Reportagem | Rodrigo Casarin

O boteco padrão de Reinaldo Moraes

O escritor paulistano fala sobre Maior que o mundo, primeiro volume de uma trilogia de romances que retoma os temas e a linguagem do clássico moderno Pornopopéia, lançado há dez anos

Rodrigo Casarin

Cadeiras e mesas bambas enchem o salão inter - no e ladeiam a parede do lado de fora do bar, onde bitucas de cigarros, papéis de bala e chicletes grudados no chão decoram a calçada. O balcão costuma ser de azulejos quadriculados em vermelho, branco, azul ou alguma mescla dessas cores. Geladeiras de cervejas nem sempre tão geladas ficam nos cantos. Salgados fritos e assados descansam numa estufa, às vezes bem acompanhados por um torresmo velho ou um ovo colorido. Pelo espaço interno em L ou T, atendentes passeiam carregando pratos de comida na hora do almoço e lanches cheios de óleo a qualquer hora do dia. Em algum lugar há um apanhado de frutas — que em alguns casos ficam ostensivamente, fedidamente e cafonamente penduradas sobre o balcão molhado com a água que escorre pela parede externa de garrafas e copos americanos.

      Ilustração: Mário de Alencar
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Eis um típico boteco paulistano. Se você chamar Reinaldo Moraes para uma conversa, a chance de ele indicar um lugar desses para o encontro é bastante grande — no meu caso, nossos papos se deram em algum endereço do tipo em impressionantes 100% das vezes. Provavelmente por isso que matérias sobre o autor de Pornopopéia comumente citam que a entrevista aconteceu entre goles de cerveja e cachaça. Nossa troca de ideias sobre seu mais novo livro, Maior que o mundo, publicado no final do ano passado pela Alfaguara, seguiu quase que à risca o clichê, exceto pela falta de cachaça e pelo infeliz refrigerante zero que precisei escolher como companhia — compromissos na sequência não permitiam uma língua eventualmente inchada.

Dessa vez nos encontramos no bar padrão em frente ao metrô Vila Madalena, bairro onde Reinaldo mora desde que deixou a região da Paulista. Está a poucas quadras do Pé pra Fora, bar nem tão padrão assim que servia de ponto de partida para romarias etílicas junto com os camaradas Mario Prata, também escritor, e Matthew Shirts, jornalista e tradutor — “os três patetas”, define Reinaldo. Ali pelos anos 1980, 1990, era comum que almoçassem no Pé, tomassem alguma coisa e engrenassem conversas que se desdobravam em outros bares e podiam terminar com o sol do dia seguinte já nascendo. Eram outros tempos. Matthew e Mario precisaram largar o álcool e o terceiro “pateta”, aos 69 anos, anda pegando bem mais leve.

Quem acompanha o trabalho de Reinaldo sabe que é fácil se deparar com seus personagens fazendo peregrinações do tipo, rodando por botecos espalhados por bairros de São Paulo confinados entre os rios Tietê e Pinheiros, com uma cara predileção pelo centro e a zona oeste. Apesar de ter nascido no Brás e morado no Butantã na juventude, Reinaldo também viveu a maior parte da vida nos cantos familiares às suas criaturas: Bixiga, Aclimação, idas e vindas para Pinheiros, Santa Cecília, Higienópolis, Vila Madalena, Paulista… Tudo isso fez dele um apaixonado pela cidade. Mentira.

Dentre as coisas que odeia, a principal é o barulho. “Não suporto o barulho. Onde eu moro faz um puta de um barulho. No outro apartamento onde morava, quando mudei, só tinha casinha por perto. Pensei: ‘logo elas vão abaixo’. Aí construíram quatro prédios. Morava num canteiro de obras. Fui numa loja de equipamentos de segurança e comprei um abafador. Pedi um bão mesmo. Peguei um para clube de tiros e operadores de máquinas pesada. Coloquei e falei: ‘é esse’. Demora um pouco para se adaptar, você começa a ouvir as batidas do coração, parece que está entrando num submarino a mil metros de profundidade. Mas hoje acostumei”, conta ele, que, se pudesse, procuraria pelas margens de outro rio — o Sena — para habitar. “Nasci e sempre morei aqui. Não é uma escolha. Passei dois anos em Paris por causa de uma bolsa que ganhei. Voltei porque estava sem grana. Se tivesse ganhado na loteria, estava morando em Paris. Não tenho nenhum patriotismo, bairrismo, municipalismo com relação a São Paulo.”

