Um Escritor na Biblioteca: Fernando Morais

Fernando
Após 27 anos de sua primeira participação no projeto “Um Escritor na Biblioteca”, em 1985, o jornalista e biógrafo retorna à BPP para falar de sua extensa obra e de seu mais recente livro, Os últimos soldados da Guerra Fria


O jornalista e escritor Fernando Morais é autor de dez livros. Destes, apenas quatro são biografias. O que, no entanto, não impediu que o autor ficasse conhecido como um dos principais biógrafos do país. “Não me importo com a imprecisão. No fundo, faço o que todo jornalista gostaria de fazer no cotidiano das redações: apurar com exaustão o assunto, dispor de tempo para escrever da melhor maneira possível e dispor de espaço para publicar”, explica o autor, que já recebeu três vezes o Prêmio Esso de Jornalismo. Seu livro mais recente, Os Últimos Soldados da Guerra Fria, conta a história de um grupo de cubanos infiltrado nas organizações anticastristas dos Estados Unidos, numa trama eletrizante, que se aproxima dos thrillers policiais. Durante o bate-papo na BPP, Morais também falou sobre seus polêmicos personagens, entre eles Paulo Coelho, Assis Chateaubriand e Olga Benário, que lhe renderam obras controversas, mas de sucesso. “No Olga, eu conto, sem transformar numa bisbilhotice, que aos 37 anos [Luís Carlos] Prestes era virgem, nunca tinha ido pra cama com uma mulher. E as pessoas vieram me cobrar do por que eu toquei nesse assunto”. Na conversa, mediado pelo jornalista Luiz Andrioli, Fernando Morais também relembrou as primeiras leituras, realizadas na infância, quando morava na pequena Mariana, cidade do interior de Minas Gerais onde nasceu. “Sou o que sou, ganhei a vida, eduquei meus filhos e criei minha família, por causa de livros, estimulado pela intimidade com a biblioteca da minha casa primeiro, e depois, dos livros que fui comprando ou roubando”. Confira a seguir os melhores momentos do bate-papo.

De 1985 a 2012

Para mim é uma alegria redobrada participar deste projeto, pelo fato de ter estado aqui há 27 anos, com Leminski. Acho que a maioria do auditório não era nem nascida, seguramente. É muito bom estar aqui, rever este projeto tão interessante, que acabou sendo abandonado ao longo do caminho e que felizmente a biblioteca retoma neste momento. Mudou muito, mudou tudo. Subi até o terceiro andar, e ali no meio da escada vi uma foto minha assinando meus livros, naquela ocasião, em 1985. Mudou o autor, em primeiro lugar, que tinha barba preta, o cabelo pretinho. O Brasil mudou muito, e mudou pra melhor, certamente. Tem muita coisa que precisa mudar ainda, sobretudo na área cultural, na educação, que é a base de tudo isso. Em 1985 a gente estava saindo da ditadura militar, ainda era um Brasil com ressentimentos, com feridas muito abertas. Poder olhar pra trás, pra esses quase 30 anos, é bom, é satisfatório saber que em alguma medida a gente participou disso. Deu um grãozinho de areia pra mudar a cara desse país, esse país que agora está na moda — e felizmente está na moda. Lembro-me quantas e quantas vezes a gente rodava pelo mundo e só tinha notícia de massacre de criança, de massacre de índio, de brutalidade contra pobre. Não que isso acabou, isso continua, mas já não é mais por isso que o Brasil é conhecido.

Formação como leitor

Sou filho de uma família modesta. Meu pai era bancário e depois acabou virou um alto executivo de banco. Mas sem virar banqueiro, foi empregado a vida inteira. Ele era um homem muito culto, muito refinado intelectualmente. E veja que curioso: eu imaginava que minha casa era enorme. Quando voltei a Mariana [cidade natal do autor, em Minas Gerais] anos depois, pedi a atual proprietária para entrar na casa, e é impressionante, era uma casa modestíssima. Não sei como guardei na minha memória que eu vivia num casarão que, na verdade, cabe nesse palco. E além de pai, mãe e nove filhos, havia uma quantidade monumental de livros. Meu pai deixou pouca coisa material para os filhos, mas quando ele morreu, eu disse que queria os livros, eram mais de 2 mil, uma biblioteca expressiva por ser privada. Estou convencido de que sou o que sou, fundamentalmente, por causa desses livros. Comecei a ler muito cedo e, logo que aprendi a ler, lembro que meu pai começou a mudar os livros de posição nas estantes. Ele punha nas estantes mais altas os livros que criança não devia ler. Livros que falavam de sexo, por exemplo. Estou convencido de que foi essa intimidade tão precoce com os livros que me levou a gostar de ler. E não se aprende a escrever sem ler. Não conheço nenhum bom autor que não seja um leitor voraz. Acho que ali adquiri o gosto pela leitura, e a partir daí, o prazer de escrever. Um prazer doloroso. Sofro muito pra escrever. A alegria só vem depois que o livro fica pronto. Não é uma figura de retórica por estar dentro de uma biblioteca, mas eu sou o que sou, ganhei a vida, eduquei meus filhos e criei minha família por causa de livros, estimulado pela intimidade com a biblioteca da minha casa primeiro e, depois, dos livros que fui comprando.

