Um Escritor na Biblioteca - Ronaldo Correia Brito

Ronaldo Correia de Brito

Foi a partir do romance Galileia (2008) que Ronaldo Correia de Brito começou a se tornar mais conhecido em todo o Brasil — e até no exterior. A longa narrativa que reinventa o sertão brasileiro rendeu ao escritor cearense o Prêmio São Paulo de Literatura. Nascido em 1951, em Saboeiro (CE), Brito já havia escrito e publicado outros livros antes de Galileia. Em 1983, dirigiu Maracatus misteriosos, peça de teatro de sua autoria. A partir da coletânea de contos Faca (2003), recebeu convite para ser escritor-residente na Universidade de Berkeley, na Califórnia (EUA). Após Galileia, o escritor publicou o livro de contos Retratos imorais (2010) e o romance Estive lá fora (2012).

Durante edição do projeto “Um escritor na Biblioteca”, Brito recuperou fragmentos de seu percurso de escritor e leitor, que tem na Bíblia uma obra fundamental. “O livro que mais li, sempre releio e vou continuar lendo minha vida toda é a Bíblia. No meu entendimento, trata-se de um excelente livro de narrativas. A Bíblia é um livro de autores, de várias vozes interessantíssimas. Nunca busquei na Bíblia um livro religioso, mas uma obra de narrativas, de metafísica e poesia”, disse, em entrevista mediada pela jornalista Mariana Sanchez.

Morador do Recife desde 1969, o escritor é médico há 43 anos. Brito diz que a medicina é fundamental para sua vida e ficção. “A medicina me dá o substrato diário, me apresenta histórias, me alimenta e, ao mesmo tempo, essa profissão também é o um exercício diário com o ser humano. Medicina é o contato diário com a dor, com o sofrimento, e isso é necessário porque o mundo da literatura, muitas vezes, se torna vago, abstrato demais. Lidar com pacientes traumatizados, acidentados, com todo tipo de dor, é muito real, me leva para uma dimensão mais humana, me deixa com os pés mais no chão”, afirmou. Brito também contou que leu clássicos da literatura com falhas, devido à ação de traças e cupins e se tornou escritor para preencher essas lacunas. Psicanálise, intoxicação de Guimarães Rosa, mitos, bibliotecas, desinteresse por futebol e outros assuntos também entraram no bate-papo.

Confira, a seguir, os principais momentos.

Foto: Guilherme Pupo


Vida é imaginação
Em Estive lá fora, meu mais recente romance, tem uma cena emocionante sobre biblioteca, em que o personagem, quando chega em casa após uma longa viagem, encontra vários livros, e se apaixona por eles mesmo não sabendo ler. E, aí, ele fala que irá se casar com a dona desses livros. Essa passagem ilustra bem como é o meu processo de criação, uma vez que essa história é verdadeira. Um judeu amigo meu, médico lá de Recife, quando era rapaz foi fazer um intercâmbio em Israel. Ele foi até a casa de uma família e, quando entrou, se deparou com diversos livros em cima de uma mesa e ficou totalmente apaixonado pelos títulos. Naquele instante, ele tomou a decisão de que se casaria com a dona daquelas obras. Ela era uma judia, uma pessoa muito culta, que falava hebraico, inglês e português. Eles se casaram e, de fato, aproveito essa história a respeito da qual eu tinha conhecimento, que é uma história de amor, uma paixão repentina pelos livros, com um imenso arrebatamento.

Os livros e a vida
A história da minha mãe é emocionante e diz respeito aos livros. Ela era professora primária e foi contratada para trabalhar em uma fazenda dando aulas inclusive a moradores semianalfabetos. Eram pessoas que mal sabiam assinar o nome. Ela foi ensinar esses alunos, de vários níveis de compreensão, e um dos alunos era o meu pai, que tinha 19 anos, mal sabia ler e acabou se apaixonando pela professora. A família de minha mãe não aceita o relacionamento, então meu pai viaja com a minha mãe para o sertão, e ela leva o que viria a ser a minha primeira biblioteca: um caixote de livros.

