Romance | A feira

Adriana Armony


A editora

Gostava de olhar o rosto do escritor enquanto montava nele: a expressão concentrada, os lábios tensionados em um círculo que se reduzia à medida que a respiração acelerava, à espera, os olhos sofrendo aos poucos o efeito tantalizante das pálpebras, as panturrilhas se contraindo, as pernas esticadas até o relaxamento dos membros, do rosto. Ela ia junto com ele, talvez apenas alguns segundos depois, retirando dos espasmos terminais o combustível final do seu desejo. As coisas então retomavam seus direitos: a cabeceira envernizada, os corpos no espelho do teto, o cheiro de esperma sob o aromatizante cítrico, todo o mau gosto de motel replicado num fim de tarde comum. Agora o rosto do escritor assumira a neutralidade do sono, com seu abandono inatingível. Ela abriu a bolsa que comprara na última viagem a Berlim e consultou a agenda: o jantar fora marcado para as 20:00. Não tinha muito tempo. Por alguns segundos, cogitou se deveria acordá-lo ou deixar um bilhete. Optou pelo bilhete, sempre uma ocasião melhor de exercitar a sedução, embora soubesse muito bem que, com escritores, o buraco era mais embaixo.

Revirou os papeluchos que sempre afloravam na sua bolsa quando ela precisava encontrar a chave ou o batom, até achar algum com espaço suficiente para algumas linhas. “Buraco mais embaixo”: se o escritor ouvisse a expressão, certamente não perderia o trocadilho, escorregando a mão por baixo da saia que ela acabara de enfiar e procurando com os dedos aquele que preferia. Na sua experiência, os escritores mais sutis eram os mais sacanas: reservavam para a realidade aquilo que sonegavam na literatura. Finalmente, encontrou um pedaço de papel que lhe pareceu digno. Rasgou a parte usada com o cuidado suficiente para parecer casual, mas não desleixada, e rabiscou as palavras: “Saindo mais cedo pra cuidar de você, querido. Reunião daqui a pouco. Te dou notícias mais tarde”.

Fora um percurso relativamente curto aquele que a levara dos personagens aos autores. Seu primeiro marido era uma réplica quase perfeita do protagonista da saga que lera aos 15 anos com irreprimível emoção: um empresário poderoso, de ossos grandes e coração de manteiga, mas apenas com os eleitos; um homem feioso e sagaz que, quando ferido, era capaz de uma crueldade constante e refinada. Foi o que aconteceu quando se separaram, embora houvesse os filhos, que refrearam um pouco sua fúria. Na verdade, com o tempo ela havia percebido que o marido não estava à altura do seu modelo literário. Então, seu interesse se voltara para os autores: se uma pessoa estava sempre aquém ou além de um personagem, os escritores eram capazes de controlar almas e destinos. Não a decepcionariam com uma constância enfadonha ou com mudanças inaceitáveis, próprias de quem não estava aprisionado eternamente nas páginas dos livros, porque estavam sempre prontos a criar novos mundos, que era o que realmente a fascinava.

Ia ser uma parada dura aquele jantar onde se decidiriam as principais linhas da Feira e ela precisava estar pronta, o que significava uma toalete que misturava poder e sensualidade e uma lábia com doses equilibradas de suavidade e pragmatismo. Ir ao salão estava fora de cogitação, mas daria um pulinho em casa, o tempo suficiente para preparar o corpo e o espírito. Precisava conseguir uma posição de destaque para o escritor. Era uma questão de honra que tanto podia ser vista como um ato de vaidade quanto de generosidade. Nesse caso, não fazia a mínima diferença: ela era uma amazona, montada no seu cavalo, pronta a defender seus ideais mais altos. Examinou-se no espelho em frente à cama, anotando mentalmente os principais pontos a corrigir (bolsas levemente arroxeadas sob os olhos, riscos engrossando na testa), antes de se voltar para olhar o escritor uma última vez.

