Prosa | Manoel Carlos Karam

A seguir, o Cândido publica trechos de Mesmas coisas, livro inédito de Manoel Carlos Karam.                                                                      

Ilustra André Ducci
Algum gesto de lançar alguma coisa a alguma lata de lixo alguma vez revelou algum prazer?

Uma folha de papel. O primeiro gesto é amassar a folha de papel até que ela se transforme numa bola de papel, e depois da transformação, lançar a bola de papel ao lixo. Há algum prazer em se livrar de alguma coisa em algum lixo.

Algum folheto que chegou pelo correio oferecendo alguma vantagem em comprar em alguma loja. Ele pode ser aquela alguma folha de papel transformada naquela bola de papel para ser lançada ao lixo. Com algum sentimento de algum prazer.

Uma carta, alguma bola de papel ela também. Não é conveniente rasgar cartas antes de jogar no lixo. Poderá haver algum arrependimento. Desamassar bolas de papel requer muito pouco de engenho e arte. Menos engenho e arte que os necessários para montar um puzzle.

É formidável. É formidável. Quase esqueci de contar o que um dia eu cheguei a fazer, transformei a folha num avião de papel. Pratiquei pontaria na cesta do lixo com o avião de papel. Formidável. Nem preciso dizer, formidável.

Há quem exerça o prazer de jogar fotografias no lixo. Amassadas ou rasgadas ou inteiras. Uma fotografia pode tomar a forma de bola de papel. Pode tomar a forma de objeto para praticar pontaria na cesta de lixo. Qualquer coisa pode tomar a forma de objeto para praticar pontaria na cesta do lixo.

Lançar fotografias ao lixo. Algum prazer em lançar alguma fotografia em algum lixo. Sim. Algum prazer. Fotografias inteiras. Sem amassar nem rasgar nem enrugar. Fotografias inteiras jogadas no lixo. 

Então proteger o lixo. Basta proteger o lixo. Quem nunca guardou uma coleção de fotografias no lixo que atire a primeira bola de papel. 


Já devo ter contado pra você. Há dias em que fico na janela observando o caminhão que recolhe o lixo. Eu faço então um inventário de tudo aquilo que poderia ter ido naquele caminhão. Os homens do caminhão do lixo já me perguntaram o que eu faço na janela quando eles passam. Eu contei.

Outra coisa que lanço ao lixo com algum sentimento são as folhas do calendário. Mas não amasso. Folha de calendário não vira bola de papel. Eu ficaria aborrecido por amassar o dia de ontem. Ou o sábado da semana retrasada. E também não rasgo. Não se rasga folha de calendário. Arrancar do calendário já é uma violência, é ou não é? A folha do calendário vai inteira para o lixo. Mas não sou daqueles simétricos que entregam para o caminhão o saco de lixo com folhas do calendário uma vez por ano. Eu entrego ao caminhão do lixo as folhas de um ano inteiro toda semana. Se os homens do caminhão do lixo percebessem teriam mais uma pergunta pra me fazer.

Algum gesto de lançar alguma coisa a alguma lata de lixo alguma vez revelou algum prazer?

Eu havia feito a pergunta sobre aquele algum prazer. Ela me ocorreu no momento em que eu atirava um palito de fósforo ao lixo, um palito de fósforo aceso. Foi aí que me ocorreu perguntar. Se algum gesto de lançar alguma coisa a alguma lata de lixo alguma vez revelou algum prazer. Foi aí. Na ponta acesa do palito de fósforo no lixo. 

E varrer lixo pra baixo do tapete? Você já ouviu falar? 