Do jornal para o livro

Desde meu primeiro livro até este, Os últimos soldados da Guerra Fria, todos são grandes reportagens. Tem gente que faz o mesmo gênero que eu e se envergonha. É mais nobre dizer que é escritor, não repórter, como se isso fosse uma atividade menor. Primeiro, não acho que seja menor. Segundo, ainda que fosse, é isso o que eu faço. É esse o meu trabalho. É curioso porque acabei identificado como biógrafo, quando, na verdade, dos dez livros que publiquei, apenas quatro são biografias. Mas não me importo com isso, apesar da imprecisão. No fundo, faço o que todo jornalista gostaria de fazer no cotidiano das redações. Apurar com exaustão o assunto, dispor de tempo para escrever da melhor maneira possível, e dispor de espaço para publicar. Isso é uma ilusão, uma utopia, porque no jornalismo cotidiano você não dispõe nem de tempo para pesquisar com profundidade e nem de espaço para publicar. Hoje em dia, mesmo nos grandes jornais, matérias de mais de 80 linhas têm que ser autorizadas pessoalmente pelo dono do jornal. Eu sou de outro século. Lembro-me da reportagem que fiz sobre a construção da Transamazônica, em 1970, na verdade meu primeiro livro. O Jornal da Tarde publicou essa reportagem durante uma semana, num caderno com quatro páginas diárias. Hoje em dia nem a derrubada das Torres Gêmeas, a invasão do Iraque pelos Estados Unidos ou a morte do Kadhafi justificariam quatro páginas diárias durante uma semana no jornal. Talvez por isso me tornei autor de livros, para publicar aquilo que o jornalismo diário já não comportava mais. Meus livros, biografias ou não, são no fundo uma realização daquilo que eu não pude fazer na vida jornalística.

Processo de escrita

O jornalismo de hoje ficou muito preguiçoso. Nos livros, faço questão absoluta de descrever para meu leitor como o sujeito é. Fulano estava de tênis preto, meia listradinha, usava um casaco. Tem a barba mais ralinha aqui, mais fechada ali. E o ambiente: como é a casa do cara. Se tem gato, cachorro. Isso é algo irrelevante para a notícia, pode até ser, mas é tão melhor para o leitor. Acho que o leitor deve ser bem tratado. Não faço entrevista por telefone com ninguém. Os últimos soldados da Guerra Fria tem uma história que se passa metade em Cuba, metade nos Estados Unidos. Já tinha dado a pesquisa por terminada, quando surge uma informação nova. Eu tinha que falar com um personagem novo que ainda não estava na história, e morava em Sarasota, na Flórida. A grana que eu tinha para o livro já tinha ido embora, mas mesmo assim, peguei um avião, fui até a casa do sujeito para fazer a entrevista com ele. Para dizer se ele era gordo, magro, feio, bonito, mal-humorado, bem-humorado, tem gato, tem cachorro, vive numa mansão ou numa quitinete. Eu podia fazer por telefone, por internet, até por Skype, daria pra ver a carinha dele. Mas acho que o leitor merece mais do que isso. Quem aqui já leu algum livro meu, sabe. Todos os personagens, salvo exceções, têm descrições não só da atmosfera em torno dele, como dele mesmo.

Corações sujos


As pessoas me perguntam se eu escrevo pensando na adaptação do livro para o cinema. Eu digo não, escrevo pensando no leitor. Corações sujos estreia dia 1º de junho aqui no Brasil, e três semanas depois estreia no Japão. Belíssimo longa metragem, fiquei comovido quando vi. Olha que é uma história que ocorreu quando eu estava nascendo, e cada um dos personagens tem uma descrição. Como que eu consegui isso se muitos deles já morreram? Falando com as pessoas que conviveram com eles. Fui ao Japão duas vezes durante a pesquisa desse livro, para desenterrar perfis de personagens, saber como o sujeito era, o que comia, como vivia.

