Roteiro Literário | Paulo Leminski

Besta dos Pinheirais

O Cândido publica um fragmento do Roteiro Literário — Paulo Leminski, escrito por Rodrigo Garcia Lopes. Projeto editorial da Biblioteca Pública do Paraná, cada título apresenta um ensaio e uma lista com os locais frequentados pela autora ou autor paranaense retratado na obra                                                                                                                                                                                                                                    
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    Rafael Sica
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Impossível falar de Leminski sem falar também da cidade onde viveu boa parte de sua vida: onde nasceu, estudou, trabalhou, cultivou amizades, se divertiu, enlouqueceu, amou, sofreu e, sobretudo, criou. Ele mantinha com Curitiba uma relação visceral, mas sob foco crítico constante. Leminski, como escreveu seu biógrafo e amigo Toninho Vaz, “foi um dos mais mordazes e críticos que a cidade já conheceu”. “Detesto cidades fáceis de ler. Só amo cidades que já sei de cor”, anotava o poeta em “Ler uma cidade: o alfabeto das ruínas”. Considerava-se “um ser essencialmente curitibano”. Numa entrevista à Gazeta do Povo (27/11/1988), quando voltou à cidade depois de quase um ano em São Paulo, refletia, aparentando certo alívio: “Eu jamais consegui morar em outro lugar por muito tempo. [...] Sob o ponto de vista afetivo deixei muito claro que eu nunca saí de Curitiba. Pinheiro não se transplanta”. E acrescentava: “Curitiba é que nem chinelo velho. Sapato novo aperta no pé”.

Curitiba foi não só seu espaço de guerrilha e atuação, mas também fonte e inspiração para artigos e alguns contos, como “Distâncias”, “De frente para a luz”, “O segundo futuro”, “El día em que me quieras”, “Solange tudo bem e seus eletrodomésticos”, “Vida de cão e outras vidas” (entre os publicados em Gozo fabuloso), além de inéditos em livro. Também aparece, de forma subliminar, em poemas como “o pauloleminski”, “Ainda vão me matar numa rua”, “minha mãe dizia”, “um dia”, “dois loucos no bairro”, “Acenda a lâmpada às seis horas da tarde” (também uma canção, “Luzes”), “meu coração de polaco voltou”, “sete dias na vida de uma luz”, “Cine Luz”, “Transar bem todas as ondas”, “tamanho momento”, entre outros. Curitiba é tematizada mais explicitamente em dois deles, “Curitibas” e neste:  

Imprecisa premissa

(quantas Curitibas cabem
numa só Curitiba?)

Cidades pequenas, 
como dói esse silêncio,
cantilenas, ladainhas,
tudo aquilo que nem penso,
esse excesso
que me faz ver todo o senso, 
imprecisa premissa, 
definitiva preguiça 
com que sobe, indeciso, 
o mais ou menos do incenso. 
Vila de Nossa Senhora 
da Luz dos Pinhais,

A esfinge Curitiba, a capital mais fria do Brasil, sempre retorna à mente deste “mestiço curitibano”. Como não ficar fascinado por uma cidade multiétnica (e onde até neva, dizem), cuja paisagem urbana era dominada pela araucária, essa árvore estranha que teria certamente “encantado Baudelaire”, segundo Claude Lévi-Strauss? Numa das cartas, Leminski escrevia: “tudo de vento em popa/ nesta cidade simbolista/ quieta/ caipira/ metrópole tímida/ terra de bares e longas encucações/ fria/ com poentes longos como agonias/ não brasileira/ de gente que não é pobre nem rica/ média/ mediana/ medíocre” [...] Havia mesmo uma melancolia, expressa já nos anos 70, pelo fato da cidade estar crescendo rápido demais, acusando “o desaparecimento da cidade antiga, soterrada pelas modernas fachadas de vidro raibã” (“Paisagem urbana: espécie em extinção”). Um poema publicado no Correio de Notícias, também inédito em livro, resume seus sentimentos contraditórios sobre seu crescimento (ambiguidade acentuada pelo duplo sentido da palavra “muda”):

Alguma coisa em mim 
não quer que Curitiba mude
Eu quero a luz 
Eu quero a vila 
Eu quero o dia  

Eu quero uma noite clara 
Eu quero uma rua limpa 
Eu quero música caipira 
Eu quero tudo tudo tudo 
que me deste, Curitiba, 
Alguma coisa em mim 
não quer que Curitiba mude. 

