Reportagem

Os últimos livreiros

Alguns dos principais vendedores de livros de Curitiba trabalham hoje em sebos. Esses locais, aos poucos, têm se tornado ponto de encontro de escritores e leitores apaixonados, revivendo a tradição das quase extintas livrarias de rua


Luiz Rebinski Junior


Foto: Kraw Penas
Assim como os cinemas, as livrarias de rua estão quase extintas nas grandes capitais. Em Curitiba, a Livraria do Chain ainda resiste bravamente. A loja que em 1993, em uma enquete realizada pela Folha de S. Paulo, foi considerada a melhor do país em seu ramo de atuação, também ficou conhecida pelos livreiros que abrigou.

Entre 1988 e 1994, alguns dos melhores vendedores de livros da cidade trabalhavam juntos na Livraria do Chain. Eleoterio Burrego, Messias Gonzaga, Gil Cardoso e Marcos Kamarowski formavam o time que ajudou a empresa de Aramis Chain a se tornar uma referência para leitores que queriam, além de livros, um bom leitor que indicasse e falasse sobre títulos interessantes. Hoje, 20 anos depois, quase todos esses vendedores migraram para os sebos. Apenas Gil Cardoso, depois de períodos em outras livrarias, continua trabalhando na Livraria do Chain e exclusivamente com títulos novos.

Com a mudança de paradigma do setor do livro, que migrou quase que todo para debaixo das abas dos shoppings, os sebos acabaram preenchendo o vácuo deixado pelas livrarias de rua, que costumavam ter em seus estoques títulos mais antigos e raros, prática deixada de lado pelas megastores.

Eleoterio Burrego, um dos livreiros mais conhecidos de Curitiba, há cinco anos disponibiliza seus conhecimentos sobre Política, Literatura e Filosofia aos clientes do Sebo Líder, próximo ao centro histórico da cidade. Nos anos 1990, Eleoterio era um vendedor de livros tão requisitado que seu nome não demorou a virar grife. Desde 1975 trabalhando no ramo livreiro, conquistou tantos clientes que em 1998 resolveu abrir seu próprio negócio, primeiro com um grupo de investidores, depois em parceria com o amigo Marcos Kamarowski, outro vendedor formado sob a batuta de Aramis Chain.

A empreitada como dono de seu próprio negócio durou até 2004, quando fechou as portas e foi trabalhar na Livraria e Editora Martins Fontes, em São Paulo. Após essa experiência, Eleoterio voltou a Curitiba e logo migrou para o comércio de livros usados, um território até então desconhecido para ele.


“O livreiro precisa ter uma boa cultura geral, para que possa saber conversar com o cliente e demarcar assim um diferencial em relação aos vendedores de livros das grandes redes.”

Messias Gonzaga, livreiro (foto acima).


Na profissão desde muito jovem, Eleoterio ficou conhecido por ser um profissional que sabia cativar clientes exigentes. E isso fez com que leitores fiéis lhe seguissem onde ele estivesse. Dalton Trevisan, amigo dos tempos da Livraria do Chain, vez ou outra dá as caras no Sebo Líder. O romancista Roberto Gomes aparece com frequência para saber das novidades. A relação com os escritores locais, aliás, é outro traço peculiar na trajetória do livreiro. No começo dos anos 2000, alguns dos lançamentos mais concorridos da cidade eram feitos em sua livraria. Manoel Carlos Karam, Fábio Campana, Jamil Snege, Paulo Venturelli, Miguel Sanches Neto e Cristovão Tezza eram frequentadores rotineiros. As manhãs de sábado costumavam reunir muitas pessoas na loja da esquina das ruas Amintas de Barros e Tibagi, no centro da Curitiba. “Essas manhãs de sábado eram bastante empolgantes, pois os autores se reuniam para comprar e falar de livros”, diz o escritor Fábio Campana. “O Eleoterio e o Messias são vendedores que sabem o que estão falando,o que não se encontra nas megastores de shopping. São dois profissionais em extinção”, completa Campana.