A promessa da literatura

afeira
Mergulhada no edredom macio, Valentina sentia a felicidade escorrer dentro dela: um fio fresco e adorável que vinha do alto da cabeça, descia-lhe pelas costas, se espalhava pelos membros e terminava num lago de água doce nos pés alados. Tinha bebido um vinhozinho no jantar, acompanhando o penne com alcaparras que preparara assim que desligara o celular. Uma comemoração particular – ela as adorava. Nelito, seu amigo de longa data, acabara de confirmar sua participação numa mesa da Feira; talvez fosse sua grande oportunidade, e ela não a perderia. Seria a primeira vez que participaria de um grande evento, e riu ao pensar como era boba. Afinal, não era nada demais: seu livro tivera uma boa resenha e era “forte” – embora às vezes lhe doesse no peito a dúvida de que simplesmente fosse falso. Nessas horas, entrava num ralo de angústia e autocomiseração. Pegava os seus autores mais amados e lia-os com sofreguidão, até certificar-se de que ela mesma poderia ter escrito aqueles livros. Então emergia, pensava que era merecedora e, com os contatos certos, conquistaria uma posição na Literatura brasileira. “Escritora”, repetia a palavra para si mesma, baixinho, encantada com a própria voz. Desde pequena sonhara com aquilo, e agora que o reconhecimento estava próximo, mal podia acreditar. Já era vista como uma promessa, e precisava estar à altura.

Publicara seu primeiro romance por uma editora pequena, depois de dois livros de poesia em edição semiartesanal vendidos para poucos amigos, em recitais esfumaçados; e então a grande estrada da prosa se abrira a ela, tão grande e promissora como seus próprios cabelos, uma massa sedosa e castanha que costumava prender com um lápis sobre o alto da jovem cabeça. Tinha um rosto anguloso e olhos levemente estrábicos e sonsos.

De resto, era um tipo comum. Sempre morara na zona sul do Rio de Janeiro, estudara em bons colégios e fora criada por pais medianamente atenciosos. Vivera sua adolescência, não tão distante assim, encarapitada no mastro de um navio de onde observava os dramas humanos, anotando-os para utilizá-los no futuro. Sentia uma ponta de inveja dos amigos filhos de famílias desajustadas, que viviam largados, consumiam drogas e se afogavam na vida noturna, ou que se entregavam a paixões desesperadas. Ela também se apaixonara algumas vezes, mas seu abandono ao sentimento era parcialmente neutralizado por um olhar duplo, malicioso e inocente, que narrava ao mesmo tempo que vivia, enquanto que, por cima de tudo, soprava o vento frio da eternidade.

E eis o que ela via agora: uma menina boba, um pouco volúvel, quase bêbada, no coração selvagem da vida, aprendiz de um meio que a aguardava e que talvez a esmagaria — e aqui se lembrou de um punhado de romances que mostravam exatamente isto: escritores destruídos pela fama e pelo sucesso — ah, se ao menos pudesse ser um deles! Estendeu o braço na direção do criado mudo, agarrou seu romance e releu, mais uma vez, as primeiras páginas, imaginando que era um leitor comum. Mas ai, que isto era impossível: nunca saberia qual era a sensação de ler a si mesma como se si mesma não fosse. Pensando bem, a cada vez que relia o livro, era uma outra pessoa... e na verdade, não era isso que ocorria com todos os leitores?... cada leitura era diferente porque a cada momento somos pessoas diferentes, e a leitura de duas pessoas pode se assemelhar mais do que a leitura de uma mesma pessoa em diferentes épocas... o que daria um ensaio, que poderia enviar para... Mas nessa altura teremos de deixar nossa promessa da Literatura, pois o livro jaz aberto sobre seu peito e definitivamente ela entrou no mundo dos sonhos.

O escritor talentoso

Acordou com o corpo dolorido, a boca seca e a impressão de ter esquecido alguma coisa. O contorno impreciso dos móveis, o brilho embaçado de um espelho e a indiferença da cama sob o grande corpo nu lhe lembraram onde estava: dormira sem perceber, depois da intensa atividade física (a editora costumava ser bastante exigente). Por trás de um mal-estar vagamente líquido — seu estômago ainda estava estufado da cerveja do almoço — , banhava-o a luz do autocontentamento. Mas como sofrera até chegar ali! Passara anos dando aulas no pré-vestibular para alunos enfastiados de 15 a 18 anos, dia após dia carregado de trabalhos e provas que nunca terminava de corrigir e que temia fossem contaminá-lo. Viera então o prêmio tão sonhado, justo no momento em que assumia para si mesmo a nobreza da renúncia. Então tivera de ajustar sua atitude, ostentando um leve desprezo pela glória que combinava às maravilhas com a onda de interesse que o atingia: era um escritor talentoso que desprezava as coisas mundanas e permanecia dedicado à causa da literatura. Trazia sempre a barba malfeita, os cabelos desgrenhados e a blusa amarrotada de quem virara a noite lutando com demônios interiores, e oferecia aos que o visitavam no seu bunker em Botafogo a iguaria exótica que fazia a delícia das matérias de jornal: arenque defumado acompanhado de um cálice de conhaque, herança das reminiscências judaicas do avô. Uma vez tinham-lhe dito que um escritor devia ter alguma peculiaridade, e como esta lhe pareceu bastante convincente, não se importava de gastar parte do prêmio no arenque redentor.

