Romance | Guilherme Gontijo Flores

A força

Pou, cada um corre prum lado, emaranham-se braços e pés, trombados uns tantos tombam por chão, enquanto tentam não virar calçada pra manada louca em fuga, um porém permanece prostrado, uma flor lhe rebenta no tronco, primeiro pequenos urupês, cachos de flamboyants deformando-se em mancha, crescendo em poça, outros pipocos, correrias, cada qual com seu cada um, tropeçam-se até que tudo anuncia cessar, evolações de gás lacrimogêneo céu acima, fardas acinzentadas e negras sob a transparência dos escudos encaram rostos negros acinzentados de fuligem, pétalas num ramo seco, vídeos de celulares, selfies a mais e a menos, alguém pergunta o que foi, os vândalos desviaram a manifestação, provocaram os militares, a polícia iniciou o conflito por meio de infiltrados na população, a bala perdida alojou-se, fodeu tudo, alguém digita e marca de gordura a lente do telefone, microfones se ajeitam, mãos e lapelas, onde o sargento?, tivemos uma fatalidade decorrente da desmedida violência dos manifestantes, a força teve de ser usada, não seriam balas de borracha?, não seriam bombas de efeito moral que terminariam com o caos instaurado, caso alguém pergunte, há filmagens da confusão, alguém pegou o momento do tiro, alguém pegou o momento do tiro, alguém pegou o momento do tiro?, imagens se repassam em câmera lenta, alenta-se tudo no entorno do corpo, filmado, fotografado, comentado em tempo que depois diremos físico e real, enquanto pela praça a força se disfarça em carros, rastros de ambulâncias, vendedores de cachorro-quente, camelôs, cerveja choca, churrascos de gato perante o sol poente. Na dispersão, um centro estanca em torno ao corpo, hesita por tocar na carne em gestos lentos, como que achando o ponto sacro no que não se pode mais usar, o corpo estático desvia o olhar alheio, trava na busca da chaga sob a roupa empapada e no calor úmido, no início da noite, acena para o mundo, o corpo em seu instante, ainda estanque, torna-se um centro praquelas pessoas, pro corpo médico que insiste em demorar, pras cenas de jornal da manhã seguinte, pra passagem desinteressada de Joia, que agora corre pra casa, atravessa: beco via rua ruela servidão lama poça e esgoto, a céu aberto aponta seu nariz morro acima sem piscar pro firmamento, encontra amigos ou acena a quase-estranhos, está na sua aldeia. A geografia da cidade está no corpo, Joia sabe e passa cada passo sem pensá-lo, pousa os pés nos pontos certos, firma a coxa na subida e já desvia de quem desce pro trabalho noturno, o boteco da quarta, o passeio sem rumo, Joia ascende na constelação de luzes dos barracos da cidade, deixa o mar nas suas costas revirar a brisa lenta, sente o suor enchendo sutiã, camisa, o jeans aperta as pernas, no alto quase chega, o passo se atravanca, um tapa na cabeça, falta pão, caralho, lembra só agora, onde é melhor?, revê seu mapa, vira o prumo, aponta ao lado, encontra via estreita, apesar do cansaço acelera, arrisca-se a correr, toca pra mercearia.


GUILHERME GONTIJO FLORES nasceu em Brasília (DF), em 1984, e vive em Curitiba (PR). É poeta, tradutor e professor na Universidade Federal do Paraná. Publicou os livros de poemas brasa enganosa (2013), Tróiades (2014, www.troiades.com.br), l’azur Blasé (2016) e Naharia (2017), que formam a tetralogia Todos os nomes que talvez tivéssemos. Em 2019 publica seu primeiro romance, História de Joia, cujo primeiro capítulo o Cândido publica nesta edição.