Spike Lee

Enquanto a gente vinha pra cá, você me perguntou da história do Spike Lee, que eu acho ser um indicador desse boom brasileiro, dessa curiosidade que o Brasil novo, sobretudo do Lula pra cá, sem desdém a nenhum antecessor dele. Sou vizinho e amigo do Fernando Henrique
Fernando
Cardoso, mas na verdade esse boom surgiu a partir do Lula. Até pelo fato de o Lula ter sido um operário, camarada sem dedo, sem instrução. Virar Presidente da República e conseguir incorporar ao mundo dos que tomam café da manhã, almoçam e jantam todo dia uma multidão de 40, 50 milhões de pessoas é incrível porque isso é quase a população da França. Então todos esses fatores acabaram contribuindo para que o Brasil entrasse na moda por razões, pela primeira vez em muito tempo, positivas. Tem muito problema ainda, muito pepino. Pepino na nossa área, pepino na educação. É impossível ter um país civilizado em que professor ganhe tão mal como ganha no Brasil. Fui secretário de educação do Estado de São Paulo, e sei da chaga, da tragédia que é a educação pública do Brasil. Sei que ainda tem muito abacaxi pra ser descascado, mas o lado positivo desse salto do Brasil acabou despertando o Spike Lee. Ele, que é cineasta americano, vem ao Brasil no mês que vem [maio] pra dirigir um documentário, um longa-metragem, sobre o Brasil, que tem um nome muito curioso, vai se chamar Go, Brazil, Go. E esse go tem um duplo sentido pra ele, que gosta de futebol. Tanto pode ser o go do up, do vamos, quanto o go do gol, de enfiar a bola lá dentro da trave. Eu nunca gostei de futebol, sou um mau brasileiro nesse sentido. Por sorte, vou participar do projeto. Ele me convidou para coordenar a pesquisa dele e participar do roteiro.

Olga

Lembro-me da discussão que tive com acadêmicos sobre o Olga. No livro, eu conto, delicadamente, respeitosamente, sem transformar numa bisbilhotice, que quando Prestes e Olga vão pra cama pela primeira vez, ele já tinha 37 anos e ela 20. Ela já tinha dormido com um monte de gente, era uma alemã de Berlim do começo do século XX, e Berlim, naquela época, era o centro do mundo. Antes do nazismo, obviamente, Berlim era o centro das grandes mudanças comportamentais, então ela já tinha uma vasta experiência. Enquanto que, aos 37 anos, o Prestes era virgem, nunca tinha ido pra cama com uma mulher. Conto isso no livro respeitosamente, mas conto. E as pessoas vieram me cobrar por conta disso. Sobretudo os comunas, meus queridos amigos do partidão. Falaram que o fato de ele ser ou não virgem aos 37 anos não mudou em nada a história do movimento operário no Brasil. Respondi que pode não ter importância para você, mas pra mim tem, e essa é a minha história. Acho importante, quando se está escrevendo uma biografia, saber que uma das figuras mais importantes da história da politica brasileira, aos 37 anos, nunca tinha estado com uma mulher, e foi dormir com uma menina que já tinha horas de voo para pilotar um Jumbo. E acho importante dizer que o Prestes me contou isso espontaneamente, sem que eu tivesse perguntado. Se essa história estivesse sendo apurada pela minha mulher, que é historiadora, certamente essa informação teria sido descartada. Acredito que toda profissão, seja ela qual for, acaba adicionando uma natureza adicional. Um bom alfaiate é capaz de pegar um tecido e de olhos fechados, falar se dá um bom terno. Um bom mestre de obras é capaz de pegar um tijolo, e de olhos fechados, dizer se rende uma boa casa. O jornalista adquire uma natureza de ver coisas que as pessoas não veem.

Subjetividade

O que são os Evangelhos? Não são nem versões, são visões diferentes do mesmo fato. Não há nada mais subjetivo do que a objetividade. O simples fato de você ter escolhido determinado tema já é algo subjetivo. Por que eu escrevi um livro sobre Cuba 40 anos atrás, e não sobre o Vietnã? Já tem uma subjetividade aí. E isso vale para rigorosamente tudo. Eu abro o Olga, na apresentação do livro, falando que aquela é a minha história. Se você, na mesma época que eu, estivesse fazendo um livro sobre Olga Benário, provavelmente sairia um livro diferente. Porque você é diferente de mim, seu olho é diferente do meu. Sua formação é diferente da minha, e isso vai se refletindo na sua vida inteira, em todas as suas escolhas.