Espreguiçou-se, sentindo a cama lhe faltar embaixo dos pés. Era muito alto; seu corpo crescera tanto e tão rápido que se vergara já aos 15 anos. Assim, cedo parecera mais velho do que era, o que, somado à sua timidez algo lírica, despertava certo interesse nas mulheres, principalmente nas mais velhas. Mais tarde, apaixonara-se e casara- se com uma professora de história do segundo colégio onde trabalhara, mas se separaram três anos depois, por razões que desconhecia: a única coisa que conseguia pensar era na metáfora de um fósforo apagado. A partir dela, começou a escrever furiosamente o que viria a ser o seu grande romance (os dois anteriores tinham sido ignorados pelo público e pela crítica). O prêmio e o prestígio o haviam colocado em outro patamar e ele não hesitara em aproveitar a maré. Aos 40 anos, voltara previsivelmente à adolescência que não tivera, o bunker convertido em local de abate. Mas logo aquilo tudo o enfastiara. Para seu desespero, começou a ter dificuldades de ereção: mais de uma vez, teve de gaguejar desculpas para os corpos descrentes ou apiedados em sua cama. E, como uma súbita revelação, percebeu que estava apaixonado pela editora.

Levantou-se num pulo e foi até o banheiro. Não gostava de motéis, mas a editora estava sempre com pressa e determinava seus encontros com o doce autoritarismo que era parte do seu encanto. Abriu o vaso, onde despejou um longo jato enquanto olhava para a parede branca e via o rosto emoldurado pelos cabelos indo e vindo sobre os seios pequenos e perfeitos. Sentiu uma pancada de emoção ao imaginá-la circulando pela Feira, dando entrevistas, falando do seu livro — “o Kafka brasileiro”, “labirinto tragicômico de falsas identidades” —, e depois o encontro a dois, comentando e rindo da curadora, dos editores, dos outros autores. Seria um tédio conversar com eles, dar entrevistas, ir a eventos sem a sua presença luminosa.

Na rua, custou a decidir aonde iria. Não estava com fome, mas cairia bem tomar um café e comer uma torta. Um menino descalço se aproximou engrolando um “tio, me ajuda aí”. Como sempre, sua carteira só tinha cartões de banco, que usava para todas as ocasiões. Apertando o passo, balançou a cabeça algumas vezes ao mesmo tempo que sacudia os bolsos vazios, à guisa de justificativa. Mesmo assim, o menino continuou seguindo-o, sempre repetindo o arrastado “tio, tio, tio...” Uma das suas livrarias preferidas estava bem próxima, e foi lá que entrou em terra firme.

A curadora

Ela recapitulou mais uma vez: dar o tom da Feira, explicar o funcionamento das mesas, Cafés Literários e eventos em geral, definir a grade de horários. Seria preciso equilibrar a grita das Editoras, e compensar a Editora X, que na Feira anterior se sentira lesada, sem provocar ressentimentos ou ameaças veladas de retaliação por parte das demais. Estava no ramo há vários anos, mas o jantar inicial era sempre fonte de stress, uma mistura bem peculiar de euforia e medo, como na estreia de um balé. Sim, era a mesma sensação: ela, magrinha como uma nuvem, se aquecendo nas coxias com o estômago revirado enquanto o Teatro submergia na escuridão anônima de uma multidão pronta a triturá-la ou a salvá-la. Dependia dela, e era inescapável: em breve saberia seu verdadeiro tamanho.

A caminho da cozinha — não conseguiria ficar sem comer nada até a hora marcada para o jantar — , viu de relance sua imagem no espelho do banheiro. Meu Deus, como estava acabada! Tivera a beleza da juventude, e agora que os 50 haviam chegado, estava praticamente extinta. Gordura se acumulava nos quadris e em torno das coxas, denunciando tardiamente seu sangue negro, e as bochechas antes tão vivas se penduravam cada vez mais flácidas. Enquanto isso, a editora em ascensão brilharia no corpo ainda jovem, ou não tão jovem, mas... preparado. Não era assim que falavam hoje em dia? Fulana é preparada. A editora era assim, preparada em mais de um sentido. Ah, se a curadora pudesse preparar tudo como queria... Era a ironia da sua posição: devia dar o tom da Feira, mas vivia entre pressões incontornáveis que a tornavam apenas mais uma boneca manipulável. Restava apenas o falso gostinho do poder: romancistas, poetas, arrivistas de todos os tipos lambendo o chão que ela pisava, rindo das suas piadas, curtindo o seu couro.

