A roda-viva literária

A roda-viva literária

O fato de um autor ser consagrado em vida não garante que a sua obra continue sendo lida e estudada ao longo dos anos, da mesma maneira que uma recepção tímida pode, surpreendentemente, se transformar em glória póstuma


Marcio Renato dos Santos


coelhoneto
Coelho Neto (1864-1934) foi um homem célebre, principalmente no mundo das letras. Escreveu, e publicou, dezenas de livros, de variados gêneros, incluindo romance, conto, peça de teatro e crônica. O jornal O Malho o designou Príncipe dos Prosadores Brasileiros. Participou da fundação e integrou a Academia Brasileira de Letras (ABL). Em vida, era — sem exagero — festejado e a sua obra tinha leitura.

Os cadernos de cultura dos jornais brasileiros faz tempo que não citam o nome do escritor. O que aconteceu com a recepção e a reputação do autor, entre outros, dos romances A capital federal (1893), Miragem (1895), Inverno em flor (1897), O morto (1898), O rajá do Pendjab (1898), Tormenta (1901), Turbilhão (1906) e Rei negro (1914)?

A professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Liane Mroginiski Zanesco afirma que Coelho Neto pode estar esquecido pelo público, talvez pelos jornalistas culturais, mas não por pesquisadores — que continuam em contato com a obra do escritor. “Muitas vezes, determinado autor é sucesso de público e de crítica em sua época e depois a sua obra fica datada, perde o encanto para outra geração de leitores. Coelho Neto figurou entre os grandes escritores de seu tempo [fim do século XIX e começo do século XX], mas alguns teóricos pensam que foram as críticas dos modernistas à sua obra que influenciaram um segmento da crítica literária, o que teria originado uma reação negativa também de público”, comenta Liane.

De fato, a exemplo do que diz a professora da PUCRS, a geração modernista atacou, com fúria, e tentou desconstruir Coelho Neto. “O Oswald de Andrade dizia, em tom de brincadeira, que ele escrevia tão rápido, quase na mesma velocidade que um coelho se reproduz [pelo fato de o escritor publicar até mais de 1 livro por ano]”, comenta o professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) Pedro Marques. Já a professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Dirce Waltrick do Amarante acredita que não foram, necessariamente, e apenas, os modernista os responsáveis pela atual falta de interesse pela literatura de Coelho Neto. “Os modernistas também condenaram Monteiro Lobato e ele se mantém firme até hoje”, argumenta Dirce.

O professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Benedito Antunes analisa que a perda de interesse da crítica pela obra de Coelho Neto pode ter relação com o fato de o autor ter produzido uma literatura exageradamente conectada a nuances do tempo em que ele viveu. “Coelho Neto foi um profícuo escritor que atendia ao gosto de uma sociedade arcaica. Sua obra, especialmente a regionalista, primava pela superficialidade e a ornamentação. Mas provavelmente seu teor descritivo, de intenção documental do ponto de vista temático e ornamental quanto à construção, tem contribuído para a rejeição por parte da crítica”, avalia Antunes. O estudioso da Unesp também tem uma tese para o desinteresse dos leitores para a obra do autor dos livros de contos Rapsódias (1891), Baladilhas (1894), Álbum de Caliban (1897), Vida mundana (1909), Banzo (1913) e Contos da vida e da morte (1927). “Quanto ao grande público, que em geral se move pelo aspecto temático, com o processo de modernização do país, passou a ter interesses de outra natureza para satisfazer a sua necessidade de fantasia”, completa Antunes.

Liane Mroginiski Zanesco, da PUCRS, explica que a prosa de Coelho Neto é bastante trabalhada, com léxico muito amplo [leia um trecho do romance Imortalidade nesta página], o que, na opinião dela, destoa da prosa modernista e, de certo modo, dificulta a leitura pelo público acostumado com a prosa contemporânea. “Não creio que ele tenha perdido a relevância, tanto que há vários pesquisadores trabalhando no resgate de suas obras, mas não creio que o público atual tenha interesse em ler esse autor, até mesmo por desconhecê-lo”, diz Liane.

Esquecimento nacional

O caso de Coelho Neto faz ver que o reconhecimento em vida pode não representar, necessariamente, a presença do legado de um autor no imaginário cultural durante a passagem do tempo. O crítico e ensaísta André Seffrin afirma que, além de Coelho Neto, parte considerável da literatura brasileira está esquecida. Para comprovar o que diz, Seffrin cita José Geraldo Vieira, Octavio de Faria, Dalcídio Jurandir, Cornélio Pena, Adonias Filho, Josué Guimarães e Autran Dourado — todos, na opinião de Seffrin, romancista injustamente esquecidos. “Que dizer dos memorialistas Gilberto Amado e Antonio Carlos Villaça? E nossa poesia do século XIX? Os românticos Carlos Ferreira e Narcisa Amália só são conhecidos por especialistas”, questiona o ensaísta.

O crítico literário Rodrigo Gurgel lembra de Júlia Lopes de Almeida, contemporânea do Coelho Neto. “É um problema semelhante: famosa na sua época, tem obra diversificada, vasta, também esquecida, que merece releitura atenta”, afirma Gurgel, que escreve no jornal Rascunho e na Folha de S.Paulo. A lista de autores esquecidos contempla Olavo Bilac e, no entendimento do professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) André de Sena, inclui Teófilo Dias e Humberto de Campos, entre tantos outros. “Há ainda uma miríade de poetas simbolistas e da chamada poesia científica de fins do século XIX que constitui hoje 'arqueologia literária' para especialistas, mas bem vivos em suas épocas”, diz Sena.