Muda, Curitiba, muda, 
muda esse seu jeito de
nevar no inverno
e no coração da vida. 
Muda, Curitiba, muda, 
muda para o mundo, Curitiba

Curiosamente, a cidade marca presença em sua primeira e última publicação em vida. Seu primeiro livro, Quarenta clics em Curitiba (1976), dialogava com as fotos de Jack Pires colhidas pelas ruas da capital pós-êxodo rural provocado pela geada de 1975. Já a revista Nossa Linguagem, escrita para a Edições Leite Quente (publicação da Fundação Cultural), era uma reflexão sobre os falares e costumes da capital paranaense. Aliás, a identidade curitibana de Leminski já se revelava em seu forte sotaque. A diferença é que Leminski gesticulava bastante enquanto falava, inquieto. Falava pronunciando todas as sílabas das palavras: leite quente e não lêitchi quêntchi.  

Há duas teses para o sotaque curitibano: por um lado, incorporou a fala dos tropeiros (tanto os gaúchos que passavam pela então Vila da Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba, vindos de Viamão rumo a Sorocaba, quanto os curitibanos que iam buscar gado no Uruguai e Rio Grande). Para outros historiadores, como Erichsen Pereira (em Uma história de caminhos) e Hélio Puglielli, a maneira de falar do curitibano ocorre por uma questão didática. Sendo uma cidade multiétnica, o sotaque típico curitibano seria decorrência da necessidade dos que já estavam na cidade se comunicar com os muitos imigrantes europeus no dia a dia, silabando bem as palavras e falando mais devagar. Leminski refletia: “Conservamos um modo de falar sui generis, calmo, escandido e correto que nos foi legado pelos nossos avós de muitas gerações, no dizer de um sábio local. A fala curitibana é desornada de aparatos musicais berrantes. É seca e concisa, como o conjunto de pertences de um tropeiro, como a araucária imóvel ao vento, como o gosto do pinhão, nossa fruta totêmica. O curitibano não fala bonito. Fala exato. Ou, como diz o orgulho local da cidade que teve a primeira Universidade do país: a gente fala como se escreve”. 

Em Nossa Linguagem, Leminski apontava algumas características do comportamento e do jeito de falar curitibano: observação atenta do seu interlocutor, certa desconfiança e recato, excesso de discrição, “aversão natural a transbordamentos desnecessários”. “O curitibano é cauteloso, meio arisco. Mas não tímido: analítico”. Como não reconhecer, nessa descrição das características que Leminski observa na linguagem curitibana, traços de sua própria poesia, concisa, feita de unidades discretas (versos curtos), de fala ritmada e bem escandida, algo desconfiada, avessa a grandiloquências, verborragia e transbordamentos líricos? 

A mística imigrante do trabalho
Em termos de diáspora polonesa pelo mundo, Curitiba só perde para Chicago (EUA). Com a autoridade de ter nascido na cidade, ser neto de imigrantes poloneses, misturado com sangue indígena e negro, Leminski batia pesado na cultura local. Achava-a moralista, careta, avara, fria, centrada no trabalho e no consumo. Muito antes de ficar famosa como “A República de Curitiba” (em reação à base de operações da Lava-Jato), dizia: “Curitiba é uma cidade de caretas. Jamais vou virar estátua aqui porque tenho uma bagana no bolso. A minha missão é outra!”. Na época, ainda se dizia que Curitiba tinha só duas estações: o inverno e a rodoviária. Estas críticas vinham justamente quando ela virava cidade-teste para publicitários e produtos, cidade-modelo do país, destacada pelo seu planejamento urbano. Leminski perguntava, a certa altura dos anos 80: se Curitiba, a cidade mais classe média do Brasil, sumisse do mapa, que falta faria na cena cultural brasileira?