Mesmo autores de outras cidades, durante passagem pela capital paranaense, faziam questão de conhecer o local. Em alguma medida, é esse ambiente que os sebos, com a presença de antigos livreiros, estão resgatando.

“O livreiro precisa ter uma boa cultura geral, para que possa, pelo menos, saber conversar com o cliente e demarcar assim um diferencial em relação aos vendedores de livros das grandes redes. É isso que leitores mais exigentes buscam”, diz Messias Gonzaga, que se juntou a Eleoterio quando o amigo abriu seu próprio negócio.

“Costumo dizer que a profissão não existe. É mais um ofício, em que você vai aprendendo aos poucos. Uma atividade em que é preciso amar os livros”, opina Gil Cardoso, desde 1982 trabalhando como livreiro.

“Em uma livraria ou sebo, a mão de obra é essencial. Na verdade, é ela quem faz a empresa. E o Eleoterio tem a característica de aglutinar pessoas. Lembro que quando eu estava começando, todo mundo só queria ser atendido por ele”, diz Messias. Fã de Elias Canetti — cujo Auto de fé está entre seus cânones —, Messias é outro respeitado livreiro, famoso por suas dicas literárias. Leitor devoto de Machado de Assis e Graciliano Ramos, tem em Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, um livro para toda a vida, que está no cume de seu altar literário. “O Messias foi um ótimo funcionário. É um entendedor de literatura de primeira”, diz o antigo chefe Aramis Chain.

Excetuando um breve período como vendedor de produtos para máquinas copiadoras xerox, Messias dedicou a vida profissional às livrarias. Depois de ter saído da loja de Eleoterio, nos idos de 2002, foi para o Mato Grosso, onde teve sua primeira e única experiência em grandes redes livreiras. “No shopping, vende-se apenas fast-food”, define Messias, que também mantém diálogo com vários escritores locais.
Foto: Kraw Penas

















Uma vida entre livros:
Eleoterio Burrego em
um dos corredores
do Sebo Líder, onde
trabalha há cinco anos.

















Reciclando o novo

Com o aumento do número de editoras no país a partir dos anos 1990, os encalhes também aumentaram. Foi mais um filão aproveitado pelos sebos, que compram livros praticamente novos por um preço baixo. Com a experiência da venda do livro novo, vendedores como Eleoterio e Messias, para atrair outro tipo de público, começaram a introduzir lançamentos nas prateleiras entre os livros usados, como Toda poesia, a coletânea que reúne a obra poética de Paulo Leminski e que se tornou best-seller desde que foi lançada.

“Uma das saídas dos sebos tem sido as pontas de estoques das editoras, que após um determinado período — cinco anos, em média —, começam a vender seus títulos mais antigos, para dar lugar aos lançamentos. Muitos sebos surgiram a partir desse comercio com as editoras”, diz Eleoterio, que coleciona traduções de Franz Kafka, seu autor preferido. “Das 27 traduções de A metamorfose lançadas no Brasil, tenho 13.”

Autodidatas

Além de dedicarem a vida aos livros, Eleoterio, Messias, Gil e Marcos têm em comum um traço autodidata que os fez se destacar em um ramo em que a rotatividade de profissionais é muito grande. Eleoterio, por exemplo, veio a Curitiba para ser engenheiro, mas logo cedo o “vício do livro” o pegou. Por isso acabou não fazendo faculdade. Mesmo assim, de tempos em tempos, se dedica ao que chama de seus “mestrados particulares”. Eleoterio se refere a assuntos que lhe interessam muito, como a Revolução Francesa, que durante muitos anos foi objeto de estudo e uma grande paixão.

Tal inteligência e perspicácia é reconhecida por muitos leitores. “Nunca esqueço que o Dalton [Trevisan] me indicou o livro A balada do café triste, da escritora americana Carson McCullers. Li e gostei muito. Então passei a recomendar aos meus clientes também, sempre lembrando que aquela, na verdade, era uma dica do Vampiro. Desde então, tem sido um dos livros que mais vende por aqui”, diz Messias.