Um outro Pornopopéia
Das andanças por Paris que nasceu Tanto faz, seu primeiro romance, publicado em 1981. Quatro anos depois sairia Abacaxi, confirmando Reinaldo como um dos prosadores de quem poderíamos esperar algo e delineando os principais traços de suas histórias: sexo com doses generosas de erotismo ou pornografia, drogas lícitas e ilícitas, andanças por grandes cidades e personagens carismáticos e um tanto perdidos na vida, um tanto abertos para o mundo e sempre pretensamente prontos para o coito, tudo isso embalado por um humor que alterna entre refinamento erudito e trocadilhos dignos de rodas de qualquer boteco padrão — esse contraste, aliás, é uma marca da linguagem empregada nas narrativas.

Depois de Abacaxi, Reinaldo passou um longo período se dedicando a outros gêneros: crônicas, contos, roteiros… até infantojuvenil. Só retornaria ao romance mais de duas décadas depois, em 2008, com Pornopopéia, um dos livros mais importantes da literatura brasileira neste século. Nele acompanhamos o cineasta Zeca em uma epopeia erótica — como o título entrega — pelos submundos paulistanos cheios de drogas e sacanagens (sacanagens que depois continuam em Ubatuba, no litoral norte do estado).

Maior que o mundo, enfim, nasce após mais uma espera longa, agora de dez anos. Reinaldo trabalhava na história de um bicheiro metafísico que, apesar de ter mais de 450 páginas escritas, parecia não ir adiante. Foi aí que o procuraram para comprar os direitos cinematográficos de Pornopopéia, que, entretanto, já tinham sido vendidos. Roberto Marquez, o cineasta interessado, fez uma nova oferta: daria uma boa grana pelo roteiro de uma história semelhante, com prostituas, rua Augusta e drogas. Negócio fechado.

“Quando comecei, falei: ‘é essa história que quero escrever’. Tanto que fiz um acordo, ele ficava com os direitos de cinema, eu ficava com os direitos editoriais. Dessa vez é o autor que vai trair o cineasta”, diz Reinaldo. Maior que o mundo é o primeiro livro de uma trilogia e realmente apresenta muitas semelhanças com o romance anterior, tanto que a orelha do livro imagina um diálogo entre os protagonistas comentando as proximidades entre as narrativas. “Comecei a me preocupar com as semelhanças, mas uma hora falei: foda-se. É outra história, outro cara. Tem coisas que se repetem, a escrita é parecida, mas foda- -se, estou me divertindo aqui”, lembra o escritor, que dispensa qualquer tipo de patrulha quando está criando: “Fiquei pensando: mais um livro sobre escritor ou sobre artista?! Mas vou fazer o quê, ficar me policiando? O que estava saindo era isso. Quando estou escrevendo não tenho nenhum tipo de polícia: família, filhos, amigos…”.

Mestre da sacanagem
Maior que o mundo alterna entre a primeira e a terceira pessoa para acompanhar de perto Cássio Adalberto, autor do bem-sucedido Strumbicômboli, fã de Bukowski e que anda numa séria crise criativa — não consegue encontrar a primeira frase emblemática que o fará deslanchar na escrita de seu segundo romance. Kabeto, como o herói é chamado pelos íntimos, resolve sair pelas ruas de São Paulo registrando suas ideias, impressões e confusões com cabeleireiros e marombados em um gravador; alguma coisa há de ser aproveitada, crê. Nesse vai e vem que dura um final de semana, muito da literatura reinaldiana: bebedeira homérica, debates etílico-literários turbinados por um baseado ocasional ou uma cachacinha — Kabeto largou o pó tem algum tempo — e, como não poderia deixar de ser, pelo menos uma memorável cena de orgia, abrilhantada por uma ruivinha que o autor assume ter sido inspirada em algumas atrizes pornôs que encontrou pela internet.