ACM

Estou devendo até hoje para os meus leitores a biografia do Antônio Carlos Magalhães. Em todo lugar que eu vou, todo mundo me perguntam sobre isso. Mas por que eu deixei de escrever a biografia do ACM e escrevi Os últimos soldados da Guerra Fria? Porque eu vou escrever o ACM em algum momento. Estou esperando o defunto esfriar e o espirito subir, para daí entrar no jogo. Se você for ao meu escritório, em São Paulo, vai ver que tem caixas e caixas sobre coisas que pretendo escrever. Meus planos são ambiciosos, quero chegar aonde chegou Oscar Niemeyer, 104 anos em lua de mel.

Paulo Coelho

Existem outras duas biografias do Paulo, inclusive uma escrita pelo Juan Arias, jornalista espanhol, correspondente do El Pais no Brasil. Não tem nada a ver com o meu livro. Não fala de satanismo, não fala de homossexualismo, não fala de maconha, cocaína, heroína, não fala de induzir namorada ao suicídio. É um livro mais suave, mais parecido com as coisas que o Paulo escreve. Muita gente deixou de ler O Mago, a biografia que fiz do Paulo, supondo que fosse um livro parecido com as coisas que ele escreve, coisas mais suaves, que falam mais à alma das pessoas. Mas não fiz este livro. Fui desenterrar os defuntos que tinham lá no fundo das catacumbas dele. De apagar cigarro na perna de namorada, de induzir namorada ao suicídio, de três relações homossexuais seguidas para saber se era ou não era gay. Num dia ele decide se matar, se suicidar. Ele era garoto, e de madrugada lacra as portas e janelas da cozinha da casa dos pais. Na hora de acender o gás, para morrer, dá uma paranoia, porque uma coisa é pensar em morrer, outra coisa é estar diante da iminência real de ir embora, de fazer o check-out. Ali ele se apavora. Porque ele tinha uma versão de que quando você decide morrer, um anjo da morte vem ao mundo, e só volta se levar uma alma. Daí ele pega o cachorro da casa e passa uma faca de cozinha na garganta do cachorro e pronto, está resolvido. Eu publiquei isso no livro e o Paulo ficou horrorizado. Quando Paulo leu o livro, ele ficou dois, três meses sem falar comigo. Numa entrevista pra televisão italiana, ele disse que, lendo o livro, percebeu que nem ele mesmo sabia que era assim.

Motivação


Eu estava querendo fazer um livro revelador. Quem é este brasileiro que é a pessoa que mais vende livros no planeta? Já vendeu 160 milhões de livros. Sei como é duro vender livro, o suor que é vender 1000 livros, e esse cara me vende 160 milhões no planeta inteiro. E aí descobri um personagem espantoso. A vida dele, que eu supunha ser uma vida absolutamente água com açúcar, água de flor de laranjeira, como se diz em Minas, é uma sucessão de tragédias religiosas, familiares, sexuais. Tudo. É um personagem espantoso. É o meu livro de maior sucesso fora do Brasil, e já não tenho mais a vaidade de supor que a razão do sucesso seja porque eu o escrevi. Não. Porque é um livro revelador, sobre um personagem planetário. Se você for a Beirute, a Amsterdam, a Kuala Lumpur, tem Paulo Coelho à venda em tudo quanto é lugar. Por que, antes de ter feito a biografia, eu nunca havia lido Paulo Coelho? Eu sou ateu, não tenho nenhuma convicção religiosa. Daí li o primeiro, li o segundo e pensei já saber do que se trata, não precisava ler os outros. Ele escreveu 20 e tantos livros. Agora, de uma hora para outra, descubro que o cara que escreve isso teve uma vida exatamente oposta. É um filão de ouro, um presente para o autor. A história real de Paulo Coelho é um presente para um autor de biografia.

