Romance | André de Leones

Abaixo do paraíso

(...) A rua lá fora. O sol momentaneamente encoberto. O asfalto parecia suspirar. Os dois voltaram a olhar para o intervalo sombreado, a calçada, a rua, o prédio defronte. Então, a claridade refloresceu surdamente e com tamanha intensidade que os dois homens fecharam os olhos por alguns segundos.

— Não estou te julgando ou coisa parecida. Ninguém aqui é criança. É o velho lance da confiança. Tenho que saber se ainda posso confiar em você. Só isso.

Os olhos se reacostumando à luz. Ninguém aqui é criança.

— Não é isso que você quer saber. Você quer saber outra coisa.

— Não posso arcar com outra fuga sua.

— Eu não fugi. 

— Você sumiu. Isso deixa os fulanos nervosos. Ficam pensando em você.

Pensando e falando. Será que ele é uma ponta solta? Será que é um vacilão? Será que é um aloprado? E eu sou a porra do avalista. Não posso arcar com outro sumiço seu. Entende isso? Não agora. 

— Por que não agora? 

— Porque não. 

— Por quê? O que ele vai fazer? 

— Ele quem? 

— O homem, uai. O reizinho. 

— Vai concorrer ao Senado. Pensei que soubesse. Quatro anos na Câmara, dois na Prefeitura, oito no Governo. O reizinho quer seguir viagem. O reizinho está com fome. 

— Acho que ele ganha fácil. 

— Também acho. Se não tiver ponta solta. Quem amarra as pontas soltas? Cristiano respirou fundo. Quem amarra as pontas soltas? Ora, outras pontas soltas.

— Não sou ponta solta. Não sou nada. Levo e trago não me interessa o quê. Anos e anos. Nada. Diferente de você ou desses fulanos aí. Você é alguém. Você está lá dentro. Tem a porra de um cargo. Nomezinho no Diário Oficial. Essas merdas. Responde aos outros. E tem meia dúzia que responde a você. Eu, não. Não sou nada. Merda nenhuma. 

— Exatamente. Eu estou lá dentro. Você está aqui fora. Eu estou lá dentro e você é um nada muito próximo de mim. Próximo demais. 

Cristiano sorriu, concordando com a cabeça. Não se sentiu ofendido. As coisas eram o que eram.

— E eu podia estar lá dentro. Oportunidade não faltou, sobretudo lá atrás, a gente ainda nem tinha se formado. Você se lembra. Você sabe. Eu só achei que não fosse me sentir bem. O ar vai ficando rarefeito, não é assim? E eu não sou como você. Saquei isso logo de cara. Não me arrependo de coisa nenhuma. Não me sinto passado pra trás. Você não me deve nada. Ninguém me deve nada. 

— Eu sei que não. 

— E não me incomoda ser um leva e traz. 

— Sério? Isso não te deixa grilado? Com raiva? 

— A raiva que eu sinto não tem nada a ver com isso. 

— E tem a ver com o quê? A boca entreaberta, a palavra que não veio, não subiu desde a garganta. Um som indefinido. Tem a ver com o quê? Esperou um pouco. 

— Não vou foder com você, beleza? Posso até foder com algum cretino, com meia dúzia de cretinos, mas não contigo. Se eu fizer alguma merda, lido com ela eu mesmo.

O sol novamente encoberto. Um leva e traz. Foi a vez de Paulo respirar fundo. Um nada muito próximo de mim. 

— E por que você faria merda, Cristiano? Pra que ia foder com meia dúzia de cretinos? 

Ele não sabia. Levantou-se e foi até a porta. O ensaio de uma fuga, outra. O pistoleiro novamente à entrada, agora de costas para o saloon. O Gol estacionado a poucos metros dali. Enlameado. A raiva que eu sinto. A sensação de sufocamento crescera no decorrer dos anos. Não o incomodava ser um tarefeiro, um leva e traz a serviço dos aspones do reizinho, e a ausência de incômodo era fruto de uma gratuidade essencial: ele nunca quis ser nada em particular, talvez pensando que, em um dado momento, algo aconteceria e a vontade de fazer alguma coisa, qualquer coisa, surgiria. Mas nada acontecera. Nada surgira. Agora, aos 29 anos de idade, as costas viradas para o boteco esvaziado, ele se via brutalizado pela inutilidade a que se resumia sua existência. Não era nada. Não havia nada que quisesse ser. 

Ilustrações: Marluce Reque
2


— Acho mesmo que o reizinho ganha fácil, disse, sem se virar. Precisava dizer alguma coisa. Qualquer coisa. Os outros caras são uma piada. Ele é alto, bonitão, boa-praça. E também é cheirador e puteirão, coisa que agrada aos babacas em geral. E o que mais tem em Goiás é babaca. Ele tem muito voto. 

