Poesia | Eucanaã Ferraz
Muito branco da memória
Não mais que
Hoje te parecem desoladas todas as avenidas.
Podes senti-las em tuas roupas que cheiram ainda
aos corredores que se lançavam apressados nos portões
de partida. Tudo foi claro e tudo foi absurdo, como agora
no poema, quando rimas e melancolia brotam ridículas,
pretensamente belas como orquídeas desmedidas.
Amanhã, porém, tudo estará limpo e seco e reto.
Cicatrizadas as feridas, restarão contra o céu
muito branco da memória não mais que
a silhueta precisa — pernas braços cabelos —
daqueles pinheiros, tristíssimos, e uma palavra
sem nexo: Curitiba, Curitiba.
No imenso metro entre nós
Talvez você não seja mais que isto: alguém,
de costas, tenta acender um cigarro ao vento.
E há este oceano abstrato que vem bater em nosso quarto.
É preciso cuidado, não são poucas e são altas suas ondas;
escuto, mas quem compreenderia a valsa monocórdia
dos afogados, feita de uma boca intraduzível?
O vento dispersa o que eu diria, não chego
a você, a seus ouvidos; assim também minha mão
que desmorona antes de alcançar seu rosto onde
do que entre nós alguma vez foi nítido embaraçam-se
os fios; o vento derrama seus olhos para longe,
dessalga e seca nos meus a hipótese da queixa;
vento da noite, que espalha suas pedras negras
no imenso metro entre nós.
Talvez o mundo mais perfeito seja apenas isto:
você, enfim, acende seu cigarro.
de costas, tenta acender um cigarro ao vento.
E há este oceano abstrato que vem bater em nosso quarto.
É preciso cuidado, não são poucas e são altas suas ondas;
escuto, mas quem compreenderia a valsa monocórdia
dos afogados, feita de uma boca intraduzível?
O vento dispersa o que eu diria, não chego
a você, a seus ouvidos; assim também minha mão
que desmorona antes de alcançar seu rosto onde
do que entre nós alguma vez foi nítido embaraçam-se
os fios; o vento derrama seus olhos para longe,
dessalga e seca nos meus a hipótese da queixa;
vento da noite, que espalha suas pedras negras
no imenso metro entre nós.
Talvez o mundo mais perfeito seja apenas isto:
você, enfim, acende seu cigarro.
Passa-o nos lábios três
quatro vezes
Senta-se frente à televisão.
Ou melhor, antes disso
vai ao cabeleireiro cobre as raízes brancas
com o louro intenso número 8
e ainda pede ao Ricardo que lhe apare
as pontas ressecadas.
Depois pega da bolsa o Ruby passion
passa-o nos lábios três quatro vezes
cuidadosamente. Em casa,
senta-se frente à televisão liga
naquele programa que dá informações
valiosas de beleza e saúde fáceis
de inserir no dia-a-dia e seguindo
as orientações da mulher que explica
tudo com voz calma põe a coluna ereta
faz inspirações e expirações profundas
enquanto aperta com a mão direita
o revólver que o marido esconde
na gaveta pequena da cômoda.
Você não sabe segurar uma arma
e pensa que talvez não dê certo
mas eu não sou uma boba você
diz a si mesma é preciso tentar eu
sou uma mulher
tem que dar certo diz baixinho
encostando o cano no lado
do coração que bate alto
acelerado posso ouvir daqui.
Ou melhor, antes disso
vai ao cabeleireiro cobre as raízes brancas
com o louro intenso número 8
e ainda pede ao Ricardo que lhe apare
as pontas ressecadas.
Depois pega da bolsa o Ruby passion
passa-o nos lábios três quatro vezes
cuidadosamente. Em casa,
senta-se frente à televisão liga
naquele programa que dá informações
valiosas de beleza e saúde fáceis
de inserir no dia-a-dia e seguindo
as orientações da mulher que explica
tudo com voz calma põe a coluna ereta
faz inspirações e expirações profundas
enquanto aperta com a mão direita
o revólver que o marido esconde
na gaveta pequena da cômoda.
Você não sabe segurar uma arma
e pensa que talvez não dê certo
mas eu não sou uma boba você
diz a si mesma é preciso tentar eu
sou uma mulher
tem que dar certo diz baixinho
encostando o cano no lado
do coração que bate alto
acelerado posso ouvir daqui.
Eucanaã Ferraz nasceu em 1961. Escreveu, entre outros, os livros de poemas Cinemateca (2008) e Sentimental (2012), este último vencedor do Prêmio Portugal Telecom em 2013. Também organizou os livros Letra só, com letras de Caetano Veloso (2003), e Poesia completa e prosa de Vinicius de Moraes (2004). Vive no Rio de Janeiro (RJ).