Cinquentão e um tanto mais velho do que seus amigos, em alguns momentos Kabeto sente o peso da idade — com a gravidade agindo como inimigo implacável de seu sexo — e o deslocamento geracional, o que serviu de pretexto para, no boteco padrão, Reinaldo falar sobre como encara o politicamente correto. “Ele age como uma espécie de superego adicional. O personagem é sexista, machista, mas isso é uma coisa que vem da mesa de bar. Tem uma hora que as personagens femininas jovens e mesmo o amigo mais jovem ficam encarnando nele, chamam o Kabeto de dinossauro. Mas a galera gosta dele porque é da boemia, é engraçado, culto…”

Enquanto lia Maior que o mundo para a conversa que teria com o escritor, Giovana Madalosso, autora de Tudo pode ser roubado, outro romance que se passa pelas ruas e bares da capital paulista, comentou em seu Twitter que andava dando muitas risadas com o novo livro de Reinaldo. Perguntei o porquê. “Estou na página 191 e o Kabeto segue flanando por São Paulo sem que nada de significativo tenha acontecido. Nada de significativo para ele porque no tecido literário muito aconteceu, começando justamente por essa eloquência hipnótica acerca do nada, ora em primeira, ora em terceira pessoa, e passando de um foco narrativo para outro com tamanha fluidez que a mudança é quase imperceptível. Também é preciso falar do humor. Durante a leitura, tenho rido alto. São raríssimos os livros que me fazem rir em bom som”, me escreveu.

         Kraw Penas
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O autor de Pornopopéia em 2011, quando participou do projeto Um Escritor na Biblioteca, na BPP. 

Outro jovem escritor bastante familiarizado com as esquinas por onde Kabeto zanza é Fabrício Corsaletti, autor de Perambule. “A perambulação do Kabeto pela Teodoro Sampaio, pela Augusta, numa cena longa, de umas 150 páginas, é de um realismo muito bem escrito. O estilo do Reinaldo é cada vez mais único, inimitável. Os personagens são muito fortes, as passagens são muito engraçadas”, comenta Corsaletti, que notou um equívoco na narrativa. “Tem um trecho do livro que o Kabeto está descendo a Augusta e sai da rua para fumar um baseado numa rua mais tranquila. O Reinaldo descreve errado o trajeto, não tem como fazer o caminho que o personagem fez e sair de novo na Augusta. Ele pararia em outro lugar.”

No trecho em questão, Kabeto deixa a Augusta e entra à esquerda na Matias Aires, à direita na Haddock Lobo e à direita novamente na Antônio Carlos, onde busca “um hiato de gente e carros que lhe permita acender a bagana guardada na caixa de fósforos”; erva na cabeça, retorna para a Augusta, desenhando um percurso impossível na São Paulo real, onde quem sai da Matias Aires e vira à direita na Haddock Lobo vai sentido Fernando de Albuquerque, não Antônio Carlos, que seria a primeira travessa caso a guinada fosse à esquerda. Reinaldo reconhece o “erro de GPS” — ele que cantou a bola sobre o equívoco encontrado por Corsaletti, aliás —, mas não se preocupa com isso. “Não vou corrigir. É o personagem que está falando, ele que errou o nome da rua, até porque está dando uma bola”, diz. “Quase errei também o lado da Augusta, que passando o Conjunto Nacional desceria em direção ao centro, não aos Jardins, mas esse eu peguei a tempo.”

Também admiradora do trabalho do autor é Eliane Robert Moraes, doutora em filosofia e uma das maiores especialistas em literatura erótica do Brasil, que coloca Reinaldo ao lado de Hilda Hilst como os grandes escritores brasileiros em matéria de erotismo. “Em que pesem as diferenças entre ambos, seus romances e contos se vinculam a uma das mais vigorosas linhagens da moderna literatura ocidental, que passa pelas obras de Georges Bataille, Pierre Louÿs ou Henry Miller, só para citar alguns nomes do século XX”, compara Eliane, que, entrando em Maior que o mundo, prossegue:

“Os personagens de Reinaldo se impõem como algumas das mais bem-acabadas figuras do excesso da nossa literatura. Isso porque a ‘esbórnia químio- -sexual’ na qual eles se lançam vertiginosamente é, a rigor, uma formidável esbórnia de palavras. Para conceber tamanha orgia verbal, o autor não se furta a visitar as mais chulas criações populares do baixo calão, como ‘futucar o courinho’, ‘meter a rola’ ou ‘fuque- -fuque’, às quais ainda acrescenta notáveis achados da própria lavra como ‘fazer o cu piscar pro freguês’, ‘hortifrutiputona’ ou ‘emborrachar o mandrová’, entre uma infinidade de outros. A ficção erótica de Moraes corrige o mundo segundo os imperativos do desejo, sem ter que observar qualquer constrangimento, seja ele de ordem moral, ética, política, religiosa ou psicológica”.

