioteca, por mais humilde que seja, é uma rede de fios com matérias e cores distintas, tecidas por quem a frequenta. Esse tecido, composto por ideias díspares e, em certos casos, conflituosas, é sempre caracterizado por uma grande beleza. Essa obra majestosa, intitulada “biblioteca”, se expressa em sua natureza inacabada. Livros e tantas outras fontes entram e saem pela porta principal da biblioteca, num frenesi libertador. Todos eles são igualmente admitidos, na certeza de que a verdade se firma pelo confronto das vozes, e jamais pelo silenciamento.

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Por isso, diante de novas ideias, expostas em forma de folhas, tintas, imagens e corpos, o manto é parcialmente desfeito, para que se dê espaço a um novo desenho. O novo desenho, nascido do embate entre escritores e leitores (tese e antítese), era chamado pelos gregos de síntese. Produto sempre inacabado, envolvendo, portanto, uma atitude pessoal e coletiva de não temer a inconstância da vida. A empatia é filha da coragem.

Diria, portanto, ao presidente, que precisamos garantir, a todo custo, o direito do outro se expressar, seja em forma de livro, seja numa conversa despretensiosa com o bibliotecário. Desse modo, é preciso ficar atento a qualquer sombra atentatória à liberdade, que, aliada a uma moral particular, recorra a verbetes depreciativos, como “ideologia” e “doutrinação”, comprometida em negar plausibilidade ao modo de pensar e de viver de tantos brasileiros que pagam seus impostos e lutam, à sua maneira, por um país mais justo. É provável que já nos primeiros meses como chefe do Poder Executivo Federal, ele enfrentará um emaranhado de vozes, o que poderá lhe ajudar a reconhecer que a verdade tem endereço incerto.

Pedidos feitos, ousaria dizer ao presidente que o sucesso de sua gestão depende, necessariamente, de sua capacidade de valorar o Brasil como se uma biblioteca fosse: ordeira, em termos de disposição, e progressista, em termos de cidadania.

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Cristian Brayner é doutor em Literatura e Práticas Sociais e meste em Ciência da Informação. É autor dos livros Devotos e devassos: Representação dos padres e beatas na literatura anticlerical brasileira e A biblioteca de Foucault: Reflexões sobre ética, poder e informação. Foi diretor do Departamento de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do Ministério da Cultura. Atualmente é bibliotecário da Câmara dos Deputados.

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