Roteiro Literário | Helena Kolody

Sempre palavra

O Cândido publica um fragmento do Roteiro Literário — Helena Kolody, projeto editorial da Biblioteca Pública do Paraná. Cada título apresenta um ensaio e uma lista com os locais frequentados pela autora ou autor paranaense retratado na obra

Luísa Cristina dos Santos Fontes

Foto: Haralton Maravalhas
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Autocrítica e muito sensível à crítica, Helena Kolody (1912-2004) colecionou meticulosamente, durante a vida toda, as matérias publicadas a seu respeito; as primeiras, as mais significativas e algumas cartas compõem um álbum organizado por ela. Para que se perceba o nível de importância dada às críticas a seu trabalho, por causa de alguns comentários, abalada, deixou, por exemplo, de compor haicai por anos. Só voltou ao caminho do haicai por incentivo do escritor Paulo Leminski (1944- 1989), estudioso do gênero.

Em entrevista ao escritor e professor da UFPR Paulo Venturelli, Helena afirmou: “Sou tão sensível à crítica que, muitas vezes, por causa de certas coisas que foram ditas, deixei de fazer haicai. Eu não confio em mim, não tenho segurança no que faço. Ainda hoje. Veja, não sei quem foi, mas alguém falou que Ontem, agora (1991) é um livro de circunstância. Eu já fiquei com medo de voltar a escrever. Só fiz o Reika (1993) porque eles me deram o título daí eu tinha uns poemas prontos e me animei a criar outro livro. Mas fico retraída, pensando sempre que está na hora de parar”. 

O escritor Paulo Leminski muito a estimulou. Ainda jovem, começando a escrever, falou de seu espanto por Helena já fazer haicai em 1941. Ele estava acabando de descobrir este tipo de poesia. A amizade com Leminski começou quando foram vizinhos no Edifício São Bernardo, na Rua Dr. Muricy, em Curitiba, na década de 1960. Helena já era autora de uns dez livros e Leminski tinha cerca de 20 anos.

Convém observar que a trajetória de Paulo Leminski guarda paralelos com a de Helena Kolody. Ambos trabalharam como tradutores, como professores, apesar da origem ucraniana (de Helena) e polonesa (de Leminski), ambos mergulharam na cultura oriental.

Segundo destaca o crítico literário Miguel Sanches Neto, é a partir de Leminski que Helena Kolody sofre um processo de positivação nas letras paranaenses e brasileiras. Já Wilson Bueno (1949-2010) afirmou o seguinte: “Ela é em si um poema como ser humano, dessas raras pessoas que fizeram do ofício de viver uma arte”. Com Helena, segundo o jornalista Zeca Corrêa Leite, “surge uma das mais límpidas poesias do Brasil de hoje. Poesia extremamente comprometida com a vida, porque a poeta é a vanguarda da vida”. 

Formas breves
Quanto ao processo de criação, a “professora de Biologia” Helena Kolody expõe: “Escrevo por prazer. Às vezes, meus poemas afloram por inteiro. São os que chamo vivíparos (olha aí o meu vocabulário de professora de Biologia...) e são os melhores e geralmente estavam hibernando dentro de mim”. Para confirmar o que a autora diz, basta ler um de seus mais conhecidos poemas, “Sempre madrugada”: “Para quem viaja ao encontro do sol,/ É sempre madrugada”.

Outros textos poéticos, segundo ela, podem levar até dois anos para serem gestados, os poemas ovíparos, é só um núcleo que amadurece lentamente, a exemplo de “Dom”: “Deus dá a todos uma estrela./ Uns fazem da estrela um sol./ Outros nem conseguem vê-la”.

Os dois poemas foram publicados, respectivamente, em Sempre palavra (1985) e Poesia mínima (1986), obras em que Helena Kolody aborda, com rara sensibilidade e com o predomínio de formas poéticas breves, a metapoesia e a metalinguagem. Tudo o que Helena diz é poesia, quer pela forma rica e imprevisível, quer pela densidade da emoção, quer pela sutileza da intuição, ou ainda pela raridade da observação.

   Carlos Roberto Zanello de Aguiar (Macaxeira)
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Wilson Bueno autografa Mar paraguayo para Helena Kolody

“Dom”, por exemplo, é um de seus poemas mais citados. Helena contou que quando este poema nasceu, era só o primeiro verso. Dormiu dois anos em sua “gaveta de sapateiro” — gaveta em seu escritório em que guardava alguma ideia que aparecia, entre outras coisas, e em que também a escritora escondia por uns tempos os textos que não julgava suficientemente bons para virem a público. Guardou e esqueceu. Quando mais tarde o retomou, percebeu o que estava evidente: nem todos veem a sua estrela. Então trabalhou na ideia. E acabou fazendo o segundo verso assim: uns fazem dela..., mas não gostou do “faz dela”. Precisava experimentar outras fórmulas e chegou a este resultado que é o poema que temos hoje. Perfeccionista, assumia nunca ficar satisfeita, procurando sempre se aprimorar. Por vezes, voltava a formas antigas para se experimentar.

Estado de poesia
Para Helena, o nascimento de um poema vinha da inspiração, de um momento, de um estado de poesia. A maior parte de sua obra foi produzida na escuridão da noite. Por isso, tinha como companheiros de cabeceira um bloco de anotações e uma caneta. Aliás, rascunhar era uma prática usual da escritora, quer para publicações, correspondências, quer, ainda, para as tarefas do dia a dia. 

Posteriormente, burilava os poemas. 

O seu burilar significava, principalmente, cortar, o que sempre exige o debruçar-se sobre rascunhos. Muitos poemas antigos foram reduzidos, reescritos, decantados. Ao mesmo tempo, a escritora observou que a poesia, paulatinamente, surgia-lhe cada vez mais enxuta, mais essencial. 

O escritor Paulo Leminski sempre destacou Helena Kolody como “o poeta mais moderno de Curitiba”. Foi a primeira mulher a publicar haicai no Brasil, segundo ele, o primeiro poeta a fazer haicai no Paraná. Na verdade, em 1941, apenas poucas experiências no gênero foram desenhadas por Guilherme de Almeida. Em entrevista, Helena conta que se interessou pelo gênero através do Jornal de Letras e no aprendizado com a haicaísta paulista Fanny Dupré, com quem trocou correspondência e visitas (no livro Pétalas ao Vento, de 1949, Fanny dedicou um haicai a Helena). 

No tempo em que foram vizinhos, Paulo Leminski apresentou à poeta o movimento concretista de Haroldo de Campos por intermédio das revistas do movimento: Invenção e Noigrandes. Convém relevar este talento de Helena Kolody, de circular, com desenvoltura, entre todas as turmas literárias... o que acontece mesmo após sua morte. “Não lhe importam as revoluções estéticas, a migração dos Movimentos, o seu é um fazer ligado à inocência que só as grandes sabedorias abrigam e compreendem”, destacou Wilson Bueno.

Anos mais tarde, em 13 de junho de 1993, Helena Kolody e a escritora Alice Ruiz — companheira de Leminski durante 19 anos e mãe de seus filhos — foram homenageadas pela comunidade nipônica com o nome de haicaísta. Fato raro por serem ocidentais. Helena, Reika, e Alice, Yuuka (2004). 

Conforme explicação de Alice, o Ka dos dois nomes significa flor. Os prefixos Rei e Yuu são adjetivos, virtudes específicas da flor. Ambos apontam para formas de grandeza. Superlativos para quem pratica a poesia mínima. O maior da menor poesia (em sílabas). O crítico literário Rodolfo Guttilla destaca que uma das mais valorizadas qualidades do “haicai à brasileira” é a brevidade. Enfatiza também que, já em seu primeiro livro, Helena apresentou haicais que “denotam apuro formal de quem já dominava as regras abrasileiradas de composição do poemeto”.

Reika, publicado em outubro de 1993, é uma obra composta de haicais e tankas, em uma iniciativa de Nivaldo Lopes, num trabalho de tipografia manual, pela editora Ócios do Ofício, coleção Buquinista, da Fundação Cultural de Curitiba. Com projeto delicado, o livro tem ilustrações dos artistas Guinski, Denise Roman, Seto (1944-2008) e João Suplicy, e contou com a coordenação editorial de Cassiana Lacerda Carollo. Reika tem tiragem única numerada de 150 exemplares e foi uma edição comemorativa dos 81 anos de Helena nos 300 anos de Curitiba.

Reprodução
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Imagem de Helena jovem.

Tempo & Aprendizagem
Pois bem, Helena Kolody, brasileira de uma família de ucranianos, curiosamente, teve seu talento reconhecido na arte de composição nipônica. Mais do que dados de uma realidade mapeada em livros, as fronteiras que vemos aqui são reorganizadas numa tradução que supera quaisquer sotaques.

É bem possível também que estes livros — Poesia mínima e Reika — tenham o estatuto de uma presença para além do presente, o estatuto de uma presença transformadora, uma presença capaz de subverter a realidade para reinventá-la. O que, aliás, não obstante perturbador, é próprio do mistério que nos constitui e humaniza. À cifra desta derivação, uma reflexão apresenta-se problematizada na materialidade discursiva da totalidade de sua obra: a representação do tempo, aliás, questionamento do homem moderno.  

O procedimento sistematizado pela escritora tem sido descrito subliminarmente ao longo deste trabalho, déjà-vu nada fortuito. Assim, são temas recorrentes na lírica da escritora: o tempo, a solidão, a memória, a transitoriedade e a permanência, a viagem... Helena Kolody transformou sua sabedoria de vida em poemas cheios de luminosidade, ainda que seus temas possam ser densos e, por vezes, trágicos. Portanto, é admissível apontar três aspectos de sua verve literária: em primeiro lugar, a coerência conceitual no uso da palavra, sinal de uma nítida consciência verbal; segundo, a identificação com suas origens topográficas; e, terceiro, o vínculo de sua sensibilidade espiritual e estética com a inspiração sagrada, inequívoco indício de sua paixão pelo divino. 

Leu muito — poesia, é óbvio. Adorava Paulo Leminski e Alice Ruiz. Não dispensava Cecília Meireles, Drummond, Carlos Nejar e Pablo Neruda. Admirava as poesias satíricas de Emílio de Meneses. Entre seus livros, sobressaem quinze títulos de Cecília Meireles, alguns com dedicatória da autora para Helena Kolody, cinco de Andrade Muricy, dois de Baudelaire — em francês —, Drummond, Alphonsus de Guimaraens, Guilherme de Almeida, Mario Quintana, Manuel Bandeira, João Cabral... não surpreende o fato de serem quase todos livros de poesia e, entre eles, alguns de crítica literária. Carbono e diamante, conformações acordam um mesmo objeto, sem hierarquização deliberada, apenas regimentos diferentes que não necessariamente se confrontam. Pureza, resistência e riqueza. Acareação mesmo que no reflexo de um espelho. Nesse amálgama de leituras, repleto de significados, sobressai sempre o seu profundo compromisso com a visceralidade da experiência e das aprendizagens.


Helena Kolody nasceu em Cruz Machado, em 1912. Estreou com a coletânea de poemas Paisagem interior, em 1949. É apontada como a primeira mulher a escrever e publicar haicais no Brasil. Trabalhou como professora e escreveu e publicou vários livros de poesia durante a vida. Morreu em 2004, em Curitiba (PR).

Luísa Cristina dos Santos Fontes nasceu em Barra do Piraí (RJ). Professora aposentada da Universidade Estadual de Ponta Grosa (UEPG), é autora, entre outros, dos livros Anita Philipovsky — a princesa dos campos (Biografia, 2002), Literatura e mulher — das linhas às entrelinhas (Ensaios, 2002) e A literatura de autoria feminina em suas interdi(c)ções (Ensaios, 2015). O Roteiro Literário — Helena Kolody, de autoria de Luísa, faz parte de uma coleção idealizada pela Biblioteca Pública do Paraná, em que cada título traz um ensaio sobre a vida e a obra de um autor paranaense, além de uma relação de locais frequentados pelo escritor ou escritora. Vive em Ponta Grossa (PR).