Poema | Luiz Felipe Leprevost

Não sei como um poema deve ser

um crânio achado por uma retroescavadeira
a sensação de habitar um país extinto 
uma vidência, uma evidência
frutas na água, escorregar na lajota
de que lugar no meu corpo chega o seu nome
zebras no final da jornada
um violão violando o viver sem trégua
filhotes de águia, a solidão de um oásis
escuta vê abraça uma visão
a paciência que apenas os ossos têm
a ânsia da carne pela carne
a mensagem suja entrando em tudo
a ferrugem corroendo a soberba dos motores
é tudo verdade, é mentira
verde e amarelo
você se conhece ou inventa

como deve ser um poema
                              não sei

um mecanismo esfarelando
seco como um tiro
molhado como um orgasmo
formigas se infiltrando pela fresta
você me socorrendo no fim da saudade
barulhento como uma passeata contra o tirano
exageradamente feliz
um carnaval que se faz no corpo
a incredulidade do sexo
a identificação biométrica
a cidade vazando o triplo do próprio tamanho
esmagar a área pública de uso restrito
trak-trek-trak de cavalos batendo cascos
a casa envolvida por uma atmosfera hibernal
a neblina floresta de vapor por onde os mortos abrem picadas
o ódio cheio de areia, a areia não ser areia alheia
o amor desabado sobre as coisas que não são ele
O Carro da Miséria
voltar à superfície da rua extrema
a resignação das almas paradas

não sei se
            um poema

deve chorar a sua boca, ateliê de sobrancelhas
se deve bicar como pombas febris a besta abjeta
se o seu reflexo cimentado nos aros dos ânimos exaltados
se deve vir com um bridão nos dentes
se o Beijo no Asfalto, se a moléstia indigesta


LUIZ FELIPE LEPREVOST é escritor, compositor, ator e dramaturgo. Publicou E se Contorce Igual um Dragãozinho Ferido, Barras Antipânico e Barrinha de Cereal, Ode Mundana e Tudo Urge no Meu Estar Tranquilo, entre outros livros. Teve encenadas as peças Hieronymus nas Masmorras, O Butô do Mick Jagger, Na Verdade Não Era e Pecinhas para uma Tecnologia do Afeto.