Romance | Raimundo Carrero

Condenado — Uma biografia de Jesus Cristo

condenado

Ilustração Leo Gibran
 
Conheci-o ainda criança, pela voz da minha mãe. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Reze, meu filho, ela dizia, fiapos de lã nos meus ouvidos. Reze. E pegava na minha mão para levá-la à testa, aos lábios, e ao peito, três vezes. Revelou que Ele nasceu em Belém, numa manjedoura de pedra, áspera e humilde sem encantos, despojada de luxo, sem higiene, onde os bois comiam capim. A Mãe chegara ali, insone, depois de atravessar o deserto com os pés descalços e sangrentos, cortados nas pedras e na terra, ao lado do marido José e sob a proteção do Divino Espírito Santo. Depois teve de fugir outra vez, escapando de Herodes. Perseguido sempre; sempre perseguido, os meninos ultrajados, assassinados, mortos.

Minha mãe acordava cedo, bem cedo, a manhã indecisa a vencer as sombras. Avizinhava-se da minha rede, saindo da cama que dividia com meu pai. Eu não a via, sentia o vulto se movendo, próxima, bem próxima, e me arrepiava de contentamento, às vezes chorando, vinha, só para convocar carinho, chegava. Levantava-me nos braços, sutil criança, sentava-se também na rede, quem sabe sentia o cheiro do mijo noturno, os lençóis brancos, a fralda, ainda molhada. Úmido, recanto úmido e cheiroso. 

Na maioria das vezes trazia leite, mas houve uma manhã em que senti o gosto de um comprimido amarelo, e da água morna, salobra. Estivera com febre a noite inteira. Tossia, tossia. Envolveu meus cabelos com as mãos. E rezava, rezava, pedia reza , meu filho, reze. Rezar significava Ele vai curá-lo. Ele, eu sabia quem era, Ele era o menino que repousava e que dormia — será que dormia mesmo? — na placidez do Santuário, onde ardia uma vela permanentemente. Nas sombras da noite, nas franjas do dia. 
condenado2

Ilustração Leo Gibran 

Sempre tive uma vontade imensa de que o menino brincasse comigo. Mas, mesmo criança, eu sabia que não era impossível porque Ele era menino e adulto ao mesmo tempo. Sem querer, a andar no átrio da igreja de Salgueiro, quase capela, humilde e despojada de luxo. Entre as sombras, encontrei- -O adulto num canto quieto da igreja, dilacerado e nu, apenas um pano alvo cobrindo o ventre e as coxas, revelado por duas velas grandes em candelabros solitários na luz aflita, os ombros rasgados, os cotovelos arrebentados. O peito sangrando. O sangue escorrendo nas feridas abertas do peito, dos braços, das mãos. Foi Crucificado, minha mãe dizia. E disse assim depois que me encontraram, chorando, entrei na igreja enquanto ela ornamentava o templo com duas senhoras, minha madrinha, uma delas. Gritei porque vi aquele Homem morto deitado na cama na parte mais escura. O menino fora perseguido durante todo o tempo, jogado nas margens da vida e quando se tornou homem foi assassinado. Isso mesmo.

Meu pai não falava muito, silencioso com aquela cara de caboclo, os cabelos escorridos, braços fortes, confirmou esmagando as palavras nos lábios murchos. Não me lembro do meu pai rezar. Acompanhava a Missa, de pé, na lateral da igreja, tossia e mastigava palavras que nunca me pareceram rezas, mas apenas conversa de homem para homem, dele a ele, para fazer a feira. Todo domingo era dia de feira. Sabe o que era fazer a feira? Era abrir a loja na rua do comércio e vender tecido e chapéu. 

Só viaje depois da Missa, está bem assim? Antes do rumo converse com Deus, concorda? Minha mãe que disse, naquele tom autoritário de mulher humilde. Mulher — mulher que aceita comando, não vislumbra desafio. Está bem. Meu pai não gostava de desafios. Os dois riam, os lábios repuxados, cúmplices. Os dois se olhavam e silenciavam. Foi assim que eu vi meu pai viajar todos os domingos sem conhecer meu pecado. Também nunca me interessei saber até que ele, por muitos caminhos, conhecesse a verdade.

Raimundo Carrero nasceu em Salgueiro (PE), em 1947. É autor, entre outros, dos livros Maçã agreste (1989) e Somos pedras que se consomem (1995). Em 2010, seu romance A minha alma é irmã de Deus recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional, e o Prêmio São Paulo de Literatura (Livro do Ano). O trecho que o Cândido publica nesta edição faz parte do romance ainda inédito Condenado — Uma biografia de Jesus Cristo. Carrero vive em Recife (PE).