Ilustrações André Ducci                          

André Ducci Ilustrações

O verbo ouvir coisas.
Tenho (eu o M. Ene) conjugado.
Do nada, chega do nada, ouço aquilo que chega do nada.
Que é de onde suspeito que eu mesmo cheguei.
Nada, como se sabe, é aquela parte em volta do palco do teatro chamada de coxia.
Ouvir coisas.
Sino de igreja, esta eu já contei, ou alguém contou, ouço de vez em quando e não sei de onde.
O sino sem a igreja.
Buzina de caminhão e sineta de bicicleta e sirene de bombeiro e apito de trem e cincerro de vaca.
Ouço.
Mas sem o caminhão e sem a bicicleta e sem o bombeiro e sem o trem e sem a vaca.
O verbo ouvir coisas é irregular. 
Conjuga-se como ouvir vozes.
Discurso e declamação e comunicado e sermão e conferência e imprecação e narração de jogo de futebol pelo rádio.
Assim do nada, de repente, pimba.
O verbo ouvir vozes é direto.
Mas cai num ouvido e não consegue encontrar o caminho do outro.
Neste caso transforma-se em indireto.
Então conjuga-se como o verbo ouvir estrelas.
Senso extraviado mas origem conhecida.
A abóbada celeste.
Vem pelo sótão, sem possibilidade de vir pelo porão.
O verbo ouvir estrelas entra pelas goteiras de qualquer telhado.
Faz algum estrago no sótão.
Encontra o caminho para o centro da casa.
Usa trombetas para anunciar a chegada.
E não sossega enquanto não se enfia pelo assoalho e acaba no porão.
Goteiras no assoalho.
Em casa de quem ouve estrelas, ora.
Ouvir verbos.
Então os vizinhos não tiveram necessidade de uma busca demorada pra descobrir moral pra história.
Foi rapidíssimo, e já havia moral da história circulando na rua.
Me comunicaram que eu devia adotar a moral da história como lema e divisa e bandeira e slogan.
Murmurar como mantra, ora.
A moral da história descoberta pelos vizinhos é lema e divisa e bandeira e slogan e mantra.
Não precisa gritar que eu não sou surdo.
Vou traduzir pro latim que fica melhor.

André Ducci Ilustrações

Comecei de manhã, terminei já era noite.
Foi o tempo que eu (o Professor Vargas pê maiúsculo faz favor) gastei para tirar
a bicicleta do porão.
Ou do sótão, depois eu decido.
Gosto de fazer as coisas com calma.
Uma vez gastei 35 minutos para encontrar no dicionário o verbete da palavra lentidão.
Já chegou a durar uma hora o meu tempo para acertar o relógio.
Para ir à padaria da esquina, então.
Quatro horas foi o tempo mais curto.
Eu me distraí naquele dia e andei com uma pressa bestial.
Mas o comum é ir à padaria num dia e voltar no outro.
Isso de ir num pé e voltar no outro é bobagem.
O pão?
Pão dormido.
Pra que pressa?
Não persigo a máxima de que os últimos serão os primeiros.
Não serei o primeiro porque não sou o último.
Há os mais lentos que eu.
Uns perfeccionistas que chegam ao cúmulo de andar de quatro e de ré.
Onde já se viu ponto de exclamação.
Um dia ainda vou tentar, é claro.
De quatro e de ré.
Quem sabe do futuro ponto de interrogação seguido de ponto de
exclamação e provavelmente reticências.
É ou não é?
Sempre que começa uma chuva eu recolho as roupas do varal.
Nunca teve chuva que me ganhasse.
Sempre termino de recolher a roupa depois que a chuva acabou.
Salvo quando começa outra chuva.
Eu faço experiências.
Este tipo de coisa acaba levando a gente a fazer experiências.
É ou não é?
De quatro e de ré ainda vai ser uma delas.
A experiência que eu fiz foi transitar do porão ao sótão.
Ou do sótão ao porão, depois eu decido.
A experiência foi bestial.
Eu perdi a conta porque o meu relógio parou e eu não percebi.
Se eu pelo menos tivesse contado quantas vezes acendi e apaguei a luz
poderia ter calculado o número de dias e de noites.
Um dia eu repito a experiência.
Com pilhas sobressalentes para o relógio.
Não vou, é claro, contratar um assistente.
Isso nunca.
Mas sei de gente que tem até treinador.
Onde já se viu ponto de exclamação.
É ou não é?
Tem também, me lembrei agora, o botão.
Foram seis meses para pregar um botão na camisa.
Mas não passei seis meses inteiros, que não sou louco.
Eu fazia dois turnos de quatro horas por dia.
Sou calmo até para organizar a minha calma.
É ou não é?
A humanidade eu não sei, mas eu caminho com calma.
E nunca se viu botão tão bem pregado numa camisa.
Este depoimento.
Quanto tempo acham que eu levei?

