Poemas | Ronaldo Werneck
Diz que Noé
Diz que Baco
vem vinho vem
vem alegria vem
vem virar a noite
em epifania
VEM!
diz-que noé na arca trazia
toda a animália e assim salvou-se
o humano, o não-humano e a alegria.
e não é? nem bem desembarcou
um vinhedo plantou naquele dia
e o vinho se fez e noé se embriagou
pleno de si em sua epifania
diz-que dionísio
que também é baco
salvou o buquê
e se fez preciso
e entornou seu dia em festa e alegria
as uvas as uvas de baco
as uvas do dia-a-dia
seu gosto seu buquê
que sabe a epifania
syrah
shiraz
pinot noir
carmènere
merlot
malbec
chianti
cabernet sauvignon
o vinho e seu visual
seu gosto seu aroma
dia e noite noite-dia
um buquê que é chama
alegre epifania.
Quatro da manhã
há ainda restos de noite
meia lua que decresce
e agoniza no céu da varanda
uma lua esquálida pendurada na escuridão
há uma lua que agoniza
e faz-se um véu na noite
e faz frio
e são quatro
da noite-manhã
e faz frio de morte
na antemanhã
e
há um amigo a morrer
no claro-escuro da UTI
entre apagados sóis
lençóis soluços
um amigo
a morrer e nada mais
há uma lua plantada no céu
meia lua que teima
em não sumir
há uma manhã
que teima
em não nascer
há passos que passam
no silêncio da madrugada
passos que vão do nada
a lugar nenhum
há um medo antigo
da noite
de seus mistérios
de nada de nada de nada mais
há um frio na noite
onde
faz frio
frio
de morte
e nada e nada e nada mais
On the road: tempespaço
sei de sobra/ que nunca terei/ uma obra.
sei enfim/ que nada sei/ de mim
fernando pessoa
o carro corre a tarde
pelo asfalto escorre
no alto as imbaúbas
acinzentam o mato
no horizonte o céu sobra
hoje agora ontem infindo
pelo retrovisor a estrada
o espaço atrás o tempo
vida vai se esvai indo
atrás do vento
o carro corre
a cada momento
o tempo escorre
lento o mundo espaço
passa passageiro
palmeiras
canaviais
eucaliptos
cafezais
tudo verde
e mato
e morro
e tudo o mais
tudo hoje
tudo ontem
noite-dia
aurora
tudo junto
aqui e agora
o tempo escorre
lento o mundo espaço
passa passageiro
A lágrima do morto
a paulo fialho, em seu velório
a morte esse cavalo
pégaso solto no ar
a noite esse halo
o corpo o não lugar
no foco um só plongée
cavalo alado torto
enquadra a cena e vê
em decúbito o corpo
corpo o corpo esquálido
por mais que a vida chame
face amarelo pálido
branco branco origami
e como se esculpida
a lágrima do morto
surge súbito e tímida
vida a dobrar em dobro
lágrima esse cristal
vida que vem da morte
e só dela só se alça
solta-se em malasorte
da vida para a morte
da morte para a vida
a lágrima esculpida
vida que estanca a morte
e não escorre a lágrima
vã pulsão que se fixa
lá para sempre lá
vida e morte vívida
não é de malasorte
a lágrima da morte
antes sopro de vida
que jorra esquecida
vida a correr da morte
esse animal cevado
vida esse cavalo
a dobra o dobro: corte
Ronaldo Werneck nasceu em Cataguases (MG), em 1943. É poeta, cronista e ensaísta, autor de, entre outros livros, Selva Selvaggia (1973) e Noite americana/ Dorys day by night (2006). Seu mais recente trabalho é Sob o signo do imprevisto (2017), uma biografia alternativa do romancista Rosário Fusco. Os poemas publicados pelo Cândido nesta edição fazem parte do novo livro de poemas de Werneck, que será publicado este ano.