Um caixote maior que o mundo
Foi por meio do conteúdo daquele caixote, no qual havia livros de aritmética, gramática e uns poucos romances, que meu pai aprendeu a ler. Ver meu pai sentado em uma mesa lendo até o amanhecer é uma das lembranças mais fortes da minha vida.

Alfabetização
Na casa onde passei a minha infância, a rotina noturna era mais ou menos a seguinte: minha mãe ficava na sala bordando ou costurando e meu pai remendava as roupas de couro e bordava as selas. Sob a luz de um candeeiro, eu folheava um livro ilustrado por Gustave Doré, A história sagrada, obra que reunia trechos do Velho e Novo Testamentos. Meu processo de alfabetização aconteceu, basicamente, em textos do Novo Testamento, onde Cristo era açoitado, coroado de espinhos. Eu tinha três, quatro anos.

“Acredito em um regionalismo geográfico. Os escritores precisam ter uma pátria, um lugar, o que é fundamental para uma boa literatura.”


Lacunas em Crato
Então, a minha família se muda para o Crato, onde moravam uns parentes. Conto isso porque, no Crato, morava um primo rico que tinha uma imensa biblioteca, onde eu pude ler toda a obra de Machado de Assis, de José de Alencar, de Monteiro Lobato, entre outros. E li de uma maneira tão definitiva que nunca mais precisei reler Machado de Assis e José de Alencar. Aquele primo também tinha uma casa no campo com uma biblioteca, algo raríssimo para a época. Era um luxo, uma biblioteca imensa. Só havia um problema: não havia nenhuma conservação. E, com o tempo, traças e cupins começaram a consumir os livros. Eu lia os enredos com buracos nas páginas. E, dessa maneira, li parte significativa de obras clássicas faltando partes do livro, com muitos buracos. Por isso, digo que a minha formação é incompleta, fragmentada, por ter sido feita em obras clássicas nas quais faltavam pedaços.

Escuta psicanalítica
A minha leitura era mais ou menos como a escuta psicanalítica, em que o paciente vai repetindo o seu discurso e sempre faltam pedaços. Digo isso porque talvez eu tenha me transformado em um escritor na tentativa de preencher esses buracos, essas grandes lacunas que existiram na minha vida.

Dez anos no divã
Eu sou psicanalisado. Passei dez anos em um divã, quatro vezes por semanas, cinquenta minutos por sessão. Por aí se vê como o meu caso é muito grave. Também tenho formação psicanalítica. Então, trabalho muito com essa questão do buraco, da falta, do que é preciso produzir para preencher essa falta, preencher esse não lugar.

Releitura
Sou um sujeito que lê obsessivamente. Um leitor meticuloso que lê e memoriza. De modo geral, ao terminar um livro, eu o sei de cor. Minha memória é impressionante. Diria que quase nunca esqueço uma referência bibliográfica. Por exemplo, posso me lembrar hoje de que em tal livro, de tal autor, provavelmente em tal passagem, deve ter uma citação sobre o tema tal. E quando estou escrevendo, pego o livro que li há 30 anos e localizo o trecho com precisão. Em geral, acerto. Leio muito vagarosamente. Jamais deixo de ler um livro até o fim. Até obras que não gosto. Essas eu leio como um exercício de como não escrever. Acho que os livros ruins nos ensinam muitas coisas. Levo os livros muito a sério. Tenho muito cuidado com toda e qualquer obra. Talvez porque eu saiba que alguns livros foram plantados em mim e resultaram em ganhos — para sempre.

“A Bíblia é um livro de autores, de várias vozes interessantíssimas. Se me perguntam qual foi o autor que mais me influenciou, confesso que são os autores da Bíblia.”


Machadinho e Alencar
Comentei anteriormente que deixei de ler José de Alencar e Machado de Assis porque li a obra dos dois de forma obsessiva nos anos de formação. De fato, li toda obra do Alencar e do Machado, o que não recomendo a ninguém. Como, em determinado contexto, eram os únicos livros que eu tinha ao meu alcance e eram completos, sem buracos de traças, então os li fortemente. Não voltei a esses escritores até que em Retratos imorais, meu livro de contos, logo no primeiro texto, uma personagem debocha muito de Machado e José de Alencar. O Machado, pela mania de dizer cousa, e o Alencar pela mania das reticências.

