Reportagem | Memória Literária

Passado desconhecido

Acervo de autores paranaenses da Biblioteca Pública revela memórias de diversas editoras curitibanas de literatura. Mesmo diante da aridez do mercado local, editoras como a Guaíra e a Criar atingiram reputação nacional


Franco Caldas Fuchs

A história ainda está para ser contada e, certamente, daria um bom livro. Afinal, até o momento não há estudos aprofundados que analisem a trajetória das editoras curitibanas dedicadas à literatura. Enquanto isso, há quem se satisfaça com o senso comum de que a capital paranaense não possuiu uma tradição editorial comparável a de Porto Alegre ou a do Rio e São Paulo. Porém, uma visita à divisão de autores locais da Biblioteca Pública do Paraná revela uma série de livros de valor, impressos na cidade, apesar das inúmeras dificuldades do mercado local.

As coleções publicadas pela pioneira Editora Guaíra, e que atingiram fama nacional entre os anos 1940 e 1950, costumam ser os exemplos mais lembrados por pesquisadores e literatos. Mas há outras iniciativas que merecem ser garimpadas. A começar pelo Grupo Editorial de Renovação do Paraná (GERPA), a partir da década de 1940, sem falar nos livros editados pela O Formigueiro, do advogado e escritor Vasco Taborda (1909-1997). Outros selos editoriais efêmeros também viabilizaram a produção de escritores importantes em início de carreira. Na década de 1970, a Editora Hoje lançou uma coleção em formato pocket de Jamil Snege (1939-2003), Manoel Carlos Karam (1947- 2007) e Walmor Marcelino (1930-2009). Já a editora Beija-Flor, de Werner Zotz, lançou, entre outras obras, a antologia de poetas curitibanos (como Marcos Prado e Thadeu Wojciechowski) Os Reis Magros, em 1978.

Mercado aquecido
Dentre todas essas iniciativas, a Criar Edições (atualmente com lançamentos suspensos) foi a editora que mais se destacou no cenário local. Criada em 1981 por Roberto Gomes, Cristovão Tezza e Iria Zanoni, em 1986 ela atingiu o 50º lugar em um ranking das 100 maiores editoras brasileiras. Além de lançar obras dos próprios editores, como O terrorista lírico, de Tezza, e Sabrina de trotoar e de tacape, de Gomes, a Criar lançou, nesse período, obras de vários outros escritores, como Wilson Bueno (Bolero’s bar), Alice Ruiz (Nuvem feliz) e Paulo Leminski (Anseios crípticos).

“ Sempre haverá autores que sonham ter livros por editoras de

fora, de grande porte, e outros que vão buscar as locais. Muitas

vezes, uma editora menor atende melhor um autor estreante do que

uma editora nacional, que está mais preocupada em dar atenção

para quem já tem um nome no mercado.”

Thiago Tizzot, escritor e editor da Arte & Letra

“A editora foi muito bem até 1989. Chegamos a ter 11 funcionários e assustamos muita gente. Diferentemente de hoje, era um tempo em que a leitura era mais voltada para os autores brasileiros. As obras eram veículos de expressão política e também havia mais espaço para a crítica de livros na imprensa”, lembra Roberto Gomes.

Para Tezza, a Criar — assim como a CooEditora, cooperativa de autores da qual ele e Gomes fizeram parte até 1980 —, foi, por um tempo, uma alternativa real às grandes editoras. “Naqueles anos, Curitiba criava um profundo sentimento de solidão para os escritores por sua falta de editoras realmente representativas. Era muito difícil sair da província naqueles anos. Ser editado em São Paulo e Rio era uma espécie de Graal dos escritores fora do eixo”, diz ele, hoje autor da Record, sobre o curto período de tempo como editor.

Professor de Literatura Brasileira na UFPR e ex-diretor da Editora UFPR, Luís Bueno destaca também o papel da Criar e de outras casas editoriais que até hoje dão voz a autores locais, a exemplo da Travessa dos Editores, criada em 1994, por Fábio Campana. “Independentemente das dificuldades, é importante lembrar que muitas carreiras literárias se viabilizaram a partir da cidade. Vale pensar casos como o de Valêncio Xavier ou de Jamil Snege, autores que têm peso na literatura do seu tempo. Jamil, por exemplo, não foi provinciano, embora editado apenas na província”, observa Bueno.

Presente e futuro

Entre editoras jurídicas, como a Juruá, e de materiais didáticos e infantojuvenis como a Editora Positivo, o universo atual das editoras curitibanas voltadas para a literatura adulta parece um tanto nebuloso. O Sindicato das Empresas de Edição e Distribuição de Livros e Similares do Paraná (Sindilivros) não sabe precisar quantas e quais atuam nesse segmento de modo regular. Nesse mercado, porém, é possível identificar iniciativas surgidas na primeira década de 2000, que até o momento perseveram, mantendo uma linha editorial coerente. A Editora Arte & Letra, do editor e escritor Thiago Tizzot, assim como a Kafka, do também editor e escritor Paulo Sandrini, são exemplos disso.

