Romance | Guido Viaro

O princípio da incerteza

A cidade e seu destino, não sei por que escolhi essa palavra, mas queria evitar “cotidiano”, aconteciam sem perceber a proximidade do fim das luzes. Há dois mil anos eram os romanos e suas tropas que suavam e tremiam de frio sobre essa planície, agora se transformaram em meras citações em livros de história. Carnes e ossos extintos, memórias despejadas no balde universal, suas consequências espalhadas e dissolvidas dentro de dois mil anos. Mas um dia, algum romano tirou seu capacete e olhou para o horizonte, antes de adormecer sobre a relva foi mergulhado em um turbilhão de ideias que terminaram onde haviam começado. Então, sem muito refletir, apenas constatando o que todos percebem, ele sentenciou, somos todos muito comuns, nunca saberemos a verdade das coisas, essa espada e esses ornamentos são mentiras que não me fazem melhor do que ninguém. Nenhum dos Césares está em situação diferente da minha. Depois adormeceu exatamente no lugar onde estão meus pés. Em dois mil anos haverá alguém aqui, refletindo sobre mim e meu completo anonimato, emprestando-me nome e profissão, apenas para que o nada possa ser capturado com as mãos para ser colocado dentro de um copo vazio.

Talvez essa pessoa seja Jacques Coeur, meu personagem, mas nem por isso mais ou menos real do que eu. Naqueles dias, Jacques acumulará dois mil e seiscentos anos de idade e estará acostumado à sua condição de imortal, coisa que lhe faltava no século 21. Haverá aprendido a não perseguir objetivos, esquecer-se de medir o tempo e olhar para os outros seres humanos como um criador de gansos que passeia entre os animais e está alheio a seus barulhos e movimentos. Talvez descobrirá também que, além dele, há outros imortais caminhando há séculos pelo planeta e mais algumas pessoas que passaram a viver centenas de anos através do progresso da ciência e da medicina. Perceberá, então, que ao contrário do que possa parecer essas pessoas não poderão lhe servir de companhia, e o melhor que faz é manter-se afastado delas, escondendo sua condição de todos. Apesar de a solidão ser inevitável, ela o fará sofrer cada vez menos.

Descobrirá alguns momentos de prazer desconhecidos anteriormente. Aqui mesmo, nesse lugar, sentirá que o sol, a temperatura, a luz, os sons ao redor, a combinação mágica de todas as sensações com toda e qualquer ideia e percepção da realidade, tudo misturado a uma camada sem peso nem voz, mistério sem medidas, o estar-se vivo naquele tempo e espaço, o existir para si e para outro. Mergulhar dentro dessa imensa mistura pode trazer um prazer desconhecido aos mortais.

A alma é inundada por uma plenitude sem par, na piscina da eternidade o perfeito soldado estoico descansa seus músculos, transforma sua espada na calma de um riacho e sua coragem no voo de uma borboleta. Mais do que sentir, ele passa a compreender, enxerga todas as cores e ouve todas as vozes, ama todas as mulheres e homens ao mesmo tempo, e também os perfura com a ponta de uma lança, experimenta todos os nascimentos e mortes em um piscar de olhos e antes que o olho se feche acumula a experiência de todos que existirão, compreende o fim do universo e seus renascimentos cíclicos e toda a estranha e complexa tessitura do cosmos. 

Sob minha pegada já pesaram o soldado romano e o imortal Jacques, uso o verbo no passado porque, no fundo, todas as coisas já aconteceram, algumas esperam a hora para serem reveladas para determinadas consciências. Mas, 27 séculos após Jacques, haverá outros pés e 786 séculos depois, mais outros, todos buscando o próximo passo, a expectativa, a vida acima de tudo, todos gritando seus egos para um mundo sem ouvidos.

Um vento gelado me traz de volta para esse instante, que sou eu, espremido entre tempo e espaço, não conseguindo chegar a conclusões ou decifrar sentidos, apenas narrando para eventuais plateias o que sinto e vejo. A noite derrota as luzes, o mundo acalma. Hora de voltar para a estação e pegar o trem para Paris.

Não, não tenho que voltar. Nada me prende. Não sou meia hora depois, sou gota de água enquanto chove. Nunca acreditei nisso, por isso sempre fui... não importa mais, tudo morto, sou o sumo do mundo, a água em movimento, a música sem notas, equação sem números. Sigo, porque é inevitável, e o inevitável é a verdade, mas ela, a verdade, não é necessariamente boa, pois a bondade pode ser mortal, e a morte um doce refúgio. Não quero nada, ambicioso desejo dentro do qual despejo minhas mais nobres energias. Aniquilo-me para renascer, como costumam fazer os universos. Imitando-os, aumento minha silhueta, fazendo com que uma pequena vela projete minha sombra sobre várias galáxias. Depois, para mostrar que a verdade é a arma dos hipócritas, finjo humildade, reencarnando, ou escrevendo, ou imaginando-me um simples pastor de ovelhas desesperado por não encontrar água para seu rebanho. 


GUIDO VIARO é escritor, cineasta e membro da Academia Paranaense de Letras. O princípio da incerteza, do qual o Cândido publica o trecho acima, é seu 15º romance. Vive em Curitiba (PR).