Benedito Antunes, da Unesp, analisa que a permanência, ou não, de uma obra ou autor no cenário literário depende da confluência de vários fatores, nem sempre perceptíveis. “A qualidade estética é, sem dúvida, um dos principais fatores, mas ela não garante que a obra será lida e preservada do esquecimento”, diz Antunes. Ele lembra que os estudos acadêmicos, por si só, não mantêm uma obra em circulação. “Lúcio Cardoso e Cornélio Pena estão sendo até bastante estudados, mas é difícil encontrar edições recentes de suas obras, assim como é difícil encontrar leitores apaixonados por elas no chamado grande público”, afirma o professor da Unesp.

Redescobertas e descobertas

E o caso contrário ao de Coelho Neto? O de autores que não tiveram muita repercussão em vida e, posteriormente, passaram a ter a obra lida, estudada e discutida? O professor Pedro Marques, da UNIFESP, cita Cruz e Souza e Augusto dos Anjos. André de Sena, da UFPE, lembra do poeta maranhense Sousândrade, cuja importância foi redescoberta na segunda metade do século passado pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos. “Desde então, Sousândrade passou a figurar no cânone literário nacional, apesar de ainda haver muito a se explorar em relação à sua obra”, diz Sena.

A obra, por exemplo, de Campos de Carvalho ainda não é conhecida em âmbito nacional. “No Brasil, não se tem muita familiaridade com a literatura nonsense, ou absurda, praticada por ele”, opina Dirce Waltrick do
camposdecarvalho
Amarante, da UFSC. A editora da José Olympio, Maria Amélia Mello, lembra que foi um desafio publicar, na década de 1990, os quatro romances de Carvalho, A lua vem da Ásia (1956), Vaca de nariz sutil (1961), A chuva imóvel (1963) e O púcaro búlgaro (1964) — que saíram em um mesmo volume e, em seguida, foram publicados individualmente.

“Algumas adaptações da obra de Campos de Carvalho para o teatro ajudaram na divulgação. Mas é sempre difícil trabalhar um clássico”, afirma Maria Amélia. O catálogo da José Olympio, desde 2002 no Grupo Record, é formado por obras de Rachel de Queiróz, Antonio Callado, José Cândido de Carvalho, Raul Bopp e Marques Rebelo, entre outros renomados autores. “Do ponto de vista editorial, levando em conta um mercado repleto de lançamentos, tenho que fazer desses clássicos uma novidade. O que, convenhamos, não é nada fácil. Trabalho com 'madeira de lei', o que nem sempre está na mídia, mas é conteúdo fundamental para a cultura brasileira”, conta a editora.

Marques Rebelo (1907-1973), reconhecido em vida, e reeditado pela José Olympio, segue com poucos leitores atualmente. “A obra está disponível nas livrarias, mas o nome [do autor] definha num invólucro de silêncio”, lamenta Rodrigo Gurgel. Dirce Waltrick do Amarante completa o raciocínio do crítico: “Às vezes o que falta é uma releitura da obra, um olhar diferente sobre ela, para que a obra [no caso, de Marques Rebelo] ganhe novamente interesse. É necessário atualizar as leituras.”

Benedito Antunes, da Unesp, observa que Marques Rebelo ainda é um autor de prestígio e afirma que o escritor só não tem mais visibilidade por ter sido ofuscado pela projeção alcançada por alguns de seus contemporâneos, entre os quais Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado. “De qualquer forma, Marques Rebelo tem estilo original e vem merecendo novos estudos, o que lhe garante a permanência no cenário cultural brasileiro. Já a sua presença nos cadernos de cultura reflete outros aspectos do mercado editorial. Esses suplementos, aliás, cada vez mais raros, têm-se tornado espaço publicitário ou reflexo do sucesso de mercado”, argumenta Antunes que, diante do empobrecimento da imprensa cultural, aponta para uma alternativa: “Nesse contexto, é mais vantajoso para a permanência do autor que ele continue a ser lido nas escolas, em grande parte o único espaço responsável pela formação de novos leitores literários.”

Liane Mroginiski Zanesco, da PUCRS, ressalta que uma obra literária é, de fato, lida diferentemente ao longo do tempo. “Nós, leitores, muitas vezes, relemos um livro e encontramos 'outro', aquele romance lido na adolescência perde ou ganha encanto”, afirma Liane. Ela ainda diz que a nossa história, a nossa concepção de sociedade, de identidade e de nação têm de levar em conta as obras de inúmeros autores esquecidos — e até dos desconhecidos, “que merecem atenção.”

O escritor Carlos Eduardo de Magalhães, editor da Grua Livros, tem a convicção de que, hoje, o marketing e a comunicação determinam tudo o que se lê — isso no Brasil e no mundo, de clássicos a lançamentos. “Muitas vezes um escritor é citado como bom sem que o sujeito que cita o tenha lido — faltam algumas fontes primárias. Não acredito que seja muito aleatório o sucesso comercial de uma obra. Precisa de investimento, basta ver as campanhas que autores já conhecidos têm em seus lançamentos”, garante Magalhães. No entanto, ele não deixa de lembrar que existe, sim, mistério e acredita que, na falta de outra palavra, o fator sorte pode fazer a diferença: “Às vezes calha do livro acontecer por si, mais raro devido ao enorme número de lançamentos bons e à consolidação de grandes grupos editoriais, que vão abocanhando os espaços nas livrarias e nos jornais.”

Pegando carona no discurso de Magalhães, o professor da UNIFESP Pedro Marques arremata: “O ingresso e a saída do cânone é diferente para cada escritor.” E isso vale para Coelho Neto, Marques Rebelo, Campos de Carvalho, Olavo Bilac, Cornélio Pena etc.