Foto: Guilherme Pupo
Rosa e o sacolejo

Há outro escritor que parei completamente de ler por causa da prosódia. Trata-se de um escritor que inventou um idioma e que criou um ritmo embriagador. Antigamente, andava-se muito de trem e eram viagens longas, de 12 horas, e o trem tinha um sacolejo estranho. Você tinha a sensação de que estava sendo jogado para frente e para trás e, depois de se fazer uma longa viagem de trem de 12 ou 14 horas, você ainda sentia alguns dias o corpo sendo balançado. Você ia andando e ainda tinha a impressão que estava no trem. Existe um escritor que tem esse mesmo ritmo, essa coisa que mexe fisicamente com a gente: é o Guimarães Rosa.

Intoxicação
Guimarães Rosa é o escritor que tem o que mais aprecio na literatura: a mais alta poesia e a mais alta metafísica. Gosto muito de uma escrita metafísica. Em Estive lá fora tem um momento em que um personagem debocha, dizendo que o mal, a doença de todos eles é o excesso de metafísica. Acho que passei um tempo meio intoxicado de tanta metafísica, mas eu gosto da metafísica no Grande sertão: veredas. Mesmo assim, não tenho influências de Guimarães Rosa, até porque parei de lê-lo. Sonho com o dia em que vou parar de escrever e só vou ler Guimarães Rosa, porque gosto muito dele. Quando estava lendo o Grande sertão: veredas, lembro que saí de casa porque queria terminar de ler o livro sozinho. Estava de tal maneira envolvido e apaixonado pelo livro, era tão arrebatador, que não queria partilhar com ninguém, não queria estar junto de ninguém no instante em que eu estivesse com aquele livro. Então, Guimarães é um autor que eu não leio. Não porque não gosto, mas porque gosto demais.

Em busca de leitores
O que eu mais queria na vida era ter leitores. É o que todo escritor deseja: ter leitores. Agora, um escritor precisa escrever aquilo que acredita. Tem que ter seu ritmo, seus experimentos com a linguagem, essa liberdade de escritor. Existe um desejo e existe uma exigência. Então, o desejo de ter leitores e a exigência de ser o escritor que você quer ser, que você deseja vir a ser. Imagine como foi difícil para o Guimarães Rosa fazer aquela escolha de construir uma língua. Também penso hoje como deve ser difícil as pessoas lerem as obras Guimarães Rosa em outros países: ele é intraduzível. Ao mesmo tempo, admiro e considero pertinente a existência de um escritor como o Luis Fernando Verissimo, que conquista tantos leitores e é tão agradável de ler. Hoje, há um grande impasse porque o escritor brasileiro está flertando com o mercado internacional e, neste contexto, como um autor como Guimarães Rosa vai sobreviver se quiser inventar um idioma que é intraduzível?

“Quero escrever sobre as questões que me interessarem, sobre o que eu quiser. Não sou nem estou preso a nenhum cânone, a nenhuma fantasia sobre literatura brasileira.”


Médico
Guimarães Rosa disse que se tornou escritor graças ao convívio com o povo, graças ao exercício da medicina, entre outros fatores. O escritor russo Anton Tchekhov foi uma pessoa que passou a vida toda entre o que ele chamava de amante, que era a literatura, e a esposa, que era a medicina. Certamente, eu não seria o escritor que sou não fosse a medicina.

O futebol e outros dribles
Recentemente, recebi uma encomenda para um antologia de contos sobre futebol, que vai sair na Alemanha. E, confesso, futebol é uma coisa que detesto, sempre detestei. Nunca tive ligação com futebol. Imagine, escrever sobre o futebol: tudo por causa de um convite. Sei de duas antologias que vão sair na Alemanha, uma sobre futebol e a outra sobre violência. O imaginário sobre o Brasil é sempre o mesmo. O legado de Jorge Amado, da literatura de mulatas charmosas, de exotismo, continua sendo o legado da literatura brasileira. Há um estereótipo ainda do que é a escrita brasileira e, em alguma medida, exige-se que os escritores produzam um tipo de romance. Não quero escrever apenas sobre determinado assunto, seja miséria, tráfico de drogas, violência em favelas, mulheres gostosas e vida sexual desbragada. Quero escrever sobre as questões que me interessarem, sobre o que eu quiser. Não sou nem estou preso a nenhum cânone, a nenhuma fantasia sobre literatura brasileira.