— Que lindo. 

— Não é? 

— Nossa, demais. Tenho que me lembrar de jogar tudo isso na propaganda eleitoral. 

— Não esquece dos babacas. — Nem a pau. É o mais importante. Aliás, você gosta dessa palavrinha, né?

— Ele não é casado. Andar com a mulherada afasta qualquer suspeita de viadagem. 

— Ah. Isso seria imperdoável. 

— E ele teve sorte. 

— Como assim? 

— Conseguiu se eleger governador, apesar de tudo. Porque ele era muito louco quando estava na Prefeitura. 

— Aquela foi uma eleição apertada. 

— As pessoas podem dizer o que quiserem, e a maior parte do que disserem em relação a esse tipo de coisa será verdade, mas o fato é que ele nunca foi fotografado de calças arriadas, metendo por trás na mulher de algum vereador, em pleno gabinete, com meio secretariado esperando na recepção (coisa que, aliás, aconteceu, né?), ou com as fuças assim branquinhas, trincadão. 

— E ninguém morreu. 

Ninguém tinha morrido. Isso era o mais importante. Sem acidentes, sem desastres. Nenhum carro jogado contra uma árvore da Praça Tamandaré ou capotado à beira de uma rodovia, o corpo desmembrado de uma piranha que fora lançada através do para-brisa, noite afora. Sem overdoses. Nada. Muita sorte. 

3


Cristiano voltou a se sentar. O sol lá fora seguia encoberto. A música tinha parado havia algum tempo. Como se percebesse isso só agora, Paulo se levantou, foi até o CD player e Hello, I love you começou a tocar. Quando voltou à mesa, um pouco depois, trazia uma Coca-Cola média e dois copos americanos. Empurrou um deles na direção de Cristiano e o serviu. Em seguida, deixou-se cair na cadeira. O som ferruginoso do copo ao deslizar sobre a mesa. Queria ouvi-lo de novo. A trilha sonora perfeita para o que conversavam. Música de fundo. Cristiano tomou um gole, repôs o copo sobre o tampo e desenhou um círculo com ele. O que o homem faz. O som do vidro contra o metal, contra a ferrugem. Desfez o círculo com outro, na direção contrária. Horário, anti-horário. Direita, esquerda. O mesmo som ferruginoso. 

— Quando é que vai me passar as coordenadas? Pensei que o serviço era pra hoje.

— E é. 

Um grosso envelope amarrado feito uma pamonha foi colocado sobre a mesa. Não estava com Paulo antes. Ligar o som, pegar um refrigerante. Guardava dinheiro no freezer do boteco? O bolso interno do paletó permaneceu boquiaberto por um instante. Cristiano pegou o envelope, mas não sabia onde guardá- -lo. Não caberia no bolso da calça. Enfiou- o na mochila. Tomou mais um gole. 

— Tem oitenta mil aí. 

Paulo explicou o que Cristiano deveria fazer, para onde ir, com quem se encontraria, como proceder, como ter certeza, tudo passado e repassado. 

–— É um otário qualquer, e é por isso que a gente precisa ter cuidado. Funcionário da Câmara. Trabalhou com alguém que nos interessa quando esse alguém era vereador em Anápolis. Com ele, perto dele. Bem perto. A merda voa.

— Eu vou lá comprar papelada?

— Você vai lá comprar papelada.

— O que você acha?

— Eu acho que vale a pena.

— Sério?

— Sério. Por quê?

— Sei lá, acho que o homem não precisa disso. Não para essas eleições. Não pro ano que vem. Acho que não.

— Você acha? Eu não sei.

— Quem são os adversários dele? Não sobrou ninguém.

Paulo sorriu, meio enfadado. Tomou um gole de refrigerante.

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— Mas é que não se trata de um adversário.

— Como?

— Você, meu caro, vai até a aprazível cidade de Anápolis entregar oitenta mil reais em espécie a um otário que, em troca, vai te dar um dossiê. E esse dossiê não é sobre um adversário nosso, o que talvez fosse o esperado, o feijão com arroz que mantém a gente teso na brincadeira, mas não, o dossiê não é sobre um adversário, um inimigo, um desafeto, o dossiê é sobre um aliado nosso, e um aliado dos mais próximos, dos mais queridos, dos mais leais, dos mais fofos, do círculo mais íntimo, padrinho da filha do vice-governador, parte da família mesmo. Sacou?

André de Leones nasceu em Goiânia (GO). É autor, entre outros, dos romances Hoje está um dia morto (2006), vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2005, Dentes negros (2011) e Terra de casas vazias (2013). O romance Abaixo do paraíso, que o Cândido antecipa um fragmento nesta edição, será publicado este mês pela Rocco. Vive em São Paulo (SP).