Tais palavras ajudam a dar uma dimensão de quanto Reinaldo precisa se dedicar à construção das longas cenas de sexo. “É a coisa mais difícil; não é só a descrição gráfica. O cara tem que manter aquela cabeça que você conhece, tem as pensatas no meio da enrabada, do boquete, aí ele brocha, está ficando velho, tem todas as inseguranças ligadas a isso… É preciso pensar na própria coreografia: uma brochada do Kabeto, depois uma cena com duas meninas, a ruiva e a amiga que ele conhece há anos… Tem que ser tudo muito preciso, como Homero mostrando os oponentes que estão ali tentando se destruir. No bacanal é isso, um tentando dominar o outro a todo momento.”

   Divulgação
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A Mercearia São Pedro, um dos habitats de Reinaldo Moraes em São Paulo.

Quem precisa disso?
Entre os pensamentos de Kabeto e as conversas com seus amigos, algumas frases de Maior que o mundo refletem o momento do nosso mundo literário. “Quem precisa de outro romance meu ou de quem quer que seja?”, registra o personagem. Na mesa do boteco padrão, Reinaldo assume que o pensamento também ecoa em sua cabeça. “A literatura não tem mais uma demanda forte. Talvez a comercial até tenha, mas essa literatura que nasce das bolas do saco, do centro da hipófise, não. Se eu, o Milton Hatoum, o Joca Terron pararmos de escrever, ninguém sentirá uma lacuna. É uma ideia um pouco pessimista sobre a posição da literatura na cultura e da cultura na vida nacional. Nosso capitão acha que cultura e merda é a mesma coisa…”

No entanto, sabemos que para alguns milhares a literatura é imprescindível e esses sempre têm algum grande livro para indicar. No papo, Reinaldo andava empolgado com Roberto Bolaño. Quando esteve no México para escrever o livro que jamais escreveu para a série Amores Expressos, leu Putas assassinas e não curtiu muito. Há pouco deu uma nova chance ao chileno. Mergulhou numa edição em espanhol de Os detetives selvagens ao longo de três meses. Adorou. “Ele tem uma legibilidade total, não tem nenhuma encrenca, é a questão da narrativa mesmo: coloca 40 vozes, pessoas que conheceram os personagens e vão dando depoimentos. Você não vê os dois poetas principais falando, não sabe o que pensam, só os outros falam deles. É um livro fantástico, fiquei maluco.”

No boteco padrão, tomo meu refrigerante zero enquanto Reinaldo tomba duas garrafas de cerveja acompanhadas de absolutamente nenhuma dose de cachaça. Para o escritor, agora são raros os rolês intermináveis e poucos os porres épicos que poderiam comprometer a produção dos próximos dois volumes da trilogia — o segundo já está praticamente pronto, mas ainda há muito trabalho a ser feito no terceiro — e do livro com três novelas no qual pretende colocar a história condensada do bicheiro metafísico. “Eu fico achando que vou viver até 138 anos”, brinca. Bem, até lá talvez sua rotina mude um pouco, mas por ora o que temos é isso: 

   Divulgação
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Elenco do filme Maior que o mundo, do cineasta Roberto Marquez, baseado no livro homônimo de Reinaldo Moraes.

“Tô velho. Levanto umas 6h,faço um café fortíssimo e mando bala. Revejo o que escrevi no dia anterior e avanço a coisa. De tarde fico mais relex, mando um cigarrinho de artista e uma meia dúzia de cervejinhas. Depois trabalho até umas 23h e capoto. Esse é o esquema ideal”. O botequismo, no entanto, segue sendo seu esporte favorito e vez ou outra ele vai de bar padrão em bar nem tão padrão assim e roda pela São Paulo que bem conhece sem que perceba o adiantar da hora, é nesse momento que a idade cobra o preço. “A ressaca aos 70 é violenta, diferente da ressaca aos 30. Aí acordo deprimido, fodido, com taquicardia, caganeira…”