Poemas | Ronaldo Cagiano
Esbulho
Vejo os psicanalistas
com
o espiões da intimidade
não pagam pedágio
nas alfândegas do meu
medo
É breve o seu reinado
mas perduram
as cicatrizes
de tão autorizada
intromissão
Continuam vivos
os meus fantasmas,
não há ataúde
para os meus espantos
Carnificina
Cada homem
é essa carne sem nome
entre uma bala perdida
e a destroçada esperança
na diária oficina
da violência urbana,
açougue que animaliza
o rebanho sem norte,
esperando o corte
na vitrine fashion da morte
na cidade derrotada por metástases
e metáforas de sangue
num escrutínio
sem sorte
Chiaroscuro
toda a minha noite é um auto de fé.
Jorge Vicente
Os dias chegavam-me,
mas nem sempre claros.
Só a noite,
pontual
e inequívoca,
trazia-me de longe
os seus fantasmas
Em meio aos flashes
de uma lua indecisa
na coreografia
das nuvens
uma oblíqua incerteza
dinamitava
meu espírito insular
Utensílio
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
...
E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
Herberto Helder
Num poema cabe tudo:
a escrita torta da solidão
os gatos de Hemingway
os anjos de Rilke
o verme da fome corroendo os estômagos
a cólera e o espanto
a ditadura de deus
o funeral da tarde
a obediência dos rebanhos
o desacato da minha heresia
a insensibilidade dos poderosos
a agonia dos refugiados
a hediondez da corrupção
a antipoesia de auschwitz
o tiro que matou
lorca os suicídios de vargas e sándor márai
a bomba de hiroshima
o canal de suez
o maio de sessenta e oito
a primavera de praga
o discurso de martin luther king
a terceira margem do rio
os sertões que nos habitam
as guernicas contemporâneas
as baratas de kafka e de clarice
as carmens de bizet e mérimée
as metamorfoses da morte
as armadilhas do destino
a fecundidade do adeus
o contrabando da verdade
a coreografia dos danados
a arqueologia do caos
.
.
.
a escaldante lucidez do verbo
Tempo e barbárie
Todo conservador é um pulha
com hemorroidas no olhar
e flatos no coração:
sua alma funerária
é assassina de sonhos
—
Ronaldo Cagiano é autor dos livros de poemas O Mundo Sem Explicação (2019), Os Rios de Mim (2018) e Observatório do Caos (2016), entre outros. Como contista, lançou títulos como Eles Não Moram Mais Aqui (2018) e Dicionário de Pequenas Solidões (2006). Os versos publicados pelo Cândido fazem parte de Cartografia do Abismo, ainda inédito, com lançamento previsto para 2020.