André Ducci Ilustrações

Fim disto fim daquilo, começando pelo meio, um fim aqui um fim ali, um dia o começo acaba, o fim começa um dia, há meios em tudo e meios para tudo, assim caminha a humanidade, jogando, aposta no jogo de palavras, tem um jogo no meio do caminho no meio do caminho tem um jogo, tem um jogo a caminho do fim, o jogo a caminho do fim está no meio, o meio é o ponto da meiavolta, há meios pra tudo, no começo era o verbo na frase com ponto de exclamação, façam suas apostas, o jogo de palavras não quer abolir o acaso, muito pelo contrário, a descoberta de ter duas mãos leva à invenção de apostar no par-ou-ímpar sozinho, quando dois juntos fazem a aposta sozinhos começa outro jogo, dois juntos ou três ou quatro ou cinco, outro jogo, quando menos se espera o jogo já está no meio voltando para acabar no começo, é um jogo de cartas este jogo de palavras, jogo de cartas, cartas com destinatário e remetente, cartas com palavras para o jogo de palavras para o jogo de cartas, aposta par-ou-ímpar sozinho e conta na carta a história do jogo, a carta pode voltar porque o destinatário não foi encontrado, faz parte do jogo, a carta pode ser respondida com a história do jogo solitário do destinatário transformado em remetente, faz parte do jogo, jogo e troca, jogo de palavras com palavras trocadas e troca com palavras cruzadas, o jogo do escambo de palavras, o jogador com uma palavra em duplicata e o jogador sem aquela palavra, troca, o jogo termina com a vitória de ambos, não existe empate no jogo do escambo de palavras, mas a palavra empate faz parte do jogo, as peças do jogo, o jogo tem peças porque o jogo é uma peça, prega-se uma peça com jogos fictícios com jogos metafóricos com jogos metafísicos, jogos metafísicos posto que a santidade é um jogo, jogo de esconder, esconder pecados veniais capitais metafóricos fictícios blefados, blef onomatopeia de tapa na cara, a outra face faz parte do jogo, a outra face do espelho também faz parte do jogo, a humildade de dar a outra face e a burrice de levar dois tapas em vez de um, o ponto extremo da burrice, fim e começo na mesma ponta como no cadarço do sapato, como na corda no pescoço do condenado, a impossível humildade de dar o outro pescoço, a possível humildade de dar o pescoço do outro, a burrice do outro em jogo, querendo que acabe logo, não sabe o motivo de querer que acabe logo, vê apenas a palavra fim tomando conta de toda a tela, que alguém acenda a luz antes que perca o jogo, trapaça, alguém acendendo a luz é carta escondida na manga, carta de remetente desconhecido para destinatário inominável, carta na manga com selo no envelope, dar a outra face do envelope para o remetente, dar um fim à outra face na pressa de acabar o jogo, mesmo que seja por acaso, acaso demasiado acaso e vice-versa, fim de jogo, começa o pós-jogo, o banho e as entrevistas do jogador, no meio do caminho entre um e outro tem o meio de voltar para o fim, na entrevista de quem perdeu o jogo é dito que o acaso sempre abolirá la vie en rose, na entrevista de quem ganhou é dito que o acaso jamais abolirá a rose garden, na entrevista de quem empatou o jogo é dito que o acaso é o acaso é o acaso é o acaso é o acaso é o acaso é o acaso é o acaso é o acaso é o acaso, fim, recomeçando pelo meio, fim assim fim assado, assim na face direita assado na face esquerda, fodido e mal pago, o acaso jamais abolirá o jogador fodido e mal pago...


Manoel Carlos Karam nasceu em Rio do Sul (SC), em 1947, mas viveu em Curitiba de 1966 até sua morte, em 2007. Escritor, dramaturgo e jornalista, publicou Fontes murmurantes (1985), O impostor no baile de máscaras (1992), Cebola (1997), Comendo bolacha maria no dia de são nunca (1999), Pescoço ladeado por parafusos (2001), Encrenca (2002), Sujeito oculto (2004) e Jornal da guerra contra os taedos (póstumo, 2008).