Com estrutura enxuta, oferecem livros caprichados e mesclam em seus catálogos autores novos e consagrados, a exemplo de Luiz Felipe Leprevost e Manoel Carlos Karam. “Nós nunca quisemos ser como as grandes editoras nacionais, cheios de selos, que vão incorporando editoras menores. Preferimos pensar num formato menor, porém com mais qualidade. Isso funciona melhor para Curitiba e é, inclusive, um modelo que se espalha pelo Brasil”, diz Tizzot, autor de O segredo da guerra.

Mostrar que é possível lançar boas obras localmente, sem depender do eixo de grandes casas editorais, foi o desejo que impulsionou Sandrini a se aventurar no mercado editorial a partir de 2005. Apesar de enfrentar um ambiente hostil, marcado “por vistas grossas da imprensa”, ele afirma que o prazer de difundir livros e autores “meio esquecidos” o faz insistir na batalha. Entre outros lançamentos, Sandrini anuncia, em breve, a publicação de romances de André Knewitz, João Paulo Partala e Homero Gomes. “A Kafka possui muitas qualidades, mas as grandes livrarias e distribuidoras dificultam a vida para termos os livros em suas prateleiras. E o público não consome literatura local”, afirma o autor de O rei era assim.

Também com essa percepção, Tizzot informa que a maior parte dos produtos da Arte & Letra, que vão de revistas literárias a livros artesanais, é vendida fora de Curitiba, especialmente em livrarias do Rio e São Paulo: “Aqui o Estado e a prefeitura também têm uma política muito fraca de aquisição de livros. Vendemos mais para o governo de São Paulo do que o do Paraná”.

Descompasso
Para os editores é angustiante perceber que as editoras disponíveis não dão conta de atender os escritores locais. “Há muitos autores e uma cultura de escrita crescente em Curitiba. As políticas de incentivo às publicações deveriam ser mais estimuladas, com prêmios literários e bolsas de produção”, opina Sandrini.

Tizzot, porém, argumenta que apenas uma multiplicação do número de editoras não equilibraria a equação da literatura, sem um aumento expressivo do número de leitores. “A leitura da produção local deveria ser mais fomentada nas escolas e universidades. No fim, editoras, escritores e leitores precisam caminhar juntos. Um não vive sem o outro”, ressalta Tizzot.


Editora Guaíra disputou o mercado nacional entre os anos 1940 e 1950

Franco Caldas Fuchs

A briga foi boa. Entre a década de 1940 e 1950, a Editora Guaíra disputou leitores com as grandes casas editorias do país, como José Olympio, Civilização Brasileira e Editora Globo (de Porto Alegre). Naquela época, o curitibano que entrasse, por exemplo, na Livraria Ghignone, encontrava uma série de obras importantes, nacionais e estrangeiras, impressas na capital, pela Guaíra. Música do Brasil, de Mário de Andrade (1893-1945), assim como A esperança, de André Malraux (1901- 1976), e a Trilogia U.S.A., do americano John Dos Passos (1896-1970), são exemplos dos múltiplos títulos selecionados pelo editor Oscar Joseph de Plácido e Silva (1893-1963).

Alagoano radicado em Curitiba, De Plácido e Silva foi professor, advogado e escritor. Ao lado de Benjamin Lins, fundou o jornal Gazeta do Povo, em 1919. A abertura da sua Editora Guaíra no início da década de 1940, com a iniciativa de lançar sistematicamente coleções de qualidade, em diversos gêneros como ensaio, romance, conto e biografia, foi uma ação pioneira no Estado. Em sua melhor fase, a editora publicou uma média de 40 títulos novos ao ano, merecendo, por isso, destaque no clássico O livro no Brasil, principal estudo sobre a história do mercado editorial nacional, feito pelo pesquisador inglês Laurence Hallewell.

“Mesmo depois de fechada, a editora continuou sendo lembrada por muitos editores e intelectuais brasileiros, a exemplo de Jacó Guinsburg e Augusto de Campos, como um símbolo do Paraná”, diz Leilah Santiago Bufrem, pós- -doutora pela Universidad Autónoma de Madrid e autora de um artigo sobre a Guaíra. Do fim dos anos 1940 até 1955, a editora também publicou mensalmente e com alcance nacional a Revista Guaíra, que reuniu uma série de colaboradores de peso, como Rubem Braga, Joel Silveira e Rachel de Queiroz.

Todos esses feitos são ainda mais impressionantes levando em conta as dificuldades de se manter uma editora em um período turbulento pela Segunda Guerra Mundial e marcado por crises institucionais e políticas no Brasil.

Localmente, De Plácido e Silva teve ainda que enfrentar muitas críticas por publicar textos que refletiam sobre questões sociais. “A formação dos paranaenses sempre foi muito de direita, e De Plácido e Silva tinha uma linha ideológica de esquerda, publicando obras como O ABC do comunismo, de Bukharin”, observa Leilah.

A diminuição de contratos publicitários para sua revista, dificuldades de importação de papel e, finalmente, o incêndio da sua oficina encerraram a trajetória da Guaíra em 1961. Morto dois anos depois, De Plácido e Silva entraria para a história como um dos maiores editores do Paraná. “Em conjunto, as ações dele ajudaram a superar um ‘ilhamento cultural’ que até então acometida o Estado”, afirma Leilah.