Poemas | Armando Freitas Filho

PARA CRISTINA,
LEITORA DE PROUST


Proust mal lido, ou de ouvido
por fim me chega certo, pinçado
por sua leitura detida, em francês
num piscar de olhos mais rápida
quando trazido por quem conhece
para o sabor da nossa língua
o esmero daquele que descreveu
a cada folha, todas as suas nervuras
na frase serpentina que percorre
sem abrir mão de nenhum volteio
os sete volumes do tempo perdido
mas constantemente lembrado, pois
te atravessam, e, através de você
na sua tradução, que se superpõe
às outras, se transfere até a mim.


MARCEL E CLARICE
para Carlos Mendes de Sousa


À mesa o tempo não passa.
O lustre paralisado sonha
com a luz de outra época
que vai abrindo o leque
rápido e retrospectivo
a partir da xícara de chá
e do gosto da madeleine
mergulhada naquela infusão
da Índia ou de tília, da memória
trazendo toda a recordação até
ao licor de anis, de fruição fugidia
apoiada num instante isolado
e calmo — claro — estabelecido
no calor do álcool, na evaporação
da cor, no gole que combinava
as sensações de pertencimento
e perda, no sabor espraiado
de uma manhã à outra, ambas
vencidas, pretéritas, mas vivas
ao saírem das noites passadas.



ROSA E LISPECTOR

Desabrocharam no mesmo tempo.
Algo em comum na peripécia
da aparência, das vestimentas
bem cortadas, mas na essência
se encontravam sem aparatos
embora escrevessem distantes
diferentes: ele para a literatura
ela para ele, para você, para qualquer.
Partiam da mesma base, ambos
sensitivos, místicos, misteriosos magos.
Se reuniram no medo, na morte:
prevista, calculada, aos poucos.


A PARTIR DE KAFKA
para Modesto Carone

A metamorfose é a noite
e não à noite.
Não sabemos como vamos chegar
amanhã, à manhã.
Por onde fomos ou fomos levados:
tresnoitados ou dormidos.
No escuro ou em claro
para a ratoeira do gato
ou para o gato engatilhado
esperando o corredor
se acabar no fim das paredes paralelas
que no infinito se juntam
desembocando no beco, inevitável
desatinado e destinado.
 
NA PEDRA REPETENTE DO POEMA

O inominável inseto de Kafka.
A barata esmagada de Clarice.
No mar de rosas, a gilete escondida
no sabonete do filme de Ana Carolina.
Tudo tão no íntimo assim, insistente
formam o refrão aflitivo
retido dentro do pensamento.
Nunca mais deixa de tocar:
obsessivo obstáculo, moto-perpétuo
inesquecível metamorfose.



Armando Freitas Filho estreou na literatura com o livro Palavra, de 1963. Em 2003, teve seus 13 livros de poesia reunidos no volume Máquina de escrever — Poesia reunida e revista. Nos anos mais recentes, publicou os inéditos Raro mar (2006), Lar (2009) e Dever (2013). Prepara outro livro para 2016, ainda sem título. Os poemas inéditos publicados pelo Cândido podem fazer parte dessa nova coletânea. A obra de Armando Freitas Filho já recebeu os prêmios, entre eles o Jabuti e o Prêmio Portugal Telecom de Literatura. Vive no Rio de Janeiro (RJ).