Poemas | Marco Aurélio Cremasco

Flor do deserto

a flor do deserto
sob areia escaldante

aguarda impaciente
ser colhida

quem localizará
este jardim impossível?

quem meterá as mãos
no seio do inferno

para colher
precioso poema?


Entrevista

diga lá, meu velho,
como é ser você?

ser noite ser dia
ser prosa poesia

ruído harmonia?
peça de fantasia?

pedaço de vidro
espelha o que vê

vamos, diga lá,
como é ser você?

Mari Adonis Ilustração

Ilustra


Homem Bom

queria ser homem bom
compreensivo
companheiro sensível

do tipo que ao andasse
um ou outro apontasse
lá vai um homem bom

mas deus, se é que existe,
não me fez santo nem anjo
me fez à semelhança

de ser homem
na esperança
de ser bom


Breve

não tem essa de pressa agora
pode-se passar dessa pra melhor
e deixar o pior por fazer

o rio banha o peixe
o céu levita a asa
o que passa
não disfarça

mostra a face
e o rosto da faca
num corte seco e rápido
pondo pano final ao teatro

tudo o que aqui acontece
pouco depois desaparece
na fração de beijo celeste

e quando brilha uma estrela
nasce o que é para ser nato
fenece o que é para ser finito

indo da fonte à correnteza
e desta ao fim com a certeza
que o mais breve dos dias
foi o mais intenso de uma vida


A uva

tome a uva vasculhe-a

ouça o seu sussurro
o que ela quer? deseja?

(vinho ou sobremesa?)

deixe-a à mercê dos lábios
não lhes permita que intumesçam
na voracidade para devorá-la

recomponha-se enamore-se
traga-a entre os dentes
toque-a mordisque-a

umedece-a, primeiro, com a saliva
depois com a lágrima insana

que a tudo corrói e
consome na explosão

que não cabe no corpo
sim no abrigo da uva

para transformar o que era uva
em sumo

e do sumo o gozo do universo
na derradeira herança

de uma videira
ou de uma vida inteira


Marco Aurélio Cremasco nasceu em Guaraci (PR) e reside em Campinas (SP). É autor das coletâneas de poemas Vampisales, Viola caipira, A criação (Prêmio Xerox – Livro Aberto), From Indiana e As coisas de João Flores, do livro de contos Histórias prováveis e dos romances Santo Reis da Luz Divina (Prêmio Sesc de Literatura e finalista do Jabuti) e Guayrá.