Cura e prosa
Todos os dias ouço histórias maravilhosas devido a essa profissão. A medicina me dá o substrato diário. Eu tive que escrever sobre futebol e, então, lembrei de um paciente que tentou ser jogador, foi fracassado e chegou todo quebrado em minha enfermaria para eu tomar conta. Durante um mês ou dois, escutei as histórias dele. Escrevi um conto que ficou muito bom. É uma história que exclui totalmente o futebol e entra somente na questão do homem. A medicina me apresenta histórias, me alimenta e, ao mesmo tempo, essa profissão também é o exercício diário com o ser humano. Medicina é o contato diário com a dor, com o sofrimento, e isso é necessário porque o mundo da literatura, muitas vezes, se torna vago, abstrato demais. Lidar com pacientes traumatizados, acidentados, com todo tipo de dor, é muito real, me leva para uma dimensão mais humana, me deixa com os pés mais no chão. Já tenho idade para me aposentar, mas não pretendo. Vou continuar indo diariamente aos hospitais.

Foto: Guilherme Pupo

“Guimarães Rosa é o escritor que tem o que mais aprecio na literatura: a mais alta poesia e a mais alta metafísica.”





Inevitável

Uma vez perguntaram ao escritor Isaac Bashevis Singer o motivo de ele escrever sobre prostitutas e ladrões judeus. Aí ele respondeu que não poderia escrever sobre prostitutas e ladrões espanhóis porque não conhecia os espanhóis, mas sim os judeus. Por ser médico, vou sempre trabalhar com personagens médicos porque vivo, há exatamente 43 anos, a medicina. Conheço muitos médicos, estudantes de medicina e pacientes. Então, a medicina sempre será o meu universo. Nesse meio posso errar menos.

Mitos
Perdemos toda nossa relação com o sagrado. A pós-modernidade rompe definitivamente com o sagrado, e isso é uma premissa que coloca o homem em uma situação meio niilista. Sem o mito, o ser humano perde a relação com o que está no passado, e o que está lá no passado é sempre o mito. Mesmo tendo uma formação científica, sendo médico e psicanalista, jamais perco essa perspectiva, das tradições religiosas, com aquilo que é sagrado, mítico e fundamental. A minha literatura busca, justamente, um equilíbrio, como se eu abrisse as pernas e com a ponta de um pé tentasse alcançar a pós-modernidade e, com o outro pé, me mantivesse ligado com uma outra corrente de energia. Seria isso o que chamo de mito.

Bíblico
O livro que mais li, sempre releio e vou continuar lendo por toda minha vida é a Bíblia. No meu entendimento, trata-se de um excelente livro de narrativas. A Bíblia é um livro de autores, de várias vozes interessantíssimas. Se me perguntam qual foi o autor que mais me influenciou, confesso que são os autores da Bíblia. Nunca busquei na Bíblia um livro religioso, mas uma obra de narrativas, de metafísica e poesia. As profecias de Isaías, Ezequiel e Jeremias são a mais alta poesia que a humanidade produziu.

Boca de Deus
Na Bíblia, os profetas se apresentavam como a “boca” de Deus. Passei minha vida estudando as religiões africanas e, nelas, as pessoas que recebem o santo são denominadas de cavalos dos orixás. São cavalos, portanto, recebem o seu Deus como cavalos porque a principal manifestação divina neles é por meio da dança, é pela expressão do corpo — é a partir da linguagem gestual que a divindade se manifesta. Já na Bíblia, os profetas são a mão e a boca de Deus porque eles escrevem e falam as palavras de Deus. Eu me identifico mais em ser a boca de Deus, em ser alguém que recebe a escrita ou a fala de Deus do que alguém que dance, apesar de admirar muito, e até invejar, as pessoas que são capazes de falar com o corpo.