Cláusulas restritivas

Todo mundo tem clausulas restritivas. Tem coisas que a pessoa não confessa nem no banheiro com a luz apagada e a porta trancada. Então, a primeira coisa que faço quando vou fazer um livro sobre alguém é dizer para os familiares (quando o biografado já morreu) o seguinte: “vocês não lerão os originais”. Lembro-me de quando fui propor ao senador Antônio Carlos Magalhães escrever a história dele. À primeira vista, ele se animou, queria saber quanto custaria. Fiquei surpreso. Ele disse que alguém tinha de pagar a passagem de avião, meu hotel em Salvador. Respondi que isso era conversa minha com meu editor e que o livro não custaria nada para ele. Daí deixei bem claro que ele não iria ler os originais. Na hora que falei isso, ele se levantou, vestiu o paletó e disse “passe bem, não tem livro”. Quinze dias depois, ele me ligou e falou que topava mesmo não lendo. “Eu não me envergonho de nada do que fiz, nem das coisas erradas”, falou. São as cláusulas restritivas, todo lugar tem.

Pesquisa

Varia de livro pra livro. Neste livro mais recente, fiz tudo sozinho. Tudo, tudo. Tem umas 50 entrevistas, mais ou menos, e fiz todas, até por um certo egoísmo. Achei que era bom demais para delegar para alguém. Mas quando a lista de entrevistados é muito grande, eu contrato freelancer. Se olhar a lista de entrevistados do Chatô, tem mais de 200 pessoas, espalhadas por todo o Brasil, e até pelo exterior, porque Chateaubriand é um personagem com uma história muito fragmentada do ponto de vista geográfico. Dos confins da Amazônia até a fronteira do Uruguai, tem a impressão digital do Chatô. Se eu fosse fazer as entrevistas todas sozinho, provavelmente estava até hoje na pesquisa. Nada substitui o olho do autor. Mas o ideal seria que eu pudesse fazer todas as entrevistas. Paulo Coelho, por exemplo, não dava para eu fazer tudo. Tinha entrevista no Irã. Como é que faz? Passagem, visto de entrada, tradutor. Aí descobri que tinha um repórter do Estadão, o Lourival Sant’Anna, trabalhando em Teerã. Mandei um e-mail para ele, explicando que estava fazendo um livro sobre o Paulo Coelho, e que tinha um rolo dele com um editor iraniano, que até foi preso e tal. Queria saber se o Lourival topava entrevistar esse editor pra mim, além do Ministro da Cultura. Topou e entrevistou.

Dilemas éticos

Já passei por isso, e não é raro. Na biografia do Paulo, por exemplo. Dei umas travadas, de vez em quando, porque estava com um conflito ético. Ele morava numa cidadezinha minúscula no sul da França. Aluguei um apartamento no único hotel da cidade, modestíssimo. O Paulo em geral acordava às oito da manhã. Eu grudava nele e só o largava na hora em que ele fosse dormir, isso durante dois ou três meses. Estou em casa escrevendo, e aí começa a me bater na cabeça o seguinte: na hora em que vinham as informações cabeludas, eu ficava pensando. Será que eu tenho o direito de revelar publicamente um negócio desses? Coisas que a nossa cultura condena. Fazer essas revelações de um cara que foi tão generoso comigo, que não abriu só a casa dele, abriu a alma dele comigo, e aquilo me deu um mal estar que minha mulher percebeu. E eu dizia que estava incomodado com a perspectiva de tornar públicas informações tão íntimas e tão “negativas” sobre um cara que se entregou para mim, sem nem me conhecer. A gente nunca tinha se visto na vida. Daí minha mulher disse que eu estava querendo submeter o leitor a algo que nem o Paulo Coelho me pediu, que é a censura. Eu não tinha o direito de fazer isso com o leitor. O Paulo não me pediu. Ele podia falar “eu aceito, desde que você não fale das minhas relações familiares”, que também é um negócio de arrepiar os cabelos, barra pesada. Negócio para psicanalista passar a vida inteira estudando, as fantasias dele com o pai e a mãe. Mas o Paulo não pediu, não impôs nenhuma cláusula restritiva. E acabei resolvendo.

