Teatro | Mesmas coisas

Música do acaso

A partir de um livro inédito de Manoel Carlos Karam, projeto teatral realizado em Curitiba regasta a proposta estética do artista, que desenvolveu enredos não lineares, fragmentados e em sintonia com o nonsense 

Luis Izalberti

Uma década após a morte de Manoel Carlos Karam, a obra do autor é cada vez mais cultuada e, no momento, adquire visibilidade por meio de uma iniciativa centrada nas artes cênicas. Mesmas coisas, título de um livro inédito de Karam sem data para publicação, dá nome a um projeto que envolve ensaios abertos, leituras, serenatas, um filme, a publicação de uma revista e encenações, algumas realizadas dentro da programação da 26.ª edição do Festival de Curitiba. Também está no ar um site, o www.mesmascoisas.art.br, que disponibiliza informações a respeito da proposta, incluindo imagens das ações e até depoimentos de escritores brasileiros sobre o legado de Karam. 

Joca Reiners Terron afirma, no texto veiculado no site Mesmas coisas, que Karam deixou uma obra das mais complexas, alegres e provocativas da literatura brasileira dos anos 1980 para cá. “Por sua capacidade de extrair lógica do caos cotidiano, livros como Encrenca, Cebola e tantos outros pertencem ao aqui e agora do século XXI”, comenta Terron. Em sintonia com o ponto de vista de Terron, as encenações de Mesmas coisas — mais que meramente adaptar o texto literário — dialogam com a proposta estética do artista que desenvolveu enredos não lineares, fragmentados e em sintonia com aquilo que teóricos definem como nonsense.

                                                                                                                               Paula Moraislow
Mesmas Coisas

A atriz Michelle Pucci durante performance do projeto Mesmas coisas.

O projeto, que levou o texto literário inédito para os palcos, conta com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Curitiba e tem Isadora Flores na direção de produção e a participação do músico Marc Olaf, entre outros integrantes. A atriz e iluminadora Nadja Naira é a diretora da montagem. Há uma década ela trabalha com textos de Karam — já realizou leituras públicas de Encrenca e de Comendo bolacha Maria no dia de São Nunca. E a idealizadora da proposta é a atriz e cantora Michelle Pucci. Há alguns anos, Michelle estudou a obra de Karam, tema do seu trabalho de conclusão do curso de bacharelado em Letras, na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Com orientação da professora e escritora Luci Collin (que também está na equipe de Mesmas coisas) e a contribuição de Nadja na preparação, direção e ensaios, a defesa do trabalho acadêmico foi a interpretação de um monólogo que defendia Karam com suas palavras e trechos de seus livros. “Anunciamos [o trabalho de conclusão do curso] como se fosse uma peça de teatro. Tinha cartaz na reitoria, público, aplausos”, conta Michelle. 

Divulgar o legado
Um dos desafios dessa proposta, de acordo com as integrantes, é representar as obsessões de Karam, desde a preocupação com objetos — a bolinha de papel, o extintor de incêndio, o dicionário, etc. — até termos, abordagens e temas recorrentes. “As palavras-chaves que nos orientam são obsessão, farra, jogos e experiência”, afirma Michelle. “Farra é encontrar as pessoas e convidá-las para farrear conosco. É o que a gente está fazendo: encontros de farra”, completa. 

E para participar dessa “farra”, de acordo com Nadja, não é necessário ter conhecimento ou contato prévio com a obra de Karam. Até porque Mesmas coisas tem, entre outras finalidades, divulgar o legado do escritor. Para atingir o objetivo, a trupe optou pela estratégia de realizar ensaios abertos. “A intenção é aproximar, de várias maneiras, a obra do Karam do público”, diz Nadja. Trechos do livro foram musicados e apresentados ao público — em cima da carroceria de um caminhão — em três praças de de Curitiba: Nossa Senhora da Salete, Santos Andrade e na Osório. “Uma experiência, ótima, que pretendemos repetir”, comenta Michelle.

Michelle e Nadja fazem questão de destacar o acaso como um elemento fundamental neste projeto envolvendo uma obra do Karam. “É um acaso que só aparece quando há condições propícias. Ele não é um erro, mas um treinamento em que a gente cria condições para que o acaso apareça”, teoriza Nadja. Ela acrescenta que aproveitar o acaso tem relação com o processo criativo do escritor, que trabalhava em suas obras sem saber exatamente onde as suas narrativas iriam chegar, muitas vezes conduzido por uma espécie de “música do acaso”.

Catarinense de Rio do Sul, Karam fixou residência em Curitiba desde 1966. Na capital paranaense, escreveu e encenou peças, atuou na imprensa e escreveu obras de ficção, entre as quais Pescoço ladeado por parafusos (2001), Encrenca (2002), Sujeito oculto (2004) e Algum tempo depois, publicada postumamente há três anos pela Arte&Letra. Nadja lembra que o escritor costumava incentivar qualquer iniciativa que apropriasse e recriasse os seus textos literá- rios — o que acontece agora com Mesmas coisas. “A literatura do Karam joga a gente para o mundo, joga a gente pra fora e depois a gente volta pra ele, inevitavelmente. Você lê o Karam, larga o Karam e volta para o Karam. Para as mesmas coisas”, afirma Michelle.

                                                                                                            Reprodução
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