Depois de Freud
Acredito que depois de Freud (1856-1939) não existe literatura não psicanalisada. Toda a literatura do Ocidente, a norte-americana e a europeia, é psicanalisada. Aliás, a psicanálise, antes mesmo de Freud, é inaugurada com Fiódor Dostoiévski (1821-1881), um escritor russo completamente psicanalisado e que psicanalisa muito os seus personagens. Para conferir isso, basta ler Os irmãos Karamazov e perceber como ele analisa as crises epiléticas de um personagem.

Foto: Guilherme Pupo

A jornalista Mariana Sanchez conduziu o papo com Ronaldo Correia de Brito no auditório da BPP.

Toda psicanálise

Eu sou psicanalisado, sou formado em psicanálise, mas não a exerço. Não quis seguir com a psicanálise, apesar do alto custo da minha formação, porque achei que a escuta psicanalítica iria atrapalhar a minha escrita. Não conheço bons escritores psicanalistas. São, no máximo, bons escritores de textos, não de literatura. A psicanálise me ajuda muito na leitura e na compreensão de textos, e ela sempre aparece, como, por exemplo, no romance Galileia. O personagem Adonias é psicanalisado, mas em um momento ele pede o dinheiro de volta, alegando que a análise não funcionou: o Adonias esbraveja contra a psicanálise.

Regionalismo
Acredito em um regionalismo geográfico. Os escritores precisam ter uma pátria, um lugar, o que é fundamental para uma boa literatura. Você imaginaria Gabriel García Marquéz sem Aracataca? E o William Faulkner sem o Mississipi? Proust e Balzac sem Paris? Machado de Assis sem o Rio de Janeiro? E Guimarães Rosa sem os gerais de Minas? Impossível. Disseram que o meu romance Galileia reinaugura um olhar sobre o sertão, e isso eu acato. Antes, havia um olhar sobre o sertão por meio do sertanejo romântico de José de Alencar; de Os sertões, do Euclides da Cunha; do Grande sertão: veredas, do Guimarães Rosa; de Vidas secas, do Graciliano Ramos, que apresenta um olhar mais social. Em Galileia, reinvento sim o sertão e, detalhe, fora de qualquer cânone da cartilha regionalista. Os personagens saem de pontos variados do mundo e se movimentam para se encontrar na Galileia, e aí é criado um novo sertão, que possui elementos da tradição mítica.

“ Quero escrever sobre as questões que me interessarem, sobre o que eu quiser. Não sou nem estou preso a nenhum cânone, a nenhuma fantasia sobre literatura brasileira.”


Invenção
Quando recebi o convite para escrever um conto sobre futebol, assunto que é difícil para mim, tudo se modificou no momento em que encontrei um paciente com uma história interessante e, devido a isso, consegui desenvolver algo. Toda escuta psicanalítica é uma escuta divagante. A gente escuta aquilo que mais interessa. São fragmentos e o resto você compõe. Então, conviver com pacientes, no exercício da medicina, me proporcionou pedaços, mas na minha história, tive de situá-lo em um tempo. Por exemplo, quando tinha cinco anos eu ficava na janela da minha casa, no Crato, e passavam jogadores de futebol vindo de uma quadra. O que me impressionava era o mal cheiro que o corpo deles exalava. Eles vinham com aquelas chuteiras fazendo barulho, sem camisa, falando muito alto, suados e com aquele cheiro. Então, eu tinha um repertório importante para escrever meu conto. Depois, lembrei de um time composto por açougueiros da cidade. Daí, o meu paciente vai virando açougueiro, mesmo sem ter cortado um pedaço de carne na vida. Acabei buscando elementos para compor esse meu personagem cortador de carne. Então, são vários elementos que entram no meu processo de invenção literária. Os sonhos que aparecem em Estive lá fora são sonhos que eu tive. É incrível, mas nos dois anos que eu passei escrevendo o livro vivi obsessivamente aqueles sonhos. Gostaria de dizer ainda que tenho colegas que sempre achei que renderiam ótimos personagens. Então, a pessoa percebe que estou querendo arrancar coisas delas, e mais tarde essa pessoa aparece em alguma história literária. Algumas ficam com muita raiva, às vezes, acontece algum problema. Mas é assim mesmo que funciona. Também posso criar personagens a partir de eu mesmo.