Invisível perante o personagem

Acho muito difícil a pessoa agir com absoluta naturalidade com o biografo no pé. Mas vou confessar crimes aqui. Às vezes faço coisas que não são eticamente recomendáveis. Estava em Madri, trabalhando com o Paulo em O Mago. Como era a editora que estava pagando, eu ficava nos mesmos hotéis em que ele ficava. Claro que ele ficava na suíte, com cascata artificial e filhote de jacaré de plástico, como diria Nelson Rodrigues. E eu ficava num apartamento normal. Um dia subimos pro quarto dele, depois do trabalho, porque Paulo queria tomar um banho e enquanto isso eu fiquei olhando e-mail, tirando notícias do Brasil pela internet, no notebook dele. Ele enfiou a mão no bolso e tirou uma carteira, dessas gordas, cheia de dinheiro, de documento. Deixou-a ali e foi pro banheiro. Eu com o ouvido antenado lá, ouvi o barulho do chuveiro, da porta de correr fechando. Peguei a carteira dele e comecei a bisbilhotar. E vi uma bula de remédio, cujo nome não me lembro. Anotei o nome do remédio na palma da minha mão, voltei pro meu quarto e mandei um e-mail para o meu médico, em São Paulo. “Quem toma tal remédio assim e assim, tem o quê?” O médico respondeu que era pra psoríase, uma doença de pele. Eu nem sabia que o Paulo tinha isso. Depois ele me perguntou como que eu tinha descoberto. Contei e ele riu. Embora não fosse nada grave, não era algo que ele iria me contar.

Lula

Estava no encalço dele há dez anos já, desde que ele se elegeu pela primeira vez. Tenho uma relação muito antiga com o Lula, anterior à vida politica dele, do tempo que ele era sindicalista. Eu estava no sindicato na noite em que a tropa de choque invadiu. Mas, depois que ele se elegeu presidente, me afastei um pouco. Agora, um ano atrás, menos até, a gente acabou se entendendo para eu fazer um livro, contando da saída da prisão em 1980 até a entrega do governo para a Dilma em 2011. É uma matéria só de bastidores, só de informação de subsolo. Estou ouvindo várias pessoas, não só ele. É muito complicado fazer história de gente viva, e preciso tomar um cuidado muito grande, porque eu gosto muito do Lula. Não quero que isso interfira no trabalho, mas aparentemente ele também não quer que seja um livro chapa-branca. Desde o começo ele está dizendo para falar com fulano, que é inimigo, vai falar mal, que seria bom ouvir. Acho que a doença deixou ele um pouco mais reflexivo.

Cuba

Muita gente me cobra por apoiar uma ditadura que está há 50 anos no poder. Não sou um defensor incondicional de Cuba, mas escolho os fóruns onde exponho minhas restrições a Cuba por uma única razão: Cuba é um país que está em guerra, há 50 anos, com a maior potência militar e econômica da humanidade, os Estados Unidos. Se os EUA invadiram o Iraque, do outro lado do planeta, que 99% dos americanos não sabem nem onde fica ou que língua fala, é fácil imaginar o risco que corre alguém a 160 km. Um míssil vagabundo, de quinta categoria, destrói Havana. Em seis minutos, eles conseguem colocar 200 caças bombardeio sobrevoando Cuba. E já fizeram várias vezes isso ao longo desses 50 anostambém. Invasão formal (Baía dos Porcos), atentados a bomba em hotel, a fim de minar a indústria turística que estava salvando a economia cubana. Acho que a liberdade de imprensa é um valor universal, não cabe adjetivação, e pelo fato de eu ter convivido oito anos com a presença física do censor na redação, me faz saber da tragédia que é a inexistência de liberdade de expressão. Está havendo mudanças, econômicas, por enquanto. No furor da Revolução Cubana, cujo radicalismo só guarda semelhança com a Revolução Russa de 1917, eles estatizaram tudo. Frequento Cuba desde 1975, já fui não sei quantas dezenas de vezes para lá. Barbeiro é estatal, carrinho de pipoca é estatal, carrinho de batata frita é estatal. Você criar um ministério para administrar carrinho de pipoca não pode dar certo. Mas está acabando, estão privatizando as coisas que têm que ser privatizadas.

Mudanças politicas

Não tenho esperança que aconteça nenhuma mudança de natureza politica enquanto não acabar o bloqueio americano. Pode ser, não sei. Para mim vai ser um espanto. Porque converso com todo mundo, do [Ricardo] Alarcón até o povo da rua, há quase 40 anos, e esse convívio que acumulei ao longo do tempo me dá o direito de supor que não haverá mudança de cunho politico enquanto não acabar o bloqueio, uma das coisas mais brutais e indecentes que já se viu de um país contra outro. Nunca antes neste planeta um país resistiu por tanto tempo à brutalidade americana, nem o Vietnã. É preciso ficar claro para todos que a Revolução não engata marcha à ré. O melhor é retirar o bloqueio, fazer as coisas pacificamente, para não ter que engolir mais uma derrota. Derrota para eles, os gringos de cabelos loiros e olhos azuis.