                                                                                                                                                                                                                                                                                                         Marciel Conrado
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Em “Culturitiba” ele procedia em seu diagnóstico cáustico: “A julgar pelo nível de vida e de recursos de grande parte de sua população, Curitiba deveria ter vida intelectual e artística, cultural e criativa, muitas vezes mais intensa do que esta vida vegetativa que está aí. Cidade classe média. Poder aquisitivo médio da população. Universidade e escolas em profusão”. Apesar de ter acesso a bens culturais, para Leminski Curitiba não devolvia, em termos de produção, o que comia. Quem está tão absorto em consumir, criticava, não sentia necessidade de produzir. “A classe dominante curitibana não devolve a mais-valia do único modo que pode fazê-lo: em produtos culturais”. Mesmo em 1989, em um artigo em defesa do jornal Nicolau, Leminski se referia à “medíocre pasmaceira jeca-tatu em que se transformou a vida sígnica da cidade”. É bom lembrar que, na época em que fazia essas críticas (anos 80), Curitiba tinha 1 milhão de pessoas. Hoje, 2018, tem quase o dobro. Resta a jornalistas e historiadores verificarem se o quadro descrito por Leminski mudou. 

Um dos motivos que Leminski alegava para esta broxice criativa era, segundo ele, a falta de tradições populares fortes, além da pouca presença do negro, ao contrário do que ocorreu do Rio de Janeiro para cima. O outro, uma de suas assumidas obsessões, ele batizou de “mística imigrante do trabalho”. “Quando o imigrante chegou aqui, ele só tinha um meio de se dar bem, trabalhando, evidentemente. E, trabalhando, o imigrante elaborou para si, seus filhos e netos uma ideologia centrada no trabalho”, escreve em Nossa Linguagem. “Quem sabe, o grande explicador do nosso modo de ser seja a mística do imigrante do trabalho. [...] No sul do Paraná e em Curitiba, especialmente, há um verdadeiro culto do trabalho, em detrimento dos aspectos mais lúdicos da vida. ‘Aqui se trabalha’ já foi slogan de um dos governos do Paraná [...]. Sul, Paraná e Curitiba não são compreensíveis sem uma noção bem clara do que significa a mística imigrante do trabalho”. Essa idolatria ao trabalho tinha, segundo ele, impacto direto na produção cultural. Em “Sem sexo, neca de criação” (republicado na coluna na Folha de S.Paulo) e outros textos, Leminski elaborava sua tese:

“Quem dá o tom a Curitiba é o imigrante. E o imigrante, entre outras coisas, desenvolveu a mística do trabalho. E a mística do trabalho está intimamente ligada à repressividade sexual, que é a principal responsável pela escassa produtividade cultural que a cidade tem demonstrado. A mística imigrante do trabalho é contra o prazer, contra o corpo, uma mística de tipo puritano, calvinista, que reprime o prazer para canalizar as energias todas do indivíduo para o trabalho material. Ela começa na exaltação da sublimidade do trabalho. E termina na negação e na repressão da vida sensorial, do lúdico, do erótico”.

A autofagia curitibana
Um dos reflexos diretos desta “mística imigrante do trabalho” é a famigerada “autofagia curitibana”, tese segundo a qual a cidade acaba matando ou sufocando, pelo silêncio, pelo desinteresse, seus artistas mais brilhantes. “A autofagia entre os curitibanos é tão grande que aqui nem inimizade prospera”, costuma-se dizer. Ou, como cravou a dupla Solda-Retamozzo: “Curitibano só fala bem dos outros pelas costas”.

Como exemplos de artistas “suicidados” pela cultura curitibana, Leminski mencionava o músico Lápis (1942-1978), o pintor Miguel Bakun (1909-1963) e o intelectual, ator e produtor Maurício Távora (1937-1986), entre outros. “Nascer com talento em Curitiba é coisa muito perigosa”, escrevia em sua coluna. “Claro que você lembra do caso de Miguel Bakun, pintor. Ele teve de se enforcar para, hoje, Curitiba e o Brasil reconhecerem que ali tinha um gênio”. O silêncio e o desprezo podem ser fatais para personalidades criativas e vibrantes. Onde o público, os interlocutores?, Leminski cobrava. “Não basta ter talento. Tem que ter gente te olhando, te provocando, te criticando, senão a gente não cresce”. Além disso, a desconfiança dos curitibanos com sua própria produção dava cada vez mais razão ao dito “santo de casa não faz milagre”. “Curitiba só cai quando é atacada por fora. A cidade passa a respeitar seus filhos depois que eles fazem nome lá fora. Aqui o cara cruza por você e não te dá valor. Um dia ele vai a São Paulo e alguém pergunta: Você é de Curitiba? Conhece o Paulo Leminski?”.


Rodrigo Garcia Lopes é poeta, romancista e tradutor. Escreveu Solarium, Visibilia, O trovador e Experiências extraordinárias, entre outros títulos.