Abriu a geladeira e contemplou as brancas entranhas. Dois iogurtes desnatados (prazo de validade vencido), uma metade de cebola (cheiro fétido se espraiando nas prateleiras), destroços de queijo brie, uma pilha de presunto com bordas roxas e ressecadas. Tristeza. Desde que o filho deixara a casa, sua geladeira não conseguira se recuperar. Houvera os amantes e as amantes eventuais, um breve interregno de uma relação relativamente estável e absolutamente histérica, mas nunca mais o cheiro antecipado do encontro diário, o conforto do arroz-feijão- legumes-salada, os bolos de chocolate nos fins de semana. Tudo passara tão rápido, e agora parecia um sonho. Primeiro a filha, casada antes da hora, substituída pela censura do telefonema protocolar aos domingos, desde o simples toque que parecia dizer: “ligo aos domingos que é quando você não trabalha, ou pelo menos finge que não trabalha”. O tom ausente dos que concedem um favor, dos que cumprem uma obrigação. Depois, o filho bem-amado, ocupado demais com viagens e garotas para se lembrar da mãe. E no entanto lá estava ela, pronta a atender a um pedido dele mais uma vez. Pelo menos a garota parecia ter algum talento: escrevera um primeiro romance de um erotismo cool e com referências literárias que poderiam impressionar alguns críticos e ao mesmo tempo ganhar o público jovem.

E, por baixo de tudo, como um zumbido, a presença do marido. Só os mortos tinham direito à imortalidade.

Esticou os dedos e pegou uma fatia grudenta de presunto, que, antes de engolir, tentou sem sucesso enrolar num canudinho. Um copo do resto de suco de caixinha também ajudaria a enganar o estômago. Dane-se que estivesse gorda. Ainda era, e sempre seria, Maria de Lourdes Braga, a criteriosa, esperta e encantadora Lurdinha.

Enquanto coloca a roupa — tem de experimentar peças diferentes, terninhos estouram sob a pressão dos pneus da barriga, o decote em canoa mostra um colo enrugado demais, puta merda, será que teria de fazer uma lipo, uma plástica — , pensa que seria mais feliz se tivesse continuado hippie, plantando alface e maconha, ou se houvesse transformado toda sua experiência lisérgica em arte; não como artista plástica (tinha horror àqueles tipos), mas como artesã de objetos decorativos ou de joias: faria uma pulseira em forma de escorpião cujo preço ultrapassaria de forma indecente o pouco ouro e os minúsculos diamantes incrustados na pele dourada. Conceito por conceito, preferia o mais honestamente desonesto — da literatura de verdade, aquela que tinha orientado suas primeiras escolhas, abrira mão há tempos.

Olhou-se no espelho, e, como costumava acontecer quando era pequena (a reunião inicial sempre a tornava pequena e triste antes de, em escala ascendente, alcançar a sua verdadeira idade e vigor), lembrou-se da história da Branca de Neve. Uma das experiências mais terrificantes da sua infância era a risada maligna da madrasta: espelho, espelho meu, existe alguém mais bonita do que eu? O disquinho colorido girava, com sua alegria indiferente, enquanto ela, Branca de Neve, explodia em lágrimas. Consultou o relógio: faltavam ainda 40 minutos. Pegaria mal chegar muito adiantada. Felizmente, as mesas estavam praticamente fechadas. Então lembrou que faltava ainda dar um telefonema.


Adriana Armony nasceu no Rio de Janeiro, onde vive. É escritora, doutora em Letras pela UFRJ e professora do Colégio Pedro II. Publicou, pela Editora Record, os romances A fome de Nelson (2005), Judite no país do futuro (2008) e Estranhos no aquário (2012), e organizou, com Tatiana Salem Levy, a coletânea Primos (2010), da qual também participa com um conto. Seu terceiro romance, Estranhos no aquário, foi premiado com a bolsa de criação literária da Petrobras. O trecho que o Cândido publica faz parte do romance em progresso e inédito A feira (título provisório).

